15 de novembro de 2025

A revitalização da Praça Dezessete ou Cuidar da memória urbana é preservar parte do caráter mais íntimo das cidades

 Por Sierra

 

 

Fotos: Arquivo do Autor
Depois de passar muitos anos em estado de quase completo abandono, a Praça Dezessete foi revitalizada para a alegria e satisfação de todos aqueles que ainda frequentam com regularidade o centro do Recife. Falta agora que a Igreja do Divino Espírito Santo passe também pela por um acurado processo de restauração e revitalização

Por mais importantes que eles sejam para a história de um determinado lugar, patrimônios históricos edificados e os seus entornos costumam repelir em vez de atrair pessoas, caso eles estejam descuidados e degradados, porque, ainda que seja muito evidente que muitos de nós façamos uma distinção entre o espaço privado de nossa casa e o espaço público da rua e da praça, não são poucos os que mantêm para com os espaços públicos um interesse que beira o afetivo, como se eles fossem uma extensão do espaço da moradia, de modo que essas pessoas esperam que esses territórios estejam tão bem cuidados e limpos como suas próprias casas.

Não é raro que encontremos por aí indivíduos que expressam uma verdadeira devoção por algum lugar público da cidade onde vivem ou de outra que eles conhecem. E isso se dá por inúmeras razões, como: é o lugar onde nasceram, onde se formaram, onde pela primeira vez foram a um teatro, onde conheceram a sua cara-metade, etc. etc. E há quem admire esse ou aquele lugar e goste de frequentá-lo com alguma regularidade, porque, revê-lo - e eu tiro isso por mim e por algumas pessoas que eu conheço - é como um reencontro e uma revivescência muito fortes e revigorantes.








Beco que leva à Rua Duque de Caxias: ocupado Há décadas por barracas que, além de enfear e atrapalhar a passagem dos transeuntes, se fixaram às paredes das edificações



Ao longo da minha vida eu vi sendo desenvolvidos em mim um apego e um desejo por certos lugares que tiveram e têm um significado que eu julgo ser muito importante na minha trajetória até aqui. E um desses lugares, um desses espaços públicos é a Praça Dezessete, localizada no bairro de Santo Antônio, no Recife.

E por que isso? Vamos lá: eu era uma criança que morava em Abreu e Lima, onde nasci, e minha mãe, solteira, trabalhava na loja Cattan, cuja frente era voltada para a Rua Duque de Caxias e os fundos para a Praça Dezessete; e ela me levava algumas vezes, aos sábados, para ficar lá e, também, na banca de revistas de sua amiga Sônia, que ficava no lado direito da Igreja do Divino Espírito Santo. E esses meus primeiros contatos com aquele cenário me marcaram muito profundamente à medida que, no transcurso do tempo, o núcleo urbano primitivo do Recife foi se consolidando como objeto de interesse não só afetivo, mas também de estudos.


Quem te viu, quem te vê: durante décadas, todo esse lado direito da Igreja do Divino Espírito Santo permaneceu ocupado por vários estabelecimentos comerciais, numa demonstração absurda do desrespeito para com o ordenamento urbano e da falta de ação do poder público para reverter a situação















Uma das quinze praças que receberam projeto paisagístico de Roberto Burle Marx na capital pernambucana, a Praça Dezessete, além disso, ocupa um dos espaços historicamente mais significativos da evolução urbana da Ilha de Santo Antônio, que abriga dois bairros: o homônimo e o de São José. Naquela praça voltada para o antigo Cais do Colégio, que tinha esse nome por causa do Colégio dos Jesuítas, que foi demolido, desembarcou Dom Pedro II em 22 de novembro de 1859, conforme noticiou O Monitor das Famílias:

Eram onze e meia horas da manhãa quando a galeota imperial chegou á rampa do caes do Collegio e SS. MM. desembarcando immediatamente, subiram para o pequeno pavilhão chinez onde beijaram reverentes a imagem do crucificado que lhes foi apresentada por S. Exc.ª Rvm.ª o Sr. Bispo Diocesano [...]

