Por Sierra
Por mais importantes que eles sejam para a história de um determinado lugar, patrimônios históricos edificados e os seus entornos costumam repelir em vez de atrair pessoas, caso eles estejam descuidados e degradados, porque, ainda que seja muito evidente que muitos de nós façamos uma distinção entre o espaço privado de nossa casa e o espaço público da rua e da praça, não são poucos os que mantêm para com os espaços públicos um interesse que beira o afetivo, como se eles fossem uma extensão do espaço da moradia, de modo que essas pessoas esperam que esses territórios estejam tão bem cuidados e limpos como suas próprias casas.
Não é raro que encontremos por aí indivíduos que
expressam uma verdadeira devoção por algum lugar público da cidade onde vivem
ou de outra que eles conhecem. E isso se dá por inúmeras razões, como: é o
lugar onde nasceram, onde se formaram, onde pela primeira vez foram a um
teatro, onde conheceram a sua cara-metade, etc. etc. E há quem admire esse ou
aquele lugar e goste de frequentá-lo com alguma regularidade, porque, revê-lo -
e eu tiro isso por mim e por algumas pessoas que eu conheço - é como um
reencontro e uma revivescência muito fortes e revigorantes.
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| Beco que leva à Rua Duque de Caxias: ocupado Há décadas por barracas que, além de enfear e atrapalhar a passagem dos transeuntes, se fixaram às paredes das edificações |
Ao longo da minha vida eu vi sendo desenvolvidos em mim um apego e um desejo por certos lugares que tiveram e têm um significado que eu julgo ser muito importante na minha trajetória até aqui. E um desses lugares, um desses espaços públicos é a Praça Dezessete, localizada no bairro de Santo Antônio, no Recife.
E por que isso? Vamos lá: eu era uma criança que
morava em Abreu e Lima, onde nasci, e minha mãe, solteira, trabalhava na loja Cattan, cuja frente era voltada para a Rua Duque de Caxias e os fundos para a Praça Dezessete; e ela me levava algumas vezes, aos sábados, para ficar lá e,
também, na banca de revistas de sua amiga Sônia, que ficava no lado direito da
Igreja do Divino Espírito Santo. E esses meus primeiros contatos com aquele
cenário me marcaram muito profundamente à medida que, no transcurso do tempo, o
núcleo urbano primitivo do Recife foi se consolidando como objeto de interesse
não só afetivo, mas também de estudos.
Uma das quinze praças que receberam projeto paisagístico de Roberto Burle Marx na capital pernambucana, a Praça Dezessete, além disso, ocupa um dos espaços historicamente mais significativos da evolução urbana da Ilha de Santo Antônio, que abriga dois bairros: o homônimo e o de São José. Naquela praça voltada para o antigo Cais do Colégio, que tinha esse nome por causa do Colégio dos Jesuítas, que foi demolido, desembarcou Dom Pedro II em 22 de novembro de 1859, conforme noticiou O Monitor das Famílias:
Eram onze e meia
horas da manhãa quando a galeota imperial chegou á rampa do caes do Collegio e
SS. MM. desembarcando immediatamente, subiram para o pequeno pavilhão chinez
onde beijaram reverentes a imagem do crucificado que lhes foi apresentada por
S. Exc.ª Rvm.ª o Sr. Bispo Diocesano [...]
O largo do Collegio,
a rua do mesmo nome e a da Cadeia, por onde passaram SS. MM., estavam todas
guarnecidas de tropa formada em alas. O povo que as enchia era immenso e as
acclamações com que atroavam os ares não permittiam ouvir-se nada mais (O Monitor das Famílias;
periódico de instrução e recreio. Fac-símile da 1ª edição. Recife:
Fundarpe/Diretoria de Assuntos Culturais, 1985, p. 4 e 5. A série inicial desse
informativo teve seis números; e circulou entre 2 de dezembro de 1859 a 22 de
janeiro de 1860).
