20 de janeiro de 2011

Revisitando o Recife

Por Clênio Sierra de Alcântara



Existem várias maneiras de se reconstituir o passado de uma cidade. Uma delas - e que é uma das que mais aprecio, porque sou fascinado pelas percepções particulares dos que observam o espaço urbano e o condensam  em suas lembranças - é percorrer as páginas dos livros de memórias. Livros de memórias são, para mim, como aqueles baús de guardados que a gente abre e vai se deparando com uma e outra coisa surpreendente.


Foi tomado dessa sensação que acabei de ler O Recife revisitado, de autoria do insigne Edson Nery da Fonseca. Além de um gilbertólogo extraordinário, Edson Nery  é um acalentador das palavras. E sabe, como poucos, transpor para o papel os meandros, os caminhos por vezes tortuosos do campo das recordações.

Li o livro com aquela fome de saber muito própria de quem parte em viagem para algum lugar bastante conhecido e, ainda assim, espera encontrar algo novo.  Há anos eu venho me dedicando a vasculhar os tempos pretéritos do Recife, seguindo a exortação de Gilberto Freyre contida numa passagem da obra coletiva Um tempo do Recife, que é o de escrevermos uma autobiografia coletiva dessa cidade.

N'O Recife revisitado encontrei uma urbe na qual se coadunam o desejo, o sonho e a crueza da realidade que não poupa sentimentalismos. Nessa obra, muito mais  do que como cidade, o Recife é revelado como um mundo que parece ser de um nunca acabar.

Num dado momento o escritor-cicerone reclama das placas das ruas que, segundo ele, dizem alguma coisa, mas não dizem muito:



 
 "Sempre me pareceu que o simples nome de pessoas em ruas e praças era uma homenagem que       devia ser completada por breve identificação: abolicionista, republicano, governador, prefeito, deputado, vereador, jornalista, educador, arquiteto, maestro, pianista, poeta, romancista, pintor, etc.".






Como a história de uma cidade não comporta apenas a descrição de suas ruas e praças, pontes e edifícios públicos, estabelecimentos comerciais, instituições e paisagens naturais, acontecimentos e manifestações culturais, Edson Nery da Fonseca também pôs em suas páginas memorialísticas uma porção de gente boa; aparecem nelas o enorme poeta Ascenso Ferreira; o professor Alfredo Freyre e o seu filho Gilberto - é de Alfredo, aliás, uma das tiradas mais saborosas que Edson Nery fez muitíssimo bem  em publicar. Certa feita, quando saiu ferido de um embate com a polícia de Agamenon Magalhães, que mandara prender Gilberto, Alfredo foi visitado por Edson Nery e alguns colegas, e saiu-se com essa: "Fiquem tranquilos, pois fui preso pela polícia de Pernambuco e consegui salvar meu guarda-chuva e o relógio de ouro" -; o jornalista Aníbal Fernandes que o autor, certa feita, flagrou num quase choro, na redação do Diario de Pernambuco, num momento em que Aníbal ouvia, pelos alto-falantes da Praça da Independência, a voz de Araci de Almeida cantando: "Não! Não me diga adeus!/Pense nos sofrimentos meus!"; o também poeta Deolindo Tavares - "Sua presença em nossa casa da rua Fernandes Vieira, na esquina da praça Oswaldo Cruz, era uma festa para minha mãe e para minhas irmãs" -; e tantos outros personagens que fizeram da capital de Pernambuco o seu mundo.


Os que não conhecem o Recife certamente ficarão encantados  e desejosos de percorrer as ruas dessa cidade após a leitura do livro de Edson Nery da Fonseca. E, mesmo para aqueles que, como eu, nutrem por esse lugar um sentimento que é qualquer coisa de uma muito prazerosa perturbação, as páginas do inspirado memorialista de alguma maneira reaviva  todo esse fascinante universo chamado Recife.

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