Por Sierra
Especialmente para Isabela Boscov
Neste mês de dezembro que estamos a
atravessar eu completei vinte e cinco anos de morada na Ilha de Itamaracá,
ilha-cidade localizada no litoral norte pernambucano e que integra a Região
Metropolitana do Recife. Faz vinte e cinco anos que eu saí do meu pedacinho de
chão natal, Abreu e Lima, e fui residir naquela ilha e, assim, pude ficar
pertinho do mar, algo que me fascina desde há muito.
Quando eu pensei em escrever este artigo
me veio o claro entendimento de que, em essência, a minha nostalgia urbana estava
ligada a Abreu e Lima, daí por que eu resolvi falar não de modo genérico sobre
tal assunto e, sim, dizer do que eu denominei de fundamentos pessoais, tomando
a palavra fundamentos como um sinônimo de alicerce mesmo, como base de uma construção
urbana que foi erguida num dos escaninhos da minha memória.
Evidentemente eu não carrego comigo todo o
traçado urbano e nem todo o perímetro da minha cidade natal, algo que, mesmo
que eu a tivesse percorrido e a conhecido por completo, não teria como
sustentar. De modo que os fundamentos dessa nostalgia urbana que agora estou a
evocar é toda ela ou quase toda ela circunscrita e delimitada pelos espaços
daquele torrão em que eu vivi; e essa dimensão territorial encerra grandes
nacos, porções generosas de bairros onde eu morei ao longo de vinte e cinco
anos - não posso deixar de lhes dizer que, destes meus 51 anos de vida, um
deles, o de 1987, eu passei no bairro de Rio Doce, em Olinda, morando com os
meus padrinhos -; é essencialmente da parte central da cidade e dos bairros
Timbó, Alto da Bela Vista, Fosfato, Caetés Velho e Matinha que aminha nostalgia
urbana se nutre.
Para além das lembranças pessoais, eu
acredito que, em mim, essas considerações sobre o universo urbano me chegam e
se evidenciam muito porque eu venho há anos lendo e pesquisando sobre a
formação das cidades ao longo dos tempos, de maneira que, eu acredito, esse
exercício de escrita e registro não é gratuito e meramente, digamos,
memorialístico. É mais do que isso. Eu sei que é muito mais do que isso, porque
atravessa uma dimensão outra, tomando o narrar, o contar e o dizer como
tentativas de apreensão nem que seja de uma nesga de um passado, passado esse
que, eu imagino, porque costumo me reconhecer em narrativas de outrem, alguém
haverá de se ver, porque não fui apenas eu que pisei, caminhei e atravessei
aquelas ruas e praças, estradas e campos naquele tempo e naqueles dias.
Em As
cidades invisíveis, Italo Calvio nos disse que "jamais se deve
confundir uma cidade com o discurso que a descreve", mas, segundo sua
narrativa, "existe uma ligação entre eles" (Italo Calvino. As cidades invisíveis. Trad. Diogo
Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 59). E é bem isso que me
leva a recordar uma certa Abreu e Lima que a minha memória apreendeu no amplo
terreno a nostalgia urbana. E o meu discurso diz exatamente dessa apreensão de
um dado espaço como uma fotografia que nunca será impressa e, portanto, não
terá materialidade, não será palpável.
Assim como a RTI descrita por Ferreira
Gullar, que era "constituída de casas e ruas, praças e avenidas, dispostas
numa ordem arquitetônica supostamente conveniente ao modo de vida de seus
habitantes" (Ferreira Gullar. Cidades
inventadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2000, p. 17), a
cidade de Abreu e Lima era feita ou parecia ser feita de maneira a atender as
conveniências dos que nela habitavam. Isso só durou até o dia em que
engenheiros, urbanistas e estudiosos do tráfego de veículos decidiram que uma
parte expressiva do traçado da cidade deveria ganhar outro desenho, o que, em
termos muito claros, significava demolir muitas edificações, apagar também do
mapa ruas e becos e retraçar o espaço com vistas a dar lugar a outras faixas de
autopistas da BR 101. E esse projeto viário marcou definitivamente o
sepultamento de uma porção significativa da memória urbana concreta da cidade,
num ritmo de demolição e de bota-abaixo que, infelizmente, destruiu certos
signos e símbolos de parte do seu passado.
Quando reflito sobre a nostalgia urbana
que me toma em relação à minha cidade natal ela me vem quase toda delineada por
essa época de redesenho e remodelação de espaços que, no meu tempo de criança,
eu percorri muito, nas idas e vindas para escolas, supermercados,
estabelecimentos comerciais outros, feira livre e casas de parentes e
conhecidos. Eu atravessava ruas e caminhos e adentrava em edificações que, de
uma hora para outra, deixaram de existir, condenados que foram a desaparecer
para dar passagem a veículos automotivos.
A cidade do meu tempo de menino não existe mais no espaço geográfico do tempo de agora. O que dela restou, como era, existe somente em um dos escaninhos de minha ainda viva e clara memória.

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