14 de novembro de 2011

Um cajueiro bem florido para Mauro Mota

Por Clênio Sierra de Alcântara


                                                      
  Para o Dr. Francisco Montenegro: por 
ter sido um grande amigo do Mauro; e
          por merecer de mim uma eterna gratidão        

                                                 
Imagem: Internet
Um cajueiro bem florido como homenagem a um poeta telúrico e muito amante das coisas de sua amada província pernambucana



Dentro das comemorações havidas no Recife, em 1970, para celebrar a posse de Mauro Mota (1911-1984) na Academia Brasileira de Letras, uma, em particular, merece ser recordada neste momento em que a Casa de Machado de Assis presta uma justa homenagem aos cem anos de nascimento do autor de O pátio vermelho. Trata-se de um jantar que ocorreu na noite de 24 de setembro no Hotel São Domingos, então localizado na Praça Maciel Pinheiro, no bairro da Boa Vista, bem próximo ao sobrado onde morou a menina Clarice Lispector.

Quem fez as honras da casa naquela noite foi Gilberto Freyre. Amigos de longa data, Gilberto e Mauro nutriam uma admiração mútua e fraternal. Lembre-se que foi Mauro quem prefaciou o livro Talvez poesia, do Mestre de Apipucos, lançado pela Livraria José Olympio Editora, em 1962, dentro das Obras Reunidas de Gilberto; e que foi Gilberto quem prefaciou Itinerário e Pernambucânia; ou Cantos da Comarca e da Memória (2ª ed., 1983) e Elegias (1978). Ao saudar o amigo na ocasião, Freyre exaltou a “força de autenticidade” do poeta de Os epitáfios:


Na vitória alcançada por Mauro Mota, agora na Academia Brasileira de Letras, seria um erro ver-se apenas um triunfo individual: foi também a vitória de um provinciano e esse provinciano um brasileiro do Nordeste e, especificamente, um nordestino de Pernambuco. Esta, uma das suas mais expressivas significações.


Depois de dizer que Mauro Mota, o “poetíssimo poeta”, era “tão sensível aos mistérios do Recife”, Gilberto outra vez soltou o verbo num discurso que foi, se se pode dizer assim, uma homenagem panfletária – Freyre não perdeu a oportunidade de cutucar a intelligentsia brasileira que se abrigava para além do continente nordestino - :

         
Quem mais completo em sua pernambucanidade? Quem tão completo em seu modo de ser pernambucano? Quem tão múltipla, tão vária, tão integralmente brasileiro de Pernambuco? Quem tão brasileiro no seu modo de ser pernambucano e tão pernambucano na sua maneira de ser brasileiro? Quem mais lusotropical pelo que nele é, além de brasileiro, português pela língua que sua poesia vem enriquecendo e tropical pelo fato, tão expressivo, de ter se tornado o maior conhecedor das virtudes do tropicalíssimo cajueiro? 


Ao evocar o “tropicalíssimo cajueiro” Gilberto Freyre, é de se imaginar, sabia que tocaria fundo no coração do amigo quase sessentão, porque, poucos temas foram tão caros a Mauro Mota quanto essa árvore. É que foi com uma tese intitulada O cajueiro nordestino: contribuição ao seu estudo biogeográfico, que Mauro concorreu à cadeira de Geografia do Brasil do concurso do Colégio Estadual do Instituto de Educação de Pernambuco; e que, publicada em livro – a primeira edição é de 1954 [aqui uma curiosidade: a tiragem inicial foi de apenas 90 exemplares, somente para atender às exigências de inscrição do concurso; Mauro só foi submetido à avaliação em novembro de 1955]; a segunda é de 1956 – veio a se tornar um dos textos mais importantes do autor; e isso porque, segundo o meu entendimento, em O cajueiro nordestino Mauro Mota pôs-se de corpo inteiro: estão ali ao mesmo tempo o poeta, o geógrafo e o escritor abordando um assunto que, apoiado em rica bibliografia, contou ainda com informações colhidas por Luís da Câmara Cascudo, Valdemar Valente, José Sarney entre outros.

O poeta brilhante aparece em trechos como este extraído da 2ª edição desse livro memorável:

Nenhuma outra árvore existe de ecologia equivalente pela extensão à do cajueiro. Transcende da ambiência fitogeográfica. É como se escapasse do seu para um reino de humanidade e, aí, como os ramos em laço, fizesse a simbiose das espécies. Planta e criaturas humanas desenvolvem-se juntas numa interdependência fraternal, embora as clareiras guardem, muitas vezes, vestígios da repetição do episódio de Abel e Caim (p. 117).


E neste, em que descreve o mundialmente famoso cajueiro de Pirangi, localizado na cidade norte-rio-grandense de Parnamirim:

É um cajueiro em marcha, com muito peso nos ombros, suando resina, transpirando aromas em derredor. Avançou para a rodovia e, de outro lado, chegou à borda do morro, como se pretendesse dar um pulo no abismo,com o gigantesco paraquedas da copa já aberto (p. 43).

