Por Sierra
Guimarães Rosa
No princípio foi a vontade
de saber – a vontade e a necessidade de saber. Depois a tomada de compromisso
com a leitura e com a escrita como uma profissão de fé. E assim os primeiros
livros foram chegando à minha morada como aquelas pessoas que são muito
bem-vindas, porque livros, se não são pessoas, eles contêm pessoas. Daí por que
uma casa que possui livros é uma casa cheia, repleta de gente.
O espaço pode não ser o mais adequado para acomodar uma biblioteca, mas é o que eu disponho no momento |
Fundamentalmente freyreana, porque Gilberto Freyre é o meu farol intelectual e se encontra no cerne do muito que em mim é interesse e aspiração intelectual e artística, essa Biblioteca Liberdade, por ser freyreana, abriga um grande número de obras do chamado Mestre de Apipucos, tendo ele direito a um armário só dele; armário esse que acolhe não apenas livros e opúsculos que ele escreveu, como também parte da vasta fortuna crítica que a ele e ao seu legado foi destinada. Gilberto Freyre, meu grande e principal mestre, é, a bem dizer, o patrono da minha biblioteca; e ele está presente nela também em fotografias que ocupam pedaços das paredes e em suvenires, como um prato do projeto Restaurante da Boa Lembrança feito pelo Oficina do Sabor no ano 2000, ocasião das comemorações dos 100 anos de nascimento do autor de Região e tradição, e um Calendário Histórico do Recife, de 1994.
Sendo freyreana, a minha
biblioteca tem as suas prateleiras tomadas pela multidisciplinaridade,
denotando uma variada gama de interesses. Ainda que certos assuntos predominem,
como a história do urbanismo e a cultura das cidades, tendo em vista que essa
Biblioteca Liberdade não é uma biblioteca de um leitor comum e sim um
repositório de livros de alguém que faz pesquisas, de alguém que escreve, de
alguém que, além de bibliófilo e amante dos livros, precisa muitíssimo deles
para fundamentar, para ilustrar, para estimular, para, enfim, servir de
referências para as narrativas que constrói no campo ensaístico e que resvalam
para o estímulo também da imaginação que toma o rumo e dá corpo a enredos ficcionais
e a outras criações que utilizam as palavras como matéria-prima.
E por abarcar a
multidisciplinaridade e por pertencer a um artista muito curioso, nesta
Biblioteca Liberdade não apenas convivem gatos e pássaros encarnados em bibelôs
em meio a recordações de viagens e brinquedos-personagens de livros, mas também
autores os mais diversos. Nela se encontram, como uma agitada feira literária,
o Itinerário de Pasárgada, de Manuel
Bandeira, e os Sonetos, de William
Shakespeare; O cortiço, de Aluísio
Azevedo, e Cem anos de solidão, de
Gabriel García Márquez; Geografia da fome,
de Josué de Castro, e Babado forte,
da Erika Palomino; Grande sertão: veredas,
de Guimarães Rosa, e Recordações do
escrivão Isaías Caminha, do Lima Barreto; Carta ao pai, de Franz Kafka, e Minha
vida de menina, da Helena Morley; A
cidade e a História, de Lewis Mumford, e A cidade e o arquiteto, do Leonardo Benevolo; Literatura como missão, de Nicolau Sevcenko, e Tempo dos flamengos, de José Antônio Gonsalves de Mello; Vigiar e punir, de Michel Foucault, e Educação como prática da liberdade, de
Paulo Freire; Orgia, de Tulio
Carella, e De profundis, de Oscar
Wilde; A ilha perdida, de Maria José
Dupré, e Urupês, de Monteiro Lobato; Sobre fotografia, de Susan Sontag, e Vão-se os dias e eu fico, de Edson Nery
da Fonseca; Papéis avulsos, de
Machado de Assis, e Alice no País das
Maravilhas, de Lewis Carroll; Prólogo,
ato, epílogo, da Fernanda Montenegro, e Felicidade
clandestina, da Clarice Lispector; A
correspondência de uma estação de cura, de João do Rio, e A formação das almas, de José Murilo de
Carvalho; Eu, de Augusto dos Anjos, e
(Des) encantos modernos, de Antonio
Paulo Rezende; A imagem da cidade, do
Kevin Lynch, e Morte e vida de grandes
cidades, de Jane Jacobs; Arte moderna,
de Giuglio Carlo Argan, e Cazuza, de
Viriato Correia; A ditadura escancarada,
de Elio Gaspari, e Notas dominicais,
de Louis-François de Tollenare; e tantos e tantos outros nomes e tantas e
tantas outras narrativas que se juntam na construção de um vasto conhecimento
acerca da existência e do estar e de compreender a si e a outrem no mundo.
Uma biblioteca é como o mar
ao qual nunca deixam de chegar as águas de muitos rios. Uma biblioteca nunca
está completa porque o leitor que tem a leitura como exercício de trabalho e/ou
como parte do seu cotidiano está sempre à procura de um novo título, que pode
ser um lançamento que acabou de chegar às livrarias ou uma obra que está há
anos fora de catálogo e que ele busca em sebos, como quem busca um grande tesouro
ou simplesmente algo que, como uma chave, abrirá portas de acesso a uma
elucidação. As histórias de buscas e de encontros de livros são quase sempre muito
saborosas, que o diga o que José Mindlin contou em seu Uma vida entre livros: reencontros com o tempo.
Gilberto Freyre em fotografia de autoria de Marcelino (1970) |
Livros me fascinam sob
vários aspectos e não só pelas narrativas que eles encerram. É um fascínio que
envolve o tato, a visão e o olfato – sim, por vezes, eu cheiro as páginas de
livros antigos. É um fascínio que faz com que, a bem da verdade, eu não consiga
mais imaginar a minha vida sem a convivência com eles. Daí por que eu costumo
levar livros a muitos lugares aos quais eu vou, lugares nos quais eu sei que
disporei de qualquer tempinho que seja para ler um pouco.
Passarinhos de madeira do Mercado Municipal de Belo Horizonte |
Desde que eu falei para o meu amigo de longa data, Adelbar Lima, que estava arrumando esta Biblioteca Liberdade para inaugurá-la, não teve uma só ligação telefônica e nem uma troca de mensagens no WhatsApp em que ele tenha deixado de me cobrar isso. E eu escolhi inaugurá-la hoje, que é o meu aniversário, como o melhor presente que eu poderia me dar. E ela está oficialmente inaugurada ostentando na bonita placa que a nomeia e que é uma obra do artista Josa Lira, a figura de um beija-flor como que voando, em pleno exercício de liberdade. Devo-lhe dizer, caro leitor, que regozija-me sempre pensar na liberdade como principal fundamento da minha vida.
Parabéns Sierra. Já conheço, mas agora deve tá linda.
ResponderExcluirQue decisão acertada! Abrir as portas para leitura em um país em que nos últimos 04 ( quatro)anos queriam nos armar de armas , é sim dizer que a educação e a leitura sempre será o caminho. A iniciativa partindo de um amante da literatura é modéstia parte declarar que seu amor sempre estará entre as linha do papel para construção de um país com mais conhecimento. Não posso deixar de citar toda minha admiração e respeito a este grande escritor que eterniza sua paixão pela leitura através dos livros. Parabéns Clenio Sierra...
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