Por Sierra
Muito embora seja detentora de um rico patrimônio histórico edificado que está presente em várias localidades, Salvador, a "cidade mãe, a cidade ama de leite" de todas as cidades brasileiras, como dizia mestre Gilberto Freyre, (1) é sobre o bairro Pelourinho que recai o maior prestígio da capital baiana, turisticamente falando.
E isso não se dá por acaso. É que, depois de ter passado décadas sofrendo com o abandono e o risco de desabamento, imponentes sobrados daquele pedaço de Salvador praticamente renasceram com uma grande ação de restauro e reocupação dos prédios antigos que os colocaram como chamarizes para o trade turístico soteropolitano.
Enquanto uns e outros criticavam a iniciativa de revitalização do Pelourinho, designando o projeto como sendo um misto de cosmetização e gentrificação, como "coisa para turista ver", o fato foi que a fetichização do patrimônio histórico edificado daquele espaço inegavelmente passou a ser visto, quiçá, como o mais deslumbrante e aclamado cartão-postal de Salvador. (2)
Quando, em 2013, eu pisei pela primeira vez naquela cidade, eu já carregava comigo algumas referências sobre ela, tendo em vista que, além de ser um lugar que, assim como o Rio de Janeiro, tem a sua beleza plástica bastante difundida, àquela altura eu já mantinha em curso leituras e interesses intelectuais ligados às políticas de preservação do patrimônio histórico e artístico nacional, com ênfase no estudo sobre a formação de cidades no Brasil.
Dito isso, para mim foi um tanto quanto melancólico o meu circular pelas chamadas Cidade Baixa e Cidade Alta - e também para além delas -, porque eu me deparei com vários casos em que sobrados estavam com suas fachadas escoradas em estacas, um paliativo para que elas permanecessem ali e não desaparecessem do cenário e da memória urbana da cidade. Recordo-me de ter perguntado a mim mesmo como poderia ser que uma de nossas cidades mais antigas e que, ainda por cima, goza do status de ter sido a primeira capital do país, estivesse tão maltratada e deixando suas edificações históricas naquele estado de degradação.
Depois daquele ano, eu voltei a Salvador outras duas vezes; e, em que pese ações de restauro e revitalização pontuais e bastante louváveis, que eu vi aqui e ali, o fato é que o brilho - e/ou cosmetização, como dizem uns e outros - do Pelourinho continuava contrastando com a realidade triste, sombria e feia de edificações que continuavam em petição de miséria;
Na última quarta-feira todos aqueles que, no Brasil, mantêm contato com o noticiário nacional tomaram conhecimento de um acontecimento trágico e de todo lamentável: parte do forro do teto da belíssima Igreja de São Francisco de Assis, localizada no Pelourinho, desabou. Desabou provocando não somente estragos num patrimônio histórico e eclesiástico dos mais significativos de toda a Bahia e do país, mas também a morte de uma turista - a jovem Giulia Panchoni Righetto, de 26 anos de idade - e ferimentos em outras cinco pessoas. Foi uma verdadeira tragédia. E, pelo que foi divulgado na esteira desse terrível sinistro, tratou-se de mais uma dessas crônicas de uma tragédia anunciada que rondam centenas de edificações históricas espalhadas por este país afora.
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Detalhe da parte do forro do teto que desabou |
Como costuma ocorrer quando eventos dessa natureza acontecem, uma série de notícias revelaram outras de nossas tragédias cotidianas: o descaso, o desleixo e a protelação. A Coordenação de Defesa Civil de Salvador (Codesal) divulgou que existem pelo menos dois mil e setecentos imóveis em situação de abandono, localizados principalmente nos centros histórico e antigo, sendo que, desse total, cerca de 15% possuem rico alto e muito alto para desabamento ou incêndio; (3) levantamento esse feito em 2023 e que por si só revela como os olhos dos turistas e dos viajantes que percorrem esses espaços urbanos de nossas cidades antigas muitas vezes veem tão somente algo como meros cenários que, aparentemente bonitos, com fachadas coloridas, escondem, por trás, estruturas que estão desde há muito carecendo de manutenção e, por isso, correndo o risco de desabar.
No mesmo dia da tragédia ocorrida na chamada "Igreja do Ouro", porque grande parte do seu interior é folheado com esse minério, (4) o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) divulgou em seu site uma nota na qual disse o seguinte:
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), autarquia vinculada ao Ministério da Cultura (MinC) informa que havia agendado visita técnica à Igreja de São Francisco de Assis para a próxima quinta-feira (06/02), após pedido protocolizado na tarde da última segunda-feira para avaliação de uma dilatação do forro do teto da Igreja de São Francisco de Assis, em Salvador (BA), sem indicação de situação emergencial. Tampouco houve qualquer comunicado da Defesa Civil, Corpo de Bombeiros ou outros órgãos a respeito de eventuais riscos.
