4 de fevereiro de 2023

Morticínio em progressão: o drama dos yanomamis

 Por Sierra

 

                                                          Foto: Divulgação

A tragédia  humanitária que por ora atinge o povo yanomami deveria causar uma comoção nacional, mas, o que mais se vê, é troca de acusações quanto a responsabilidade pelo descaso e discursos de quem irresponsavelmente afirma que do que o índio realmente precisa é se aculturar e “levar uma vida de homem branco”, como se isso fosse garantia de que eles e o ambiente em que vivem fossem ficar livres e protegidos da sanha e da fome insaciável do poder econômico. O tempo passa e nós permanecemos em larga irredutivelmente selvagens



Ao longo de quase 523 anos a figura do índio, a figura dos nativos que os  europeus encontraram nestas terras a partir do quarto mês do século XVI, foi habitualmente descrita e pintada de maneira depreciativa. Do “bom selvagem” dos contatos edílicos dos primeiros encontros à primeira mão de obra de que eles necessitaram para encherem suas naus com pau-brasil e outras mercadorias, os povos da terra recém-descoberta começaram a ser vistos como inimigos da ação de conquista levada a cabo pela gente do Velho Mundo: preguiçosos, canibais, beligerantes, traiçoeiros, insubmissos, etc. Toda sorte de designações foram atribuídas aos nativos como parte da justificativa para a montagem de uma estrutura de morticínio que avançou por sobre inúmeros grupos indígenas, causando o extermínio sistemáticos de milhões deles ao longo dos séculos.

À medida que foram se ampliando e se diversificando os interesses econômicos dos europeus sobre as terras do Novo Mundo, mais e mais os indígenas tomaram a forma de obstáculos para o propósito da conquista total. Mesmo a ação de catequese, promovida por agentes da Igreja Católica, não conseguiu de todo frear a ação de dizimação à qual os nativos foram submetidos. E não é demais dizer que, por mais que uns e outros queiram enxergar apenas como benevolente a instituição da catequização, não é incorreto afirmar que ela própria também deu a sua contribuição ao progressivo e incessante processo de extermínio, porque o contato dos europeus significou, entre outros males, a chegada de doenças desconhecidas às aldeias e alterações significativas em seu modus vivendi.

Transcorridos quase 523 anos da chegada dos primeiros europeus a esta parte das Américas – e se considerarmos que Vicente Yañez Pinzón desembarcou em janeiro de 1500, em Pernambuco, a data já fechou -, nós que acompanhamos os conflitos que envolvem o homem branco e os povos indígenas vemos que a lógica do extermínio e da dizimação dessa gente permanece a mesmíssima desde o século XVI: os nativos continuam sendo vistos como os principais entraves do poder econômico para avançar sobres suas terras em busca sobretudo de madeiras nobres e de metais preciosos. Até o fator religioso permaneceu, agora contando com a ação também de protestantes.

O que de alguma forma mudou do alvorecer de 1500 para cá foram os meios com os quais os madeireiros, os garimpeiros, os pecuaristas, os caçadores e os traficantes de drogas e de animais silvestres  passaram a promover o massacre da gente nativa. Não se promove mais em larga escala uma verdadeira caçada a essa gente para aprisioná-la e/ou matá-la simplesmente. O avanço dos meios de destruição do habitat dos povos indígenas possibilitou que, em algumas poucas horas, com o emprego de motosserras, lança-chamas, tratores, escavadeiras e substâncias químicas, milhares de hectares de florestas nativas sejam postas abaixo para dar lugar a pastos, lavouras, estradas e pistas de pouso e de decolagem de aeronaves; e que rios sejam contaminados por metais pesados oriundos da ação do garimpo ilegal. E dizimar e exterminar e acabar com a floresta e poluir os rios é o mesmo que dizimar os povos indígenas, porque eles dependem desses recursos naturais e dos animais que existem nesses espaços, porque os povos indígenas vivem em comunhão e em simbiose com as terras em que habitam.

E note-se que, a ação orquestrada do poder econômico visando ao extermínio dos povos indígenas espalhados por todo o país e não só pela Região Amazônica, avança e ataca todo e qualquer um que se puser à frente em defesa dos nativos e que lute pela preservação do meio ambiente e pela exploração racional e segura dos recursos naturais. Foi assim com Chico Mendes. Foi assim com Dorothy Stang. E foi assim, mais recentemente com Bruno Pereira e Dom Phillips.

Os inimigos dos índios e das florestas não reconhecem e nem respeitam ninguém e nenhuma autoridade; eles passam por cima de tudo e de todos com uma voracidade e com uma crueldade absolutamente desmesuradas. E agem feroz e impunemente certos de que nada e nem ninguém poderá detê-los.

Este país e o resto do mundo vêm acompanhando o atual drama do povo yanomami. Nossa, é de fazer chorar as imagens que mostram curumins e índios adolescentes e adultos apresentando corpos esquálidos e esqueléticos vitimados pela desnutrição e por doenças como a malária. A fotografia da índia idosa que morreu dias atrás é uma das coisas mais chocantes que eu já vi. Índios maltratados. Índios abandonados. Índios passando fome. Índios abusados sexualmente por garimpeiros. Índios mais uma vez revelando a este país e ao mundo como, ao longo de quase 523 anos, de maneira coesa, eficaz e incessante, nós mantivemos uma ação de extermínio, de dizimação e de massacre dos povos nativos; e revelando também que, no decorrer de todos esses anos, o processo civilizatório não conseguiu, infelizmente, deter e domar aquilo que em nós é mais condenável e selvagem, que é o ímpeto que leva tantos a tirar a vida de seu semelhante. Por mais óbvio que isso seja, é preciso que se diga que índios não são apenas índios: índios são seres humanos.

A tragédia  humanitária que por ora atinge o povo yanomami deveria causar uma comoção nacional, mas, o que mais se vê, é troca de acusações quanto a responsabilidade pelo descaso e discursos de quem irresponsavelmente afirma que do que o índio realmente precisa é se aculturar e “levar uma vida de homem branco”, como se isso fosse garantia de que eles e o ambiente em que vivem fossem ficar livres e protegidos da sanha e da fome insaciável do poder econômico.

O tempo passa e nós permanecemos em larga escala irredutivelmente selvagens.

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