20 de setembro de 2012

Salvaguardando Olinda


Por Clênio Sierra de Alcântara

“Olinda, cidade heroica,
Monumento secular
Da velha geração...
Olinda!
Serás eterna e eternamente viverás
No meu coração”. 
                             
                                           Olinda cidade eterna. Capiba


Fotos: Ernani Neves e ClEnio Sierra de Alcântara                          Sede da Prefeitura                          


                                  
Sob ameaça constante


Acredito que todo indivíduo que é metido com o assunto; ou que mantém um contato cotidiano enquanto morador do lugar e que seja consciente do caráter preservacionista; ou ainda alguém que tem a defesa do patrimônio histórico e cultural – material e imaterial – como matéria de sua labuta diária tende a desenvolver um sentimento verdadeiramente passional no trato com tais coisas. Não é nada fácil se encontrar, por vezes, de mãos atadas vendo, por exemplo, uma casa ou uma igreja apresentando sérios riscos de desabamento. Chega a ser torturante – falo isso por mim – quando nos damos conta de que não é só o patrimônio construído, mas também o cenário, o ambiente em que ele foi inserido, está sofrendo os mais duros ataques de depredação, como se a paisagem não compusesse um prolongamento da edificação, e as autoridades não coibem tais ações.


Igreja do Carmo








Busquei uma imagem que me desse a justa medida de como venho enxergando o sítio histórico de Olinda há muitos anos, e não encontrei nada mais apropriado do que isso: o sítio histórico olindense é um organismo vivo e sadio que vive sob ameaça constante do ataque de agentes nocivos que lhe querem devorar por inteiro. Basta ver os seus arredores sujos e descuidados; basta ver os desmandos praticados por vários de seus moradores que não estão nem um pouco interessados em colaborar com a preservação da cidade; basta ver a circulação absurda de veículos automotivos em suas ruas; basta ver o estado de abandono em que se encontram alguns dos seus edifícios.



Tantos carros tantos


Rua 15 de Novembro

De uma janela da Prefeitura


A preservação e a proteção do patrimônio histórico, no Brasil, já atravessaram seus dias heroicos; e, apesar dos percalços, o intento consolidou-se de maneira vigorosa. Decerto que um passeio por alguns dos sítios históricos nacionais revelará a olhos atentos uma série de deficiências e quadros lamentáveis que podem levar o incauto a pensar que tal e tal situação é ignorada pelos órgãos que deveriam promover sua salvaguarda, quando, muitas vezes, o que falta é a verba que financie a ação de restabelecimento.



Largo do Varadouro


Preservar um patrimônio histórico e cultural não é apenas legar para outras gerações testemunhos de tempos remotos; é, sobretudo, fazer chegar ao tempo futuro a matéria mesmo de nossa raiz, de nossa identidade, de nossa consciência enquanto nação, de nossa origem, pois é ele que nos caracteriza e nos revela. Por isso, acredito que toda vez que perdemos um bem histórico, perdemos um pouco de nós mesmos.


Vigiar (punir) e preservar



Neste ano a V Semana do Patrimônio Cultural de Pernambuco, promovida pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), foi realizada em Olinda, no período de 13 a 17 de agosto, dentro das comemorações dos 30 anos da concessão do título de Patrimônio Cultural da Humanidade feito pela Unesco a essa cidade. O evento comportou atividades diversas como seminário, exposições e passeios guiados pelo sítio histórico.


Igreja de São Sebastião


Não poderia ter sido mais apropriado o tema do evento: “Patrimônio cotidiano”. Digo isso porque ele faz pensar os sítios históricos como lugares que são ao mesmo tempo especiais, uma vez que constituem zonas de preservação, mas também áreas com as quais devemos buscar manter uma convivência cotidiana, porque ao mostrá-los não como objetos intocáveis e sim como espaços de acolhimento, moradia, cultura e lazer, podemos, assim compreendo, firmar um compromisso de preservação com todos aqueles que percorrem esses sítios movidos pelos mais variados motivos. E eu não poderia deixar de citar aqui uma obra que foi o meu primeiro guia para o entendimento dessa realidade, que é o livro Preservação do patrimônio cultural em cidades, da Maria Cristina Rocha Simão.