Além disso, esta autarquia já havia emitido auto de infração em março de 2022 à Província Franciscana de Santo Antônio do Brasil - Comunidade Franciscana da Bahia, proprietária do bem, em razão da degradação da Igreja por falta de manutenção e conservação, Reforça-se que a Igreja e o Convento de São Francisco são edificações de propriedade privada, cuja responsabilidade pela manutenção e pela preservação são de seu proprietário, assim como a gestão do seu uso.
Ainda assim, o Iphan, enquanto órgão de proteção do patrimônio cultural brasileiro, vem investindo na preservação e na restauração da Igreja, a exemplo das ações de restauro dos painéis de azulejaria portuguesa no valor de R$ 4,1 milhões, concluído em maio de 2023, e a elaboração do projeto de restauração total da Igreja e do Convento, atualmente em andamento, no valor de R$ 1, 2 milhão.
O Iphan reitera profundo pesar pelo falecimento da jovem Giulia Panchoni Righetto, assim como pelas outras seis pessoas que se feriram no trágico desabamento.
Finalmente, o Instituto permanece à disposição para colaborar com as investigações e adotar as medidas necessárias para a preservação e restauração do patrimônio histórico e cultural, reafirmando o compromisso com a proteção da memória nacional. (5)
Para os que, assim como eu, acompanham essas questões diretamente ligadas à preservação do patrimônio histórico edificado, a nota de esclarecimento emitida pelo Iphan sobre o ocorrido em Salvador é de uma clareza cristalina. Como eu já disse noutras ocasiões, a preservação e conservação de imóveis de quaisquer natureza requerem, em geral, um custo que pode ser bastante elevado, a depender da dimensão do prédio, e elevadíssimo se se tratar de uma edificação histórica, porque tais imóveis - e as igrejas ainda mais, dada a riqueza de detalhes arquitetônicos e as obras de arte que por vezes integram não apenas as suas fachadas, bem como os seus interiores - precisam de mão de obra restauradora muito especializada que, além disso, siga todas as normas estabelecidas pelo Iphan. E tudo isso custa muito caro - vocês viram o valor da elaboração do projeto de restauração total da igreja e do convento que consta na nota do Iphan? E esse valor vai subir por conta do que ocorreu na igreja.
A tragédia verificada na Igreja de São Francisco de Assis, de Salvador, deixou evidente, mais uma vez, que o patrimônio histórico edificado brasileiro, seja ele simples como um sobrado de pequena dimensão, seja uma joia da arquitetura religiosa, como aquele templo localizado no coração do Pelourinho, um dos lugares mais visitados do centro histórico da capital baiana, corre sério risco de ruína. Tal acontecimento revelou que não houve o devido cuidado para com a conservação e preservação do edifício eclesiástico. E, antes de terminar este parágrafo, eu quero deixar aqui uma pergunta que em mim não quer calar: será que a dilatação do forro do telhado ocorreu de uma hora para outra ou de um dia para o outro?
O jogo de empurra-empurra sobre a quem caberia e cabe a responsabilidade pelo sinistro ocorrido ali também é uma evidência da falta de um sério compromisso - e, vá lá, de recursos financeiros - dos gestores desse patrimônio para com a sua preservação e conservação. Infelizmente, esse tipo de tragédia se repete e parece que os órgãos responsáveis pela fiscalização dessas edificações não aprendem nada com isso.
Notas
1- Essas expressões apareceram, por exemplo, no artigo "Bahia à tarde", que Gilberto Freyre publicou originalmente no Diario de Pernambuco (Recife, 19 de março de 1926). Posteriormente ele foi republicado no segundo volume do livro Tempo de aprendiz, organizado por José Antonio Gonsalves de Mello (São Paulo: IBRASA - Instituição Brasileira de Difusão Cultural, em convênio com o Instituto Nacional do Livro, 1979, vol. II, p. 273-274); e na obra Bahia e baianos, que foi organizada por Edson Nery da Fonseca e lançada em 1990, da qual eu extraí a citação (p. 13).