O largo do Collegio, a rua do mesmo nome e a da Cadeia, por onde passaram SS. MM., estavam todas guarnecidas de tropa formada em alas. O povo que as enchia era immenso e as acclamações com que atroavam os ares não permittiam ouvir-se nada mais (O Monitor das Famílias; periódico de instrução e recreio. Fac-símile da 1ª edição. Recife: Fundarpe/Diretoria de Assuntos Culturais, 1985, p. 4 e 5. A série inicial desse informativo teve seis números; e circulou entre 2 de dezembro de 1859 a 22 de janeiro de 1860).

Seguindo o quadro de reformas e bota-abaixo que marcou o núcleo urbano primitivo do Recife, também o perímetro em torno do antigo Cais do Colégio passou por uma grande transformação.










Entre os vários problemas que esse edifício eclesiástico apresenta, estão janelas danificadas e vegetação enraizada nas torres



Quando assumiu o governo de Pernambuco, em abril de 1904, o desembargador Sigismundo Gonçalves nomeou o comendador Eduardo Martins de Barros para prefeito. E a cidade vivenciou um período de muitas obras. "As picaretas começaram a agir e os edifícios a vir abaixo", registrou Mário Sette, pondo a capital pernambucana em sintonia com os trabalhos de remodelação urbana que o prefeito Francisco Pereira Passos estava fazendo no Rio de Janeiro, então capital federal, num período historicamente conhecido como belle époque, época essa que, entre nós, foi marcada por muitas demolições e reconstruções de espaços urbanos. E destacou isto o nosso amado cronista pernambucano:

Martins de Barros não descansava. O velho Cais do Colégio, o remoto "Passeio Público" de nossos avós, precisava igualmente uma reforma. O encanto do rio e do cais feria o espírito cheio de bom gosto do prefeito de 1904. Era mister endireitar, ao menos, esse trecho próximo da Faculdade de Direito, da Igreja do Espírito Santo, do Quartel-general, do Jardim 1817, e ponto de desembarque para viajantes ilustres, como já o fora para Pedro II. Calçou, botou muralha, colocou banquinhos, plantou árvores. E nasceu a Avenida Beira-rio, que tem hoje, merecidamente, o nome de Martins de Barros (Mário Sette. Arruar: história pitoresca do Recife antigo. 3ª ed. Recife: Governo do Estado de Pernambuco/Secretaria de Educação e Cultura, 1978; ambas as citações na p. 53. A Faculdade de Direito funcionou durante muito tempo nas dependências do Colégio dos Jesuítas, que era anexo à igreja).








Marcada pela presença do monumento em homenagem aos aviadores portugueses Sacadura Cabral e Gago Coutinho, pela escultura da fonte e pelo casario do entorno que, infelizmente, foi, em parte,  descaracterizado - com a demolição do Colégio dos Jesuítas, foi aberta a Rua do Imperador Pedro  II e foi construído o Grande Hotel que, tempos depois, passou a abrigar o Fórum Thomaz de Aquino Cyrillo Wanderley -, a Praça Dezessete - homenagem à Revolução Pernambucana de 1817 - tem como grande e principal atrativo a imponente Igreja do Divino Espírito Santo.










Ícaro prestes a alçar voo: monumento em homenagem aos aviadores portugueses Sacadura Cabral e Gago Coutinho




Segundo o historiador Flávio Guerra, data de 26 de abril de 1655 a ordem régia, firmada por Dom João IV, que concedeu licença aos padres jesuítas para "fundarem um colégio na povoação do Recife, em uma igreja que pertencera aos herejes (sic) franceses da seita de Calvino", que foi erguida à época da dominação holandesa, tendo os trabalhos de reconstrução sido concluídos em 1689 (Flávio Guerra. "Igreja do Espírito Santo". In Velhas igrejas e subúrbios históricos. Recife: Prefeitura Municipal do Recife/Departamento de Documentação e Cultura, 1961, p. 31).

Nessa obra indispensável para o conhecimento de muito da história do burgo recifense, Flávio Guerra reproduziu uma encantadora imagem da Praça Dezessete registrada em fins do século XIX e nos disse dos tantos abandonos e perdas por que passou a Igreja do Divino Espírito Santo, sem falar dos atos de profanação desse templo católico, como o ocorrido em 1817, ocasião em que tropas, comandadas pelo governador-geral Luís do Rêgo, vieram da Corte para combater os últimos insurretos; ele instalou a sede do seu governo no Colégio dos Jesuítas, anexo à igreja; e  os seus soldados alojaram dentro do templo, "no recinto do próprio santuário, cavalos de ajudantes-de-ordens e de outros oficiais" (Flávio Guerra. Op. cit., p. 33).


