23 de novembro de 2024

Nós ainda estamos aqui ou Pelo direito de não esquecer

 Por Sierra


Imagem: Divulgação
É preciso realmente nos posicionarmos firmemente e defender os ideais democráticos contra a fúria e a sanha dos incorrigíveis e desumanos tiranos sempre tão raivosamente sequiosos de exercerem seus "podres poderes", como anagramamente cantou o Caetano Veloso.


Quando começaram a noticiar o lançamento do novo filme do Walter Salles, Ainda estou aqui, baseado no livro homônimo do Marcelo Rubens Paiva, eu, naturalmente, dada a minha admiração pelos trabalhos do diretor e pelo fato de a narrativa abordar um acontecimento verídico ocorrido na década de 1970, ou seja, em plena vigência da Ditadura Militar no Brasil, período sobre o qual eu já li vários livros, eu fiquei na maior expectativa. E, como eu queria ter as minhas próprias impressões da obra, eu tratei de não ler resenhas a respeito dela na ocasião em que ela finalmente chegou aos cinemas.

Gozando dias de férias do trabalho aqui na Paraíba, na última quarta-feira, depois de passar umas boas horas curtindo as águas mornas da praia de Tambaú, em João Pessoa, eu segui para o Shopping Tambiá a fim de pegar a sessão das 18h5 do Cinesercla, precisamente na sala 3, poltrona G7.

Dada a atmosfera solar e muito envolvente que marca as sequências iniciais de Ainda estou aqui, junto com suas formidáveis reconstituição de época e direção de arte, além, claro, da trilha sonora, eu logo me vi tomado inteiramente por ela. E, à medida que tal atmosfera foi mudando de tom e ganhando nuances sombrias até mergulhar numa escuridão, eu me vi, em meio àquela sala de exibição quase lotada, como que adentrando também na mesma cela em que foi colocada a personagem Eunice Paiva, representada e vivida por Fernanda Torres numa atuação realmente cativante e convincente.

Foi exatamente assim que eu vi o filme do Walter Salles dividido ao meio: um tempo solar, vibrante e exalando alegria; e um período sombrio, melancólico e conduzido pela incerteza e pela agonia.

Muito embora a razão de ser da narrativa seja o acontecimento da prisão de Rubens Paiva - vivido por Selton Mello em mais uma de suas atuações memoráveis. E eu preciso dizer também aqui que as crianças e os adolescentes que atuaram no filme são muito bons atores -, marido de Eunice, é ela que conduz como uma locomotiva a estória com empenho e uma garra impressionantes.

Por onde começar examinando a grandeza admirável de Eunice Paiva? Eu não sei exatamente. E toda e qualquer avaliação e/ou descrição que eu fizer dela aqui será mínima e não conseguirá abarcar o tamanho que ela teve. Mas eu vou me arriscar a fazê-lo. Para mim Eunice Paiva foi uma dessas potências da natureza encarnadas numa mulher que carregou consigo a necessidade vital de exercer o papel de mãe ao mesmo tempo em que clamou por justiça por causa do desaparecimento e assassinato do seu marido, que lhe abriu um vácuo na existência que, eu presumo e imagino, só imagino, claro, foi extremamente aflitivo e deveras doloroso. Foi quase um calvário o que Eunice Paiva enfrentou durante muitos anos de angústia e de incerteza.

Ainda não li o livro que deu origem ao filme do Walter Salles; mas tratei de ler outra obra do Marcelo Rubens Paiva em que fragmentos do episódio de sumiço do seu pai foram relatados. Em Feliz ano velho nós já os deparamos com o gigantismo de Eunice Paiva e por ela somos também acolhidos e protegidos, porque a força do seu amor maternal extrapola as páginas do livro.

Eu confesso que, durante a sessão do filme, eu fiquei à espera de um momento arrebatador, de um instante em que às minhas lágrimas se juntaria ao menos um alento e um sopro de esperança. Mas como isso poderia acontecer? Não tinha como reescrever a História. Os acontecimentos da vida real estavam sendo representados ali e nós já sabíamos que não haveria um final feliz, porque as histórias dos perseguidos pelos ditadores militares não tiveram finais felizes. Foi tudo muito pungente e desumano. Não há o que comemorar. Mesmo a obtenção de um atestado de óbito para Rubens Paiva, ainda que se considere que o documento é uma prova de que o Estado admitiu a prática do crime que cometeu contra esse cidadão, crime esse que destroçou uma família inteira, a meu ver isso não tira a tristeza e nem apaga o sofrimento dos seus filhos. Foram muitos os mortos pelos agentes da Ditadura Militar. Foram muitas as famílias que não conseguiram sequer enterrar os corpos e/ou os restos mortais dos seus entes queridos.

Em tempos tão violentos, estúpidos e sombrios como este em que nós estamos vivendo, no qual milhares de pessoas saem às ruas pedindo que os militares instituam novamente uma ditadura neste país, como se as lições do passado não lhes tenham chegado às mãos e no qual assistimos à prisão de oficiais do Exército brasileiro acusados de planejarem o assassinato do presidente e do vice-presidente da República, democraticamente eleitos, e de  um ministro do Supremo Tribunal Federal odiado por aqueles que urdiram um golpe militar, é preciso realmente nos posicionarmos firmemente e defender os ideais democráticos contra a fúria e a sanha dos incorrigíveis e desumanos tiranos sempre tão raivosamente sequiosos de exercerem seus "podres poderes", como anagramamente cantou o Caetano Veloso.

Quando a sessão na sala 3 do Cinesercla, do Shopping Tambiá, terminou e não ocorreu manifestação de direitistas apoiadores do "inominável" e sim generosos e comoventes aplausos, isso não afastou de mim a tristeza que me tomara, mas me conferiu um ânimo necessário para continuar na vida sem baixar a cabeça e seguindo guiado pela luz do farol da liberdade mantido aceso pela democracia que ao menos por ora está vigorando neste país.

Marcelo Rubens Paiva, você não está sozinho: todos nós que defendemos a democracia e o respeito à dignidade humana ainda estamos aqui.

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