Seguindo o quadro de reformas e bota-abaixo que marcou
o núcleo urbano primitivo do Recife, também o perímetro em torno do antigo Cais
do Colégio passou por uma grande transformação.
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| Entre os vários problemas que esse edifício eclesiástico apresenta, estão janelas danificadas e vegetação enraizada nas torres |
Quando assumiu o governo de Pernambuco, em abril de 1904, o desembargador Sigismundo Gonçalves nomeou o comendador Eduardo Martins de Barros para prefeito. E a cidade vivenciou um período de muitas obras. "As picaretas começaram a agir e os edifícios a vir abaixo", registrou Mário Sette, pondo a capital pernambucana em sintonia com os trabalhos de remodelação urbana que o prefeito Francisco Pereira Passos estava fazendo no Rio de Janeiro, então capital federal, num período historicamente conhecido como belle époque, época essa que, entre nós, foi marcada por muitas demolições e reconstruções de espaços urbanos. E destacou isto o nosso amado cronista pernambucano:
Martins de Barros não
descansava. O velho Cais do Colégio, o remoto "Passeio Público" de
nossos avós, precisava igualmente uma reforma. O encanto do rio e do cais feria
o espírito cheio de bom gosto do prefeito de 1904. Era mister endireitar, ao
menos, esse trecho próximo da Faculdade de Direito, da Igreja do Espírito
Santo, do Quartel-general, do Jardim 1817, e ponto de desembarque para
viajantes ilustres, como já o fora para Pedro II. Calçou, botou muralha,
colocou banquinhos, plantou árvores. E nasceu a Avenida Beira-rio, que tem
hoje, merecidamente, o nome de Martins de Barros
(Mário Sette. Arruar: história pitoresca
do Recife antigo. 3ª ed. Recife: Governo do Estado de Pernambuco/Secretaria
de Educação e Cultura, 1978; ambas as citações na p. 53. A Faculdade de Direito
funcionou durante muito tempo nas dependências do Colégio dos Jesuítas, que era
anexo à igreja).
Marcada pela presença do monumento em homenagem aos aviadores portugueses Sacadura Cabral e Gago Coutinho, pela escultura da fonte e pelo casario do entorno que, infelizmente, foi, em parte, descaracterizado - com a demolição do Colégio dos Jesuítas, foi aberta a Rua do Imperador Pedro II e foi construído o Grande Hotel que, tempos depois, passou a abrigar o Fórum Thomaz de Aquino Cyrillo Wanderley -, a Praça Dezessete - homenagem à Revolução Pernambucana de 1817 - tem como grande e principal atrativo a imponente Igreja do Divino Espírito Santo.
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| Ícaro prestes a alçar voo: monumento em homenagem aos aviadores portugueses Sacadura Cabral e Gago Coutinho |
Segundo o historiador Flávio Guerra, data de 26 de abril de 1655 a ordem régia, firmada por Dom João IV, que concedeu licença aos padres jesuítas para "fundarem um colégio na povoação do Recife, em uma igreja que pertencera aos herejes (sic) franceses da seita de Calvino", que foi erguida à época da dominação holandesa, tendo os trabalhos de reconstrução sido concluídos em 1689 (Flávio Guerra. "Igreja do Espírito Santo". In Velhas igrejas e subúrbios históricos. Recife: Prefeitura Municipal do Recife/Departamento de Documentação e Cultura, 1961, p. 31).
Nessa obra indispensável para o conhecimento de muito
da história do burgo recifense, Flávio Guerra reproduziu uma encantadora imagem
da Praça Dezessete registrada em fins do século XIX e nos disse dos tantos
abandonos e perdas por que passou a Igreja do Divino Espírito Santo, sem falar
dos atos de profanação desse templo católico, como o ocorrido em 1817, ocasião
em que tropas, comandadas pelo governador-geral Luís do Rêgo, vieram da Corte
para combater os últimos insurretos; ele instalou a sede do seu governo no Colégio
dos Jesuítas, anexo à igreja; e os seus soldados alojaram dentro do
templo, "no recinto do próprio santuário, cavalos de ajudantes-de-ordens e
de outros oficiais" (Flávio Guerra. Op. cit., p. 33).
Tendo tomado conhecimento de que, assim como fizera
nos adros da Igreja de Santa Cecília e da Igreja de Nossa Senhora do
Livramento, a Prefeitura Municipal do Recife promovera uma revitalização da Praça
Dezessete e, principalmente, removera por completo os vários estabelecimentos
comerciais que há muitas décadas ocupavam, emasculavam e enfeavam a lateral
direita da Igreja do Divino Espírito Santo, na manhã do último dia 5 de
novembro lá fui eu conferir bem de pertinho os serviços que foram feitos ali.
Durante muitos anos a Praça Dezessete sofreu com o
descaso do poder público. Descaso esse que era visto no acúmulo de lixo, na
falta de cuidado dos jardins, nos bancos danificados, na escuridão reinante; tudo
isso e mais a presença maciça e constante de moradores de rua - dizem que o
correto é usar a expressão "pessoas em condições de rua" -, também
eles abandonados e desamparados pelo poder público, além de afastar dali
turistas e visitantes outros, davam um tom melancólico àquele pedacinho do
bairro de Santo Antônio.
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| Fundos da Igreja do Divino Espírito Santo |
Na manhã ensolarada em que eu fui conferir a
revitalização da Praça Dezessete, tudo nela foi para mim motivo de contemplação
e de alegria, porque, desde que eu comecei a me interessar pelas políticas e
ações de preservação dos espaços urbanos, em geral, e das paisagens e das
edificações históricas, em particular, eu compreendi que cuidar da memória
urbana é preservar parte do caráter mais íntimo das cidades.
Além de revitalizar os jardins e a fonte, promover a
troca dos bancos e dar um trato no monumento que homenageia os aviadores
portugueses Sacadura Cabral e Gago Coutinho - a estátua imponente de um Ícaro
prestes a alçar voo é deslumbrante -, trataram de instalar nela um sistema de
iluminação - sistema esse que eu vira dias antes, ao passar por ali de ônibus,
à noite - que deixou o lugar como que mergulhado numa atmosfera onírica e feérica.
Conversando com um policial militar que rondava por
lá, eu fiquei sabendo que o Tribunal de Justiça de Pernambuco
"adotara" a praça, iniciativa essa que, tempos atrás, era muito
abraçada, principalmente por empresas privadas, e que era por demais louvável,
porque nos fazia acreditar que os logradouros seriam muito bem cuidados, uma
vez que os adotantes não iriam querer ver seus nomes ligados a espaços sujos e
degradados.
De acordo ainda com o historiador Flávio Guerra, o
logradouro recentemente revitalizado pela Prefeitura Municipal do Recife teve
várias denominações no transcurso do tempo:
Vários nomes tem tido
até hoje a praça onde está localizada a Igreja [do Divino Espírito Santo], e
onde existiu o Colégio dos Jesuítas: Pátio do Colégio, Praça D. Pedro II, Praça
1817 (mais vulgarmente conhecida como Praça 17), e finalmente Largo do Espírito
Santo (Flávio Guerra. Op. cit., p. 35).
Ao correr dos séculos, a Igreja do Divino Espírito
Santo sofreu inúmeras avarias e perdas. Quando, naquela manhã ensolarada, eu
"inspecionei" o imponente templo católico, mirei seu teto sem forro,
plantas crescendo em pontos diversos das torres, pedaços do frontão se
despedaçando, janelas com vidros quebrados e parede do fundo, que é voltada
para a Avenida Nossa Senhora do Carmo, com ares de abandono, eu lamentei que
tal edificação eclesiástica tão importante para a história do núcleo urbano
primitivo do Recife não tivesse, também ela, passado por um acurado processo de
restauração e revitalização, como ocorreu com a Praça Dezessete, da qual ela é
o principal e maior atrativo.

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