13 de dezembro de 2025

A propósito de nostalgia urbana

 Por Sierra

 

                                                                             Especialmente para Isabela Boscov

 


Foto: Arquivo do Autor
Uma cidade desfigurada: em meados da década de 1980 a cidade de Abreu e Lima foi desfigurada de uma ponta a outra, no seu espaço central, para dar passagem a faixas de rolamento da BR 101



Neste mês de dezembro que estamos a atravessar eu completei vinte e cinco anos de morada na Ilha de Itamaracá, ilha-cidade localizada no litoral norte pernambucano e que integra a Região Metropolitana do Recife. Faz vinte e cinco anos que eu saí do meu pedacinho de chão natal, Abreu e Lima, e fui residir naquela ilha e, assim, pude ficar  pertinho do mar, algo que me fascina desde há muito.

Quando eu pensei em escrever este artigo me veio o claro entendimento de que, em essência, a minha nostalgia urbana estava ligada a Abreu e Lima, daí por que eu resolvi falar não de modo genérico sobre tal assunto e, sim, dizer do que eu denominei de fundamentos pessoais, tomando a palavra fundamentos como um sinônimo de alicerce mesmo, como base de uma construção urbana que foi erguida num dos escaninhos da minha memória.

Evidentemente eu não carrego comigo todo o traçado urbano e nem todo o perímetro da minha cidade natal, algo que, mesmo que eu a tivesse percorrido e a conhecido por completo, não teria como sustentar. De modo que os fundamentos dessa nostalgia urbana que agora estou a evocar é toda ela ou quase toda ela circunscrita e delimitada pelos espaços daquele torrão em que eu vivi; e essa dimensão territorial encerra grandes nacos, porções generosas de bairros onde eu morei ao longo de vinte e cinco anos - não posso deixar de lhes dizer que, destes meus 51 anos de vida, um deles, o de 1987, eu passei no bairro de Rio Doce, em Olinda, morando com os meus padrinhos -; é essencialmente da parte central da cidade e dos bairros Timbó, Alto da Bela Vista, Fosfato, Caetés Velho e Matinha que aminha nostalgia urbana se nutre.

Para além das lembranças pessoais, eu acredito que, em mim, essas considerações sobre o universo urbano me chegam e se evidenciam muito porque eu venho há anos lendo e pesquisando sobre a formação das cidades ao longo dos tempos, de maneira que, eu acredito, esse exercício de escrita e registro não é gratuito e meramente, digamos, memorialístico. É mais do que isso. Eu sei que é muito mais do que isso, porque atravessa uma dimensão outra, tomando o narrar, o contar e o dizer como tentativas de apreensão nem que seja de uma nesga de um passado, passado esse que, eu imagino, porque costumo me reconhecer em narrativas de outrem, alguém haverá de se ver, porque não fui apenas eu que pisei, caminhei e atravessei aquelas ruas e praças, estradas e campos naquele tempo e naqueles dias.

Em As cidades invisíveis, Italo Calvio nos disse que "jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve", mas, segundo sua narrativa, "existe uma ligação entre eles" (Italo Calvino. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 59). E é bem isso que me leva a recordar uma certa Abreu e Lima que a minha memória apreendeu no amplo terreno a nostalgia urbana. E o meu discurso diz exatamente dessa apreensão de um dado espaço como uma fotografia que nunca será impressa e, portanto, não terá materialidade, não será palpável.

Assim como a RTI descrita por Ferreira Gullar, que era "constituída de casas e ruas, praças e avenidas, dispostas numa ordem arquitetônica supostamente conveniente ao modo de vida de seus habitantes" (Ferreira Gullar. Cidades inventadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2000, p. 17), a cidade de Abreu e Lima era feita ou parecia ser feita de maneira a atender as conveniências dos que nela habitavam. Isso só durou até o dia em que engenheiros, urbanistas e estudiosos do tráfego de veículos decidiram que uma parte expressiva do traçado da cidade deveria ganhar outro desenho, o que, em termos muito claros, significava demolir muitas edificações, apagar também do mapa ruas e becos e retraçar o espaço com vistas a dar lugar a outras faixas de autopistas da BR 101. E esse projeto  viário marcou definitivamente o sepultamento de uma porção significativa da memória urbana concreta da cidade, num ritmo de demolição e de bota-abaixo que, infelizmente, destruiu certos signos e símbolos de parte do seu passado.

Quando reflito sobre a nostalgia urbana que me toma em relação à minha cidade natal ela me vem quase toda delineada por essa época de redesenho e remodelação de espaços que, no meu tempo de criança, eu percorri muito, nas idas e vindas para escolas, supermercados, estabelecimentos comerciais outros, feira livre e casas de parentes e conhecidos. Eu atravessava ruas e caminhos e adentrava em edificações que, de uma hora para outra, deixaram de existir, condenados que foram a desaparecer para dar passagem a veículos automotivos.

A cidade do meu tempo de menino não existe mais no espaço geográfico do tempo de agora. O que dela restou, como era, existe somente em um dos escaninhos de minha ainda viva e clara memória.

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