Por Sierra
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Foto: Divulgação
A tragédia humanitária que por ora atinge o povo yanomami deveria causar uma comoção nacional, mas, o que mais se vê, é troca de acusações quanto a responsabilidade pelo descaso e discursos de quem irresponsavelmente afirma que do que o índio realmente precisa é se aculturar e “levar uma vida de homem branco”, como se isso fosse garantia de que eles e o ambiente em que vivem fossem ficar livres e protegidos da sanha e da fome insaciável do poder econômico. O tempo passa e nós permanecemos em larga irredutivelmente selvagens
Ao longo de quase 523 anos a figura do índio, a figura dos nativos que os europeus encontraram nestas terras a partir do quarto mês do século XVI, foi habitualmente descrita e pintada de maneira depreciativa. Do “bom selvagem” dos contatos edílicos dos primeiros encontros à primeira mão de obra de que eles necessitaram para encherem suas naus com pau-brasil e outras mercadorias, os povos da terra recém-descoberta começaram a ser vistos como inimigos da ação de conquista levada a cabo pela gente do Velho Mundo: preguiçosos, canibais, beligerantes, traiçoeiros, insubmissos, etc. Toda sorte de designações foram atribuídas aos nativos como parte da justificativa para a montagem de uma estrutura de morticínio que avançou por sobre inúmeros grupos indígenas, causando o extermínio sistemáticos de milhões deles ao longo dos séculos.
À medida que foram se
ampliando e se diversificando os interesses econômicos dos europeus sobre as
terras do Novo Mundo, mais e mais os indígenas tomaram a forma de obstáculos
para o propósito da conquista total. Mesmo a ação de catequese, promovida por
agentes da Igreja Católica, não conseguiu de todo frear a ação de dizimação à
qual os nativos foram submetidos. E não é demais dizer que, por mais que uns e
outros queiram enxergar apenas como benevolente a instituição da catequização,
não é incorreto afirmar que ela própria também deu a sua contribuição ao
progressivo e incessante processo de extermínio, porque o contato dos europeus
significou, entre outros males, a chegada de doenças desconhecidas às aldeias e
alterações significativas em seu modus
vivendi.
Transcorridos quase 523 anos
da chegada dos primeiros europeus a esta parte das Américas – e se
considerarmos que Vicente Yañez Pinzón desembarcou em janeiro de 1500, em Pernambuco,
a data já fechou -, nós que acompanhamos os conflitos que envolvem o homem
branco e os povos indígenas vemos que a lógica do extermínio e da dizimação
dessa gente permanece a mesmíssima desde o século XVI: os nativos continuam
sendo vistos como os principais entraves do poder econômico para avançar sobres
suas terras em busca sobretudo de madeiras nobres e de metais preciosos. Até o
fator religioso permaneceu, agora contando com a ação também de protestantes.
O que de alguma forma mudou
do alvorecer de 1500 para cá foram os meios com os quais os madeireiros, os
garimpeiros, os pecuaristas, os caçadores e os traficantes de drogas e de
animais silvestres passaram a promover o
massacre da gente nativa. Não se promove mais em larga escala uma verdadeira
caçada a essa gente para aprisioná-la e/ou matá-la simplesmente. O avanço dos
meios de destruição do habitat dos
povos indígenas possibilitou que, em algumas poucas horas, com o emprego de
motosserras, lança-chamas, tratores, escavadeiras e substâncias químicas,
milhares de hectares de florestas nativas sejam postas abaixo para dar lugar a
pastos, lavouras, estradas e pistas de pouso e de decolagem de aeronaves; e que
rios sejam contaminados por metais pesados oriundos da ação do garimpo ilegal.
E dizimar e exterminar e acabar com a floresta e poluir os rios é o mesmo que
dizimar os povos indígenas, porque eles dependem desses recursos naturais e dos
animais que existem nesses espaços, porque os povos indígenas vivem em comunhão
e em simbiose com as terras em que habitam.
E note-se que, a ação
orquestrada do poder econômico visando ao extermínio dos povos indígenas
espalhados por todo o país e não só pela Região Amazônica, avança e ataca todo
e qualquer um que se puser à frente em defesa dos nativos e que lute pela
preservação do meio ambiente e pela exploração racional e segura dos recursos
naturais. Foi assim com Chico Mendes. Foi assim com Dorothy Stang. E foi assim,
mais recentemente com Bruno Pereira e Dom Phillips.
Os inimigos dos índios e das
florestas não reconhecem e nem respeitam ninguém e nenhuma autoridade; eles
passam por cima de tudo e de todos com uma voracidade e com uma crueldade
absolutamente desmesuradas. E agem feroz e impunemente certos de que nada e nem
ninguém poderá detê-los.
Este país e o resto do mundo
vêm acompanhando o atual drama do povo yanomami. Nossa, é de fazer chorar as
imagens que mostram curumins e índios adolescentes e adultos apresentando
corpos esquálidos e esqueléticos vitimados pela desnutrição e por doenças como
a malária. A fotografia da índia idosa que morreu dias atrás é uma das coisas
mais chocantes que eu já vi. Índios maltratados. Índios abandonados. Índios passando
fome. Índios abusados sexualmente por garimpeiros. Índios mais uma vez
revelando a este país e ao mundo como, ao longo de quase 523 anos, de maneira
coesa, eficaz e incessante, nós mantivemos uma ação de extermínio, de dizimação
e de massacre dos povos nativos; e revelando também que, no decorrer de todos
esses anos, o processo civilizatório não conseguiu, infelizmente, deter e domar
aquilo que em nós é mais condenável e selvagem, que é o ímpeto que leva tantos
a tirar a vida de seu semelhante. Por mais óbvio que isso seja, é preciso que
se diga que índios não são apenas índios: índios são seres humanos.
A tragédia humanitária que por ora atinge o povo
yanomami deveria causar uma comoção nacional, mas, o que mais se vê, é troca de
acusações quanto a responsabilidade pelo descaso e discursos de quem irresponsavelmente
afirma que do que o índio realmente precisa é se aculturar e “levar uma vida de
homem branco”, como se isso fosse garantia de que eles e o ambiente em que
vivem fossem ficar livres e protegidos da sanha e da fome insaciável do poder
econômico.
O tempo passa e nós
permanecemos em larga escala irredutivelmente selvagens.
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