18 de fevereiro de 2023

Carnaval da desforra

Por Sierra



Foto: Arquivo do Autor
Recife, 18 de fevereiro de 2023, no calor e na pulsação do Galo da Madrugada, um dos ícones do Carnaval pernambucano, movimentando o coração cidade. O Carnaval jamais e em hipótese alguma aceitará e nem se curvará a quaisquer ditaduras, muito menos à ditadura da tristeza. Perderam feio bolsonaristas, perdeu feio coronavírus, porque a vida, a liberdade, o Carnaval e a alegria são muito mais fortes e contagiantes do que vocês. E saiam da minha frente porque o meu bloco já está pedindo passagem



Os meses apavorantes da pandemia além de ter lançado muitos de nós para uma completa reclusão, fizeram com que adiássemos projetos, repensássemos planos de vida, reconsiderássemos estratégias de bem viver, porque o objetivo maior e mais urgente era conseguir sobreviver ao coronavírus, que retraçássemos itinerários, rediscutíssemos nossos papéis dentro das relações afetivas que mantínhamos – o número de divórcios, por exemplo, foi altíssimo -, repaginássemos o mapa de nossos sonhos e reavaliássemos, enfim, o que é a vida e como conduzi-la a partir de então.

Não que a vida antes da pandemia do coronavírus estivesse fora de perigo. A vida estava e sempre esteve por um fio, porque, como tanto se diz por aí, “para morrer basta estar vivo”. O que eu quero dizer dentro do olhar, da avaliação e da perspectiva com que eu atravessei o acontecimento, foi que a pandemia como que potencializou a nossa fragilidade existencial. Sinceramente eu não tive medo de morrer vitimado pelo coronavírus, mas temi muito que minha mãe fosse contaminada e acabasse engrossando a estatística de milhares de mortos. De resto eu tive de enfrentar o pesadelo dentro das condições que eu tinha: pegar dois ônibus para ir trabalhar e dois para voltar para casa; e sair para comprar comida, medicamentos e o que mais que fosse preciso.

De duas coisas, de duas não, de três coisas eu senti muitíssima falta durante o longo processo da pandemia: de frequentar uma academia de musculação; de viajar; e da alegria contagiante do Carnaval. Os anos que duraram a pandemia foram anos demasiadamente tristes, sombrios e melancólicos pela falta de interação social, pelos óbitos contados aos milhares, pelas falências que causou, pela pobreza que se agravou, pelas solidões que impôs e pelo confisco da alegria. E, como se não bastasse a miríade de coisas ruins que a pandemia causou, os brasileiros ainda tivemos o infortúnio de ter na presidência da República um endemoniado que era um verdadeiro câncer social; um indivíduo manipulador que com uma retórica e comportamento fascistas conseguiu angariar a simpatia de milhões de cidadãos disseminando o ódio e promovendo um pesado clima de perturbação na sociedade.

Não sei como você está encarando o retorno do Carnaval, leitor. Eu, particularmente, estou encarando o Carnaval deste ano quase que como uma catarse, como um banho de descarrego e como uma verdadeira desforra. Desforra contra a pandemia. Desforra contra a morte. Desforra contra a reclusão forçada. Desforra contra o abatimento. Desforra contra a tristeza. Desforra contra a melancolia. Desforra contra os falsários. Desforra contra os anunciadores do apocalipse. Desforra contra os que não nos querem bem. Desforra contra os falsos profetas. Desforra contra os negacionistas. Desforra contra os mentirosos. Desforra contra os homofóbicos. Desforra contra os misóginos. Desforra contra os pregadores de ódio. Desforra contra os inconformados tiranos. Desforra contra as sequelas das doenças. Desforra contra os discursos autoritários. Desforra contra os preconceituosos. Desforra contra os falsos moralistas. Desforra contra os hipócritas. Desforra contra os enrustidos. Desforra contra os terraplanistas. Desforra contra os abusadores. Desforra contra os torturadores. Desforra contra os manipuladores da fé. Desforra contra os racistas. Desforra conta os disseminadores da intolerância. Desforra contra os defensores da ignorância. Desforra contra os inimigos da democracia. Desforra contra os alienados. Desforra contra os armamentistas. Desforra contra os canalhas patrioteiros. Desforra contra os indiferentes. Desforra contra os coniventes da dor. Desforra contra os anticultura. Desforra, enfim, contra os sabotadores da alegria, porque, com a alegria não há quem possa.

Neste Carnaval mais Carnaval do que qualquer outro Carnaval que nós vivenciamos, é a vida que é ao mesmo tempo ritmista, aderecista, passista, coreógrafa, mestre-sala e porta-bandeira. A vida e a alegria pulsam em nós com sede e fome de ser vivida intensamente. Neste Carnaval mais Carnaval do que qualquer outro Carnaval que nós vivenciamos, é a vida que vai pôr a fantasia mais bonita, figurar no estandarte, subir e descer ladeira, brilhar no trio elétrico, esbaldar-se no meio do bloco e atravessar a avenida de ponta a ponta.

O Carnaval jamais e em hipótese alguma aceitará e nem se curvará a quaisquer ditaduras, muito menos à ditadura da tristeza. Perderam feio bolsonaristas, perdeu feio coronavírus, porque a vida, a liberdade, o Carnaval e a alegria são muito mais fortes e contagiantes do que vocês. E saiam da minha frente porque o meu bloco já está pedindo passagem.

Alô, alô, Kitara Ravache, golden shower e beijinho, beijinho e pau, pau para você.

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