19 de maio de 2011

Do abuso sexual e outros demônios

Por Clênio Sierra de Alcântara


FOTOS: ERNANI NEVES


            Embora as coisas ruins pululem neste país, como as pragas que infestam as lavouras, nunca deixo de me espantar com certos fatos que vêm à tona. No final do ano passado foi divulgado o resultado de um cruzamento inédito de dados feito pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com base em informações coletadas pela Polícia Rodoviária Federal. Foi revelado que existem no Brasil 1850 pontos de prostituição infantil nas estradas federais. O tal levantamento mostrou ainda que, diferentemente da suposição que se fazia, as regiões Norte e Nordeste não apresentaram a maior concentração desses locais. E o Paraná foi o estado com a maior incidência de pontos desse tipo de prostituição.
            Tal fato é assustador e ao mesmo tempo vergonhoso e preocupante. Os 1850 pontos de prostituição infantil contabilizados pelo CNJ não são, evidentemente, um retrato fiel da realidade. Imagine, leitor, a enorme quantidade de outros pontos como esses que devem existir às margens das rodovias estaduais – e para além delas – e, aí sim, teremos a verdadeira dimensão dessa tragédia social brasileira.


            Revoltante sob qualquer aspecto que seja encarada, a exploração sexual dos corpos de nossas crianças – gente, as crianças são os adultos de amanhã! – revela bem o nível subterrâneo dos valores morais – e eu diria até existenciais – que são cultivados por uma parcela expressiva da população. E quando se sabe que a maioria desses pequenos “cidadãos” é levada a se prostituir a mando de seus próprios pais, aí é que a coisa ganha contornos de uma sordidez indescritível. E o que dizer do adulto – quase sempre um pai de família – que busca satisfação em “prostíbulos” dessa natureza?
            Eu não consigo compreender como um país que distribui milhões de reais para famílias de baixa e/ou nenhuma renda (Bolsa Família), que mantém um Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e que promove uma das maiores campanhas de vacinação infantil do mundo não desenvolve uma política pública de combate a essa chaga social que é a prostituição infantil. Nossas crianças estão indefesas – completamente indefesas -; e o Estado continua se mantendo incapaz de coibir tais abusos. E não nos esqueçamos dos casos de pedofilia disseminados pela internet. Assim, desprotegidas e exploradas, que futuro espera por essas crianças?
            Não sou um moralista empedernido, daquele tipo que vê maldade em tudo; e que acredita que a televisão só “ensina o que não presta”, como muitos costumam afirmar. Por outro lado, muito me incomoda a banalização da sexualidade entre nossas crianças e jadolescentes. E não só a banalização, como o bombardeio pesado e frequente a que eles são submetidos. O que será que se passa na cabeça de uma garotinha que assiste aos requebros da praticamente nua mulata Globeleza junto com seus pais e/ou amiguinhos na sala de estar? Nunca esqueci do tempo em que o programa Domingo Legal, do Augusto Liberato, o Gugu, promovia um concurso para eleger “pequenas Carlas Perez”. Aquilo era ultrajante, para dizer o mínimo; e tudo feito com a anuência dos pais das crianças, que as vestiam com roupas que emulavam as da dançarina. Para mim tudo tem o seu tempo. E pornografia é coisa só para adultos.
            Na maioria das vezes é em suas próprias casas que essas crianças, entregues à prostituição, começam a ser vítimas de abusos sexuais. Frágeis e impossibilitadas de reagirem às investidas, elas se veem presas a situações que nem conseguem compreender. O pior é saber que muitas mães encobertam os casos de abusos que ocorrem em seus lares: seja porque não acreditam nos relatos das crianças; seja porque não querem “prejudicar” os maridos; seja porque elas mesmas são também ameaçadas pelos agressores; seja porque elas têm vergonha de enfrentar a baixeza dos acontecimentos. Quem assistiu aos filmes Deserto feliz e Preciosa pode entender claramente o que expus aqui.
            Caro leitor, você não imagina o quanto me doeu escrever este artigo. Os meus olhos ficaram quase o tempo todo marejados, porque o assunto aqui abordado é muito torpe, é muito aviltante. A realidade todos os dias nos dá um tapa na cara e, no entanto, não conseguimos reagir a tais barbaridades, o que, de certa forma, nos torna coniventes com a degradação da sociedade da qual fazemos parte.

(Artigo publicado também in: O Monitor [Garanhuns], 18 de maio de 2011, Opinião, p. 02 ).

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