Por Sierra
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Foto: Alessandra Colasanti Marina Colasanti era uma expressão rara de serenidade num meio tão marcado por uma forte e estridente virulência |
Faz mais de dez anos que, num das minhas andanças pelos sebos do Recife, eu me deparei com um exemplar da segunda edição do livro Mulher daqui pra frente (Rio de Janeiro: Editorial Nórdica, 1981), da Marina Colasanti; e resolvi adquiri-lo. Havia tempos eu percorrera com certa avidez textos escritos por mulheres e sobre mulheres, quando me encontrava fazendo pesquisas sobre essa personagem extraordinária que é Nísia Floresta; e esse exercício intelectual mexeu e virou em minha cabeça uma chavezinha que despertou em mim um interesse pelas causas da mulher na sociedade.
Filho de uma mão solteira que passou por muitos maus bocados para poder criar dois filhos, é claro que eu tinha alguma noção sobre as agruras que as mulheres experimentam numa sociedade que é tão machista e preconceituosa como é a nossa, na qual os homens e/ou a maioria dos homens, do alto de um patriarcalismo nefando, feroz, intolerante e hostil, enxerga as mulheres tão somente como um animal domesticado e adestrado que serve apenas para proporcionar prazer sexual, procriar e cuidar da casa e da prole. Dito isso, ao começar a ler as narrativas escritas por mulheres abordando o papel e/ou papéis que couberam e ainda cabem a elas ao longo do tempo, eu de alguma forma estava, na verdade, lidando com um campo de conhecimento no qual, em alguma medida, eu vivia mergulhado, porque, além de minha mãe, havia outras mulheres sofridas em torno das quais eu gravitava.
Quando o Mulher daqui pra frente chegou às minhas mãos, eu já havia lido, por exemplo, Ser ou não ser feminista (Recife: Editora Guararapes, 1981), da Ana Montenegro; História das mulheres no Brasil (7ª ed. São Paulo: Contexto, 2004); e Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros (Trad. Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001), da Michelle Perrot. E foi carregando essas referências que eu me pus a percorrer as páginas do livro da Marina Colasanti; e eu gostei tanto do li.
Com sua prosa que sempre aspirou à condição de ser absolutamente clara - e parte dos textos que compuseram o livro saiu originalmente na revista Nova, destinada ao público feminino -, Marina Colasanti foi tecendo suas narrativas abordando temas como culpa, amor, tirania do desempenho sexual, assassinato de mulheres, filhos, orgasmo, aborto e rivalidade feminina. À certa altura do artigo "Amor responsável" ela nos disse o seguinte a propósito da intimidade que deveria existir entre os casais:
Intimidade é também que nos vem do reconhecimento e aceitação dos defeitos, nossos e dele. Um conhecimento que elimina a necessidade de esconder-se, a tentação de qualquer fingimento. Não é preciso fingir, se o outro nos ama exatamente pelo que somos (p. 136).
Enquanto eu me pegava lendo tal o livro da Marina Colasanti, eu falei sobre ele para um colega de trabalho; eu lhe disse que, mesmo considerando que essa obra tivesse sido escrita há mais de trinta anos, ela permanecia, em essência, muito atual, porque, em que pese as conquistas alcançadas pelas mulheres em várias frentes - sobretudo no mercado de trabalho -, as demandas que dizem respeito a elas não saem da ordem do dia, tendo em vista que, seja em qual classe social for que elas estejam, mulheres continuam sendo assassinadas aos magotes por seus maridos e companheiros, que continuam a vê-las como objetos que não têm vida própria e que lhes pertencem; mulheres permanecem em luta por pautas como direito ao aborto e equidade salarial; e, enfim, mulheres mantêm-se reivindicando um papel de protagonismo dizendo que elas não servem apenas e/ou não querem mais servir apenas para fazer sexo e cuidar da casa e dos filhos, porque o processo civilizador que tratou de arrancar de nós o máximo possível de nossa animalidade, não pode ter servido, no que se refere a elas, só e tão somente só para mantê-las nesses lugares e desempenhando essas funções.
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Eis aqui o meu exemplar do Mulher daqui pra frente |
Na última terça-feira, ao tomar conhecimento do falecimento desse verdadeiro monumento chamado Marina Colasanti, eu me peguei recordando a leitura do Mulher daqui pra frente, um livro que, eu não tenho dúvidas, mexeu em alguma medida comigo. Nas minhas redes sociais, tendo como background Fátima Guedes cantando "Flor de ir embora", eu disse a quem interessar pudesse, desse meu encontro com Marina Colasanti, que era dona de uma sensibilidade tamanha para falar sobre a condição da mulher em nossa sociedade. É preciso que se destaque isso, que a meu ver é muito importante: diferentemente do que se vê em geral por aí, atuando nas causas feministas, Marina Colasanti era uma expressão rara de serenidade num meio tão marcado por uma forte e estridente virulência.
Obrigado, Marina Colasanti, por me dar lições de antimachismo de modo tão sensível e delicado. Eu aprendi muito com você.
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