Já o geógrafo bem fundamentado em sua ciência mostra-se em narrativas como esta:


Onde as altitudes não excedem seiscentos metros e a temperatura o proteja de geadas, o cajueiro, se não tem, poderia ter ambiente de expansão. Pois além das geadas, o seu receio é apenas dos solos impermeáveis, impedidos de absorver as águas de chuva [...] Não existe área fisiográfica incompatível com o cajueiro embora este, sensível aos fatores edáficos, denuncie, por sua vez, certas variantes morfológicas na árvore e no fruto (p. 42).


Enquanto que o escritor no pleno domínio do seu ofício deixa-se ver em passagens cativantes como a seguinte:


O cajueiro deixa de ser, por tantas razões, o apátrida, ou aquela espécie de estrangeiro sem carteira de identidade, sem ninguém saber onde nasceu, como já pretenderam que ele fosse. Humilhado, na própria casa, até por certos vizinhos presumivelmente mais ricos, e por isso, melhor tratados. Como é o caso do coqueiro adventício a olhar o cajueiro autóctone do alto de sua importância de rei coroado, com ares de dono da terra, a dar ordens, inclusive, de morte, quando quer mais do espaço conquistado, para uma multidão de lacaios curvados e recurvados a seus pés. Às vezes, quase de rastros, sem mesmo os olhos levantar (p. 29).

Quem percorre as páginas desse O cajueiro nordestino sente que Mauro Mota escreveu todas aquelas linhas como que tomado de uma sofreguidão desmedida por querer revelar não apenas a árvore em si mesma, mas também toda a brasileiridade, toda a nordestinidade, toda a pernambucanidade e, principalmente, toda a recifensidade que ia nele, porque Mauro parecia amar essa terra muito solar, que é o Recife, sob todas as coisas. E quando chegou a sua vez de se dirigir à platéia, ainda naquele jantar, ele não se fez de rogado, e disse assim, certamente com todo o entusiasmo que o momento pedia:


Num país como o nosso, de tantas diferenças de solos, climas, paisagens botânicas, sistemas fluviais, grupamentos demográficos, etnias, níveis de aprendizado, o brasileirismo, para ser válido, tem de constituir-se da soma das várias culturas regionais, com o reconhecimento de cada uma delas, dentro de uma harmonia nacional [...] Amo o Recife, particularmente os lugares do Recife, onde tanto me deixei e onde tantas vezes me procuro [...] Amo o Recife e desamo quem não o ama. Amo a solidariedade das amigas e dos amigos do Recife. Amo esta noite do Recife.

 
Chamado por seu amigo Edson Nery da Fonseca – um amigo, aliás, quase tão gigante como um cajueiro – de “poeta da compaixão”, Mauro Mota fez do seu território literário e poético, um mundo no qual a evocação pareceu sempre dar ordem a seu modo elegante de escrever sobre coisas, sentimentos, pessoas, bichos e paisagens, como aparece na segunda estrofe do poema “Rua da Aurora”, incluído em Os epitáfios; poema esse em que a sinuosidade dos versos como que acompanha o curso do Rio Capibaribe que corre tendo essa rua em uma de suas margens:


                          Sumiram os antigos transeuntes.
                          Onde encontrar os pares
                          debruçados
                          sobre as águas e o tempo?
                          O tempo e as águas.


Igualmente bastante evocativo é o artigo “Austro-Costa, um poeta do Recife”, que se encontra em Geografia literária; nele, Mauro Mota descreve em poucas palavras o desenho todo de um lugar:


A Rua Nova, até vinte anos atrás [o texto é de 1959; o livro, de 1961], a área dos desfiles elegantes do Recife. Sob o pretexto das compras nas lojas, as moças passavam a tarde para cima e para baixo. Havia maior concentração aos sábados. O sábado era o dia oficial do “footing”, liquidado pela semana inglesa no comércio.


Mas voltemos ao princípio. Deve ter sido, de fato, uma noite gloriosa para o autor de Capitão de Fandango e de Canto ao meio, aquela do jantar realizado por seus amigos em sua homenagem. O Hotel São Domingos não existe mais; o edifício onde ele esteve durante muitos anos instalado está sendo reformado para dar lugar a não sei quê.

Lá pelas tantas de seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, intitulado O navegante Gilberto Amado, que foi publicado em setembro de 1970, no Recife, como separata do saudoso Caderno Moinho Recife, Mauro Mota disse que não sabia como agradecer por “um ato que tanto emociona e distingue”. Ah, Mauro, mas como tu mesmo disseste na ocasião, existem sim as palavras para tanto. E, neste momento em que a Casa de Machado de Assis celebra os cem anos do teu nascimento, recebas aqui o agradecimento e o reconhecimento que a tua pessoa e a tua obra inspiradora bem merecem. E, como vai dito no teu Modas e modos, que este instante de celebração tenha qualquer coisa de um “toque de ressurreição”.



(Artigo publicado também in Revista Brasileira. Fase VII. Julho-agosto-setembro 2011. Ano XVII. Nº 68. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2011, p. 155-160).


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