26 de novembro de 2010

Passeio noturno

Por Clênio Sierra de Alcântara

      "Ó cidade noturna!
       Velha, triste, fantástica cidade!
        Desta humilde trapeira sem flores, sem poesia,
        Alongo a vista sobre as águas,
        sobre os telhados".

                                              Joaquim Cardozo



                                     Fotos: Ernani Neves         Ponte Duarte Coelho                                                       


 

Numa certa época, quando eu cismava em ir pegar a sessão da meia-noite do Cinema da Fundação, no Derby, eu percorria, no regresso, em solitárias caminhadas - à maneira de como escreveu Gilberto Amado  em seu muito evocativo Minha formação no Recife -, o "deserto das ruas silenciosas do Recife adormecido".

Aprazia-me - como ainda apraz-me - estar no seio da cidade-capital sob o manto da noite. E estando ali eu não temia sequer dar de cara com aquelas entidades medonhas, como o Boca de Ouro e o Papa-figo, que povoam Assombrações do Recife velho, uma das mais deliciosas obras do prolífico e a seu modo surpreendente Gilberto Freyre.


Aspecto da Av. Conde da Boa Vista




É curioso como certas cidades parecem adquirir outra feição quando as vemos sob os filtros noturnos. Falando apenas do que conheço, eu vi isso em Brasília. De cidade, digamos, desprovida de humanidade - humanidade não no sentido de compaixão e clemência, embora há quem diga que ela é exatamente assim; mas no de gênero humano mesmo, de presença de gente, de cheiro de gente, de rastro de gente -, Brasília, à noite, se ainda permanece escondendo suas pessoas, revela-nos uma beleza quase etérea, com seus espaços imensos iluminados e sua atmosfera de sonho. E lá existe gente, sim, como fazem crer as luzinhas acesas nos blocos das superquadras.

Decerto que a noite faz com que alguns aspectos desagradáveis do Recife fiquem como que camuflados - "à noite todo gato é pardo", diz um dito popular -; mas não se pode negar que a cidade ganha nessas horas outros encantos, sobretudo se estivermos no verão. Sim, porque as noites estivais revestem o núcleo primitivo do Recife de uma aura de pura beleza. Beleza essa facilmente verificada nas pontes e nos monumentos iluminados; e na mansidão das águas dos rios correndo para o mar com as luzes todas refletindo nelas.


                                  
Rua da Aurora e o Rio Capibaribe

      
A noite do Recife também tem seu lado antipoético. Não gosto de ver as mesas dos bares ocupando calçadas e passagens outras de pedestres.


Pescador lançando a tarrafa


Um pescador na Ponte Maurício de Nassau


Também fico indignado quando vejo uma como que pintura, que é o ato do pescador lançar de cima das pontes sua tarrafa nas águas, ser maculada pela ação imunda desse mesmo personagem, que espalha sobre a passagem a sujeira que porventura vem presa à rede, bem como os siris miúdos por ele ali desprezados e que eu, com dó, muitas vezes recolho e devolvo às águas; situação essa que vivencio constantemente ao atravessar as pontes Princesa Isabel, Buarque de Macedo e, principalmente, a Maurício de Nassau. Contrario-me ao observar nas esquinas os catadores de materiais recicláveis - e de comida, não é? - rasgando os sacos plásticos e despejando o lixo sobre as calçadas na maior caradura, emporcalhando o ambiente público, sem que ninguém os repreenda. E protesto igualmente em surdina contra a inépcia da Municipalidade para coibir o abuso de certos vendedores - de frutas e verduras, de dvd's piratas, etc. - que teimam em colocar seus enormes tabuleiros ambulantes nos espaços de pontos de ônibus e nas passagens de veículos e pedestres, num flagrante desrespeito ao bem comum, porque muitos ainda continuam a pensar que o território da cidade é terra de ninguém.


Santander Cultural




Av.  Marquês de Olinda



Apesar de tudo, ao cair a noite, aquela parte do Recife como que se metamorfoseia num outro Recife. Num Recife aparentemente mais acolhedor. Num Recife sem a pecha de "cidade cruel" que lhe foi imputada por Agamenon Magalhães. Num Recife provinciano e universal. Num Recife no qual temporariamente adormece o seu espírito revoltoso. Num Recife, enfim, mergulhado no que pode haver de eterno e de misterioso no manto líquido que o envolve.





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