20 de dezembro de 2025

Personas urbanas (36)

Por Sierra

 

Prometo te querer

até o amor cair doente, doente.

Prefiro, então, partir

a tempo de poder

a gente se desvencilhar da gente.


                                          Todo o sentimento. Chico Buarque/Cristóvão Bastos

 

 

A transformação dos sentimentos. Não são apenas os nossos corpos que mudam com o passar e o avanço inexorável do tempo; os sentimentos que nos acompanham também podem sofrer mudanças bastante significativas nesse nosso caminhar na estrada da vida que, às vezes, é curta para uns e longa para outros, mas sempre é desafiadora e repleta de transformações durante o correr dos dias para todos e cada um de nós.

Essa percepção da natureza mutável de nossos sentimentos é algo que perpassa todo o nosso viver. E não há quem fique imune e/ou indiferente a essas mudanças, porque elas independem de nosso querer /ou vontade.

Nesta semana eu experimente mais uma vez a veracidade dessas afirmações que fiz até aqui. Num encontro íntimo eu olhei atentamente para uma certa pessoa que até poucos dias atrás vinha mexendo afetivamente muito comigo, como se fosse um lampejo de paixão, logo comigo, que adoro me apaixonar pelo que quer que seja: pessoas, coisas, animais, ideias e etc. Naquele quarto, com a luz natural da manhã entrando pela janela, enquanto uma voz suave cantarolava no som ambiente, eu me agarrei àquele corpo com uma fome que não era mais  a mesma, como não foram mais os mesmos os beijos, os abraços, as carícias, os olhares, os afagos... Algo dentro de mim se modificara em relação àquela pessoa e eu não sei dizer bem o que foi. Abraçamo-nos. Beijamo-nos. Transamos. Mas faltou algo nisso tudo, como falta um tempero numa comida e você não consegue dizer com certeza qual foi.

E se você , leitor, está pensando em me dizer que, tal qual na fábula, o príncipe virou um sapo e eu senti o que senti porque o encanto acabou, eu prontamente lhe digo que, com a experiência de vida e relacionamentos que eu tenho, não se tratou de um desencanto, porque, na altura dos acontecimentos, eu já sabia em que terreno estava pisando, de modo que não atrelara a pessoa a nenhuma ilusão, uma vez que, tão claro como o fogo, ela deixara evidente, já no nosso primeiro encontro, que nada iria ser mais do que aquilo, que os encontros posteriores teriam igual papel do primeiro e que assim seria até que nós nos cansássemos e nos fartássemos de nós e um ou os dois chegassem e dissessem assim: "Não vamos mais nos encontrar, porque nós não namoramos mesmo, é só ficância e o meu tesão e o meu interesse sexual por você acabaram". E ponto.

Acontece que, pelo menos até o presente momento, nós não nos demos esse basta. Nós continuamos a querer praticar as safadezas e peripécias sexuais que praticamos porque vai ver que é só isso mesmo o que temos para ofertar um ao outro. Não dizem por aí que tudo que existe no mundo naturalmente e cada coisa que foi inventada têm uma serventia, têm um uso? Pois deve ser esse o nosso caso: nós só servimos mutuamente pelo prazer do sexo. E é bem provável que, naquele dia do nosso encontro mais recente, a mudança de sentimento, do meu sentimento em relação à pessoa ou, vá lá, só ao corpo dela, já que eu reduzi a questão ao furor e à pulsação sexual, o nível do meu desejo não estivesse numa porcentagem adequada para a ocasião. Será que foi isso ou apenas isso?

Eu seria um tremendo de um mentiroso se negasse que, no imediato momento do primeiro encontro íntimo que eu mantive com a tal pessoa, eu não tenha fantasiado uma possibilidade de namoro. Essa fantasia me chegou, sim, mas se desfez completamente antes que o segundo encontro ocorresse. Comportamentos e atitudes são, por vezes ou quase sempre, mais fortes e reveladores de sentimentos do que as palavras. E a tal pessoa se comportou e tomou atitudes que deixaram claríssimo qual era o papel que me cabia ali. E assim foi e vai continuar sendo até não sei quando.

É inegável que meus sentimentos mudaram em relação à tal pessoa. Mas uma coisa eu também não posso negar: a minha atração física e o meu tesão por ela não sofreram até agora um abalo tão significativo; e eu vou aproveitar bem o que ela pode me oferecer – e acredito que ela deve estar pensando igualzinho a mim.

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