2 - A título de exemplo do teor contundente dessas críticas seja visto o artigo "Será o novo Pelourinho um engano?", de Roberto Marinho de Azevedo, aparecido no nº 23 da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, no qual ele, além de ter registrado suas próprias impressões sobre o processo de revitalização do Pelourinho - ele chegou mesmo a dizer assim: "Dizem uns (e é certo o que dizem) que, sem a obra realizada pelo governo estadual, o Pelourinho acabaria caindo aos pedações. Ou seria vítima de incêndios - criminosos ou não - tão habituais em Salvador e em outros lugares onde a preservação do patrimônio é um empecilho ao lucro imobiliário [...] Mas a reforma tem o seu reverso. O Pelourinho se transformou em um cenário. Aquele bairro onde se sentia o velho Salvador aparece hoje como um teatro onde se representa Salvador para turistas" (p. 131) -, trouxe avaliações feitas por estudiosos como Fernando da Rocha Perez, Maria Elisa Costa e Cid Teixeira.
3 - Essas informações foram divulgadas pela edição eletrônica do jornal O Globo, na reportagem "Salvador tem mais de 2,7 mil imóveis em situação de abandono, aponta relatório da Defesa Civil", publicada no dia 6 de fevereiro de 2025.
4 - No "Roteiro" que integra o lindíssimo quarto volume da obra Nordeste histórico e monumental, concebido por Clarival Valladares que, infelizmente, faleceu antes que tal volume fosse concluído, tarefa que coube ao professor Cid Teixeira, este disse assim sob o subtítulo "Uma igreja 'toda de ouro'": "Esta igreja de hoje, decerto o monumento baiano de mais abundante registro iconográfico, substitui, como na imensa maioria dos casos, templo modesto contemporâneo da chegada dos primeiros frades [da Ordem Terceira de São Francisco a Salvador]", p. 50.
Num guia turístico de Salvador, possivelmente publicado em 1952, porque este é o ano que aparece datando o texto do preâmbulo escrito pelo então prefeito da capital baiana Osvaldo Veloso Gordilho, foi dito assim desse templo do século XVIII que integra o conjunto do Convento da Ordem Terceira de São Francisco:
Em frente, a uma cruz trabalhada, de marmore (sic) português, está o Convento de S. Francisco com sua famosa igreja - modelo e tipo de quantas de estilo barôco (sic) e opulências de talha colonial se espalham pelo Brasil. Mal o visitante penetra à nave, estaca surpreso, adaptando a vista e o espírito, em impressões que não pode bem caracterizar, no primeiro instante. Depois, começa a ver a abundância de lavores, colunas torças, arcos enfeitados, passaros, (sic) ramos, cachos, cariatides, (sic) tudo numa opulência de ouros e esculturas que são demasia pesadas para o bom-gosto, (sic) mas documento eloquentíssimo da arte de uma época (Roteiro turístico da cidade do Salvador, sem paginação).
5 - "Nota - desabamento do forro do teto da Igreja de São Francisco de Assis em Salvador (BA)". Essa nota do Iphan diz que, além da vítima fatal, outras seis pessoas ficaram feridas; no entanto, vários sites de notícias informaram que foram cinco feridos.
Fontes e bibliografia
AZEVEDO, Roberto Marinho de. "Será o novo Pelourinho um engano?". In Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 23, 1994, p. 131-137.
FREYRE, Gilberto. "Bahia à tarde". In Bahia e baianos. Edson Nery da Fonseca (org.). Salvador. Fundação das Artes/Empresa Gráfica da Bahia, 1990, p. 13-14.
"Nota - desabamento do forro do teto da Igreja de São Francisco de Assis em Salvador (BA)!. In Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (https://www.gov.br/iphan/pt-br/sala-de-imprensa/pautas-e-releases/nota-desabamento-do-teto-da-igreja-de-sao-francisco-de-assis-em-salvador-ba). Publicado em 5 de fevereiro de 2025. Acessado em 7 de fevereiro de 2025.
Roteiro turístico da cidade do Salvador. Salvador: Prefeitura Municipal do Salvador, s.d.
"Salvador tem mais de 2,7 mil imóveis em situação de abandono, aponta relatório da Defesa Civil". In O Globo (https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2025/02/06/salvador-tem-mais-de-27-mil-imoveis-em-situacao-de-abandono-aponta-relatorio-da-defesa-civil.ghtml). Publicado em 6 de fevereiro de 2025. Acessado em 7 de fevereiro de 2025.
TEIXEIRA, Cid. "Roteiro". In Clarival do Prado Valladares. Nordeste histórico e monumental - Volume IV - Bahia. s. l. Odebrecht S. A., 1990, p. 29-79.
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