5 de abril de 2025

Sobre a necessidade de silenciar

 Por Sierra


Imagem: Dreamstime.com
E
u não vou me punir por causa do silêncio de ontem, porque a cumplicidade que ele conteve e contém não foi e não é com a prática de crimes. Longe disso. Trata-se, a bem da verdade, de um regime de cumplicidade havida entre dois indivíduos que se desnudaram um para o outro com aquela confiança que não é fácil de ser encontrada por aí


Ontem, à tarde, após o expediente do trabalho, eu tomei o rumo de Olinda para ir flanar por ruas e ladeiras do seu sítio histórico. Às vezes eu sou acometido por uma vontade enorme de rever lugares e pisar seus chãos. Eu sinto nessa força de deslocamento uma clara conexão com meus mecanismos de saudade. Saudade de um tempo. Saudade de um acontecimento. Saudade de pessoas...

Estava eu por ali flanando por aqueles caminhos antigos, fazendo autorretratos para alimentar o meu narcisismo superexposto nas redes sociais e também registros da paisagem urbana que tanto me fascina e me diz para onde eu quero permanecer indo nas rotas da vida que me forem possível percorrê-las.

Como eu ia lhes dizendo, eu me encontrava ali, como um flâneur que às vezes eu costumo encarnar, percorrendo o sítio histórico da primeira capital de Pernambuco, quando reencontrei uma pessoa querida, uma grande artista da música que eu conheço há muitos anos. Abraçamo-nos. Atualizamos brevemente nossas vidas um para o outro. Até que, de modo insistente, ela quis saber por que eu me afastei do convívio com o grupo do qual ela faz parte. Eu contemporizei e me limitei a dizer que eu sou uma pessoa difícil de manter relações, sejam elas de que natureza forem: afetivas, de amizade, comerciais, etc. E a insistência da minha interlocutora para que eu falasse deixou claro para ela que a minha resposta não lhe fora suficiente e/ou convincente. Mas eu resisti. E não falei.

E por que foi que eu, que normalmente falo - e,  às vezes, até demais - sem nenhum embaraço e até, por vezes, sem pesar as consequências, resolvi me calar, resolvi optar pelo silêncio naquele momento, forçando, inclusive, uma despedida para que a conversa não se demorasse? Eu refleti que a circunstância do que me foi indagado me deu uma certeza de que o melhor a fazer, naquele instante, era mesmo silenciar, porque havia no todo do enredo guardado em mim sobre as tais motivações que causaram e provocaram o meu afastamento do grupo, assuntos e acontecimentos que eu considerei que não deveriam ser compartilhados com aquela pessoa que, talvez, só quisesse arrancar de mim uma confissão para usá-la com sei lá que propósito.

Poucas vezes em toda a minha vida até aqui eu me vi capaz de lançar mão do silêncio como não somente um exercício de autoanálise, mas também de compreensão de que não era apropriado que eu me danasse a falar e descrever atos, diálogos e embates travados que só diziam e dizem respeito a mim e à pessoa com a qual eu troquei confidências, afinal, as nossas conversas foram só nossas mesmo, numa relação de íntima confiança.

Em dado momento, quando eu, depois de tanto bater perna pelas ruas e ladeiras de Olinda, parei na Praça do Carmo para descansar, eu me peguei, por um instante, refletindo sobre a circunstância daquele meu silêncio; e julguei que ele foi necessário e providencial; e que, embora costumeiramente eu seja uma verdadeira língua de trapo, eu me certifiquei ali de que eu também sou capaz de guardar meus pensamentos em um dos escaninhos da minha cabeça e deixá-los em repouso, sem precisar externá-los e mostrá-los a quem quer que seja.

Reconheço que, para mim, no mais das vezes, calar e silenciar é como fugir; é como praticar um ato de nefanda e indesculpável covardia, porque me faz avaliar que, não raro, silenciar é ser cúmplice de malfeitorias, de ações criminosas e/ou deveras reprováveis. E eu temo ser refém desse silêncio cúmplice de maldades, porque eu acabo me vendo como um quase participante do ato.

Mas eu não vou me punir por causa do silêncio de ontem, porque a cumplicidade que ele conteve e contém não foi e não é com a prática de crimes. Longe disso. Trata-se, a bem da verdade, de um regime de cumplicidade havida entre dois indivíduos que se desnudaram um para o outro com aquela confiança que não é fácil de ser encontrada por aí. Os meus desentendimentos com o sujeito não querem dizer que, de uma hora para outra, eu tenha passado a ser um inimigo dele. Não, nada disso. Eu continuo acreditando que o nosso encontro na vida me deu várias lições; e eu sei que, pelo menos algumas delas, continuarão comigo até o fim dos meus dias.

Ontem, em Olinda, naquela tarde tão convidativa para passeios a pé, eu lancei mão do silêncio, eu recorri ao silêncio para guardar comigo uma ideia de confiança mútua e plena.                                                                                                                                                     

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