Lardo do Varadouro com o Mercado Eufrázio Barbosa  ao fundo




Como quase todos os seminários, também esse que ocorreu no Palácio dos Governadores, prédio onde está instalada a Prefeitura de Olinda, apresentou altos e baixos. Contudo, no apanhado geral, eu diria que a iniciativa foi extremamente positiva, porque revelou à plateia – uma pena que, em sua esmagadora maioria, o público que esteve presente era uma gente já familiarizada com as abordagens discutidas; seria bastante fecundo que tais discussões pudessem chegar a públicos leigos também, como forma de disseminar os conhecimentos a respeito da preservação do patrimônio – iniciativas bem sucedidas de defesa do patrimônio, como foi demonstrado a respeito de Ouro Preto, sobre as quais escreverei mais adiante. E não contem isso para ninguém: além de professor dedicado, de defensor apaixonado de sua cidade, mestre Antenor Vieira de Mello é um verdadeiro entertainer. Que figura!



Sala onde ocorreu o seminário


Eu de perfil e o professor Antenor com a mão na boca




Em boa companhia: o o grande mestre Lourival Holanda


A arquiteta e urbanista Vera Milet, autora de A teimosia das pedras



O professor Antenor Vieira de Mello foi uma das melhores coisas de todo o evento


No decorrer de sua explanação o arquiteto-historiador José Luiz Mota Menezes, a quem coube a abertura dos trabalhos, destacou que, aqui e ali, no sítio histórico de Olinda encontram-se exemplos de “desrespeito dos moradores com a arquitetura”, quando instalam grades por fora das janelas, em vez de pô-las por dentro. E enfático declarou: “Que isso mude por vontade e não por determinação da lei”.










A mesa intitulada “Mobilidade urbana em sítios históricos” pôs em debate o binômio mobilidade e acessibilidade. Foi uma das melhores discussões abordadas no evento. Tratou-se não apenas dessa coisa infernal que é o acesso irrestrito de automóveis aos sítios históricos, mas também de como promover acessibilidade aos bens culturais a portadores de deficiência física. Sandra Bernardes Ribeiro, que é da Coordenação Geral de Cidades Históricas, do Iphan, salientou que o predomínio dos veículos nesses lugares é bastante prejudicial para o patrimônio, tanto por causa da trepidação como pela ocupação ampla de um espaço que poderia ser utilizado por pedestres. Ela não se esquivou de dizer que em vários pontos do sítio histórico de Olinda o acesso de pedestres também é dificultado pela quantidade excessiva de postes de iluminação instalados sobre as calçadas. E completou dizendo que se deve “Priorizar ações que possibilitem o máximo de acessibilidade com o mínimo de impacto sobre o patrimônio cultural”.

Representante da empresa Presión & Fuerza, Luiz Baltar reforçou o pensamento de Sandra Bernardes afirmando que “O ritmo do automóvel é inadequado para o ritmo dos sítios históricos”, principalmente quando se lembra que, originalmente, o traçado das ruas desses lugares foi pensado para a circulação de pedestres e de veículos de tração animal.

Luiz Baltar participou do seminário não como mais um palestrante; ele estava lá para “vender seu peixe” – pelo que apurei, ele já o vendeu, e muito bem vendido -, para fazer a exibição de barreiras metálicas retráteis que são utilizadas em cidades europeias para restringir o acesso a determinadas zonas do espaço urbano; tais equipamentos podem ser acionados por controle remoto e até pela leitura das placas dos veículos cadastrados. Enquanto ele fazia sua demonstração eu fiquei cá com os meus botões me dizendo que Olinda tem demandas bem mais urgentes para tratar. E quando, na hora em que a palavra foi franqueada à plateia, o professor Antenor Vieira de Mello, de maneira corajosa, disse que “As obras clandestinas no sítio histórico de Olinda ocorrem da madrugada de sexta-feira até o domingo” e que “