Por Sierra
Quantas lembranças cabem numa fotografia? O que foi que a lente da câmera ampliou? O que há por trás de cada registro fotográfico? Todas essas indagações e outras mais me chegaram quando, no último dia 2 de agosto, eu fui prestigiar a exposição A festa do fogo - Retrato de um forró no meu sertão, da Ana Araújo, que estava em cartaz, numa das salas da Torre Malakoff, no Bairro do Recife.
Com curadoria de Maria do Carmo Nino, a exposição é um encanto para os olhos e uma verdadeira celebração dos festejos juninos. É uma celebração da festa de São João e também uma declaração de amor ao lúdico, à dança, ao forró, a Tacaratu, cidade do interior pernambucano, e à vida que o tempo todo arde numa chama que nós queremos e precisamos ter sempre acesa.
A partir do momento em que eu entrei em contato com a obra de Gilberto Freyre, eu, que me graduei como bacharel em História, ou seja, eu tive uma formação acadêmica voltada para a prática da pesquisa, disse a mim mesmo que as minhas buscas como pesquisador deveriam seguir uma linha freyreana. E qual que seria essa linha, esse norte investigativo, digamos assim, que eu seguiria a partir dos trabalhos e dos ensinamentos aprendidos com o autor de O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX? Essa linha compreende o entendimento de que os ditos documentos que podem subsidiar o assunto de nossa pesquisa não podem ser resumidos aos ditos documentos escritos e produzidos pelas instituições. Eu aprendi com mestre Gilberto Freyre que nós podemos recorrer, para tanto, a uma imensa variedade de testemunhos sobre determinada época e/ou assunto: selos, moedas, diários, jornais, cadernos de receitas, cartões-postais, testamentos, cartas, móveis, livros, etc. Além, claro, de registros fotográficos. Gilberto Freyre tinha uma inteira clareza de que muitas coisas podem nos dizer sobre assuntos específicos e não somente os ditos documentos oficiais.
Eu acredito que, na verdade, o convívio com a obra freyreana acentuou em mim esse encanto e esse fascínio que desde há muito eu tenho pela fotografia como flagrantes congelados de um tempo. Daí por que, quando ele me ensinou a ver a fotografia também como um testemunho, eu busquei ler estudos sobre essa manifestação artística a fim de alargar a minha compreensão de sua natureza. E fiz isso também, claro, como necessidade de ofício, porque, afinal de contas, eu precisava ter o entendimento de que, ao contrário do que muitos dizem, uma imagem não fala por si só. Boris Kossoy destacou que "Toda fotografia tem sua origem a partir do desejo de um indivíduo que se viu motivado a congelar em imagem um aspecto dado do real, em determinado lugar e época" (Boris Kossoi. Fotografia & História. 5ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014, p. 40). Sendo assim, penso eu, do mesmo modo que nos referimos ao lugar de quem fala, nós devemos também nos referir ao lugar de quem fotografa.
Possivelmente foi se referindo ao "lugar de quem fotografa" que Roland Barthes escreveu que queria uma História dos Olhares, "Pois a fotografia é o advento de mim mesmo como outro: uma dissociação astuciosa da consciência de identidade" (Roland Barthes. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 22).
Enquanto eu via as tais fotografias que compuseram a exposição A festa do fogo, da Ana Araújo - com um apuro todo dela, a fotógrafa deu títulos a cada um dos seus registros - eu mergulhei no meu tempo de criança quando, em minha cidade natal, Abreu e Lima, as festas de São João eram um acontecimento muito intenso nas ruas, sem o aparato desses shows que vemos hoje em dia. E era tão bom assim. E era tão divertido. Ainda não eram prementes o cuidado e o apelo ecológicos e, por isso, nós adorávamos ver os balões subirem e sumirem no céu, como na música cantada por Luiz Gonzaga. E comíamos em torno das fogueiras. E éramos tão felizes com um pouco com o qual se fazia muito.
Noutro texto clássico sobre o registro fotográfico, Susan Sontag nos disse que "Toda foto tem múltiplos significados; de fato, ver algo na forma de uma foto é enfrentar um objeto potencial de fascínio. A sabedoria suprema da imagem fotográfica é dizer: 'Aí está a superfície. Agora, imagine - ou, antes, intua - o que está além, o que deve ser a realidade, se ela tem este aspecto'" (Susan Sontag. Sobre fotografia. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo. Companhia das Letras, 2004, p. 33). Pense nisso também quando estiver apreciando fotografias; imagine o que elas não revelam ao nosso olhar imediato.
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