Imagem publicada entre as páginas 32 e 33 do livro Velhas igrejas e subúrbios históricos, de Flávio Guerra. Atrás da imagem aparece a seguinte legenda: "Praça 17 em fins do século XIX - Ao fundo vê-se a Igeja do  Espírito Santo e ainda restos do antigo Colégio dos Jesuítas"


Tendo tomado conhecimento de que, assim como fizera nos adros da Igreja de Santa Cecília e da Igreja de Nossa Senhora do Livramento, a Prefeitura Municipal do Recife promovera uma revitalização da Praça Dezessete e, principalmente, removera por completo os vários estabelecimentos comerciais que há muitas décadas ocupavam, emasculavam e enfeavam a lateral direita  da Igreja do Divino Espírito Santo, na manhã do último dia 5 de novembro lá fui eu conferir bem de pertinho os serviços que foram feitos ali.

Durante muitos anos a Praça Dezessete sofreu com o descaso do poder público. Descaso esse que era visto no acúmulo de lixo, na falta de cuidado dos jardins, nos bancos danificados, na escuridão reinante; tudo isso e mais a presença maciça e constante de moradores de rua - dizem que o correto é usar a expressão "pessoas em condições de rua" -, também eles abandonados e desamparados pelo poder público, além de afastar dali turistas e visitantes outros, davam um tom melancólico àquele pedacinho do bairro de Santo Antônio.


Fundos da Igreja do Divino Espírito Santo










Na manhã ensolarada em que eu fui conferir a revitalização da Praça Dezessete, tudo nela foi para mim motivo de contemplação e de alegria, porque, desde que eu comecei a me interessar pelas políticas e ações de preservação dos espaços urbanos, em geral, e das paisagens e das edificações históricas, em particular, eu compreendi que cuidar da memória urbana é preservar parte do caráter mais íntimo das cidades.

Além de revitalizar os jardins e a fonte, promover a troca dos bancos e dar um trato no monumento que homenageia os aviadores portugueses Sacadura Cabral e Gago Coutinho - a estátua imponente de um Ícaro prestes a alçar voo é deslumbrante -, trataram de instalar nela um sistema de iluminação - sistema esse que eu vira dias antes, ao passar por ali de ônibus, à noite - que deixou o lugar como que mergulhado numa atmosfera onírica e feérica.

Conversando com um policial militar que rondava por lá, eu fiquei sabendo que o Tribunal de Justiça de Pernambuco "adotara" a praça, iniciativa essa que, tempos atrás, era muito abraçada, principalmente por empresas privadas, e que era por demais louvável, porque nos fazia acreditar que os logradouros seriam muito bem cuidados, uma vez que os adotantes não iriam querer ver seus nomes ligados a espaços sujos e degradados.

De acordo ainda com o historiador Flávio Guerra, o logradouro recentemente revitalizado pela Prefeitura Municipal do Recife teve várias denominações no transcurso do tempo: 

Vários nomes tem tido até hoje a praça onde está localizada a Igreja [do Divino Espírito Santo], e onde existiu o Colégio dos Jesuítas: Pátio do Colégio, Praça D. Pedro II, Praça 1817 (mais vulgarmente conhecida como Praça 17), e finalmente Largo do Espírito Santo (Flávio Guerra. Op. cit., p. 35).

Ao correr dos séculos, a Igreja do Divino Espírito Santo sofreu inúmeras avarias e perdas. Quando, naquela manhã ensolarada, eu "inspecionei" o imponente templo católico, mirei seu teto sem forro, plantas crescendo em pontos diversos das torres, pedaços do frontão se despedaçando, janelas com vidros quebrados e parede do fundo, que é voltada para a Avenida Nossa Senhora do Carmo, com ares de abandono, eu lamentei que tal edificação eclesiástica tão importante para a história do núcleo urbano primitivo do Recife não tivesse, também ela, passado por um acurado processo de restauração e revitalização, como ocorreu com a Praça Dezessete, da qual ela é o principal e maior atrativo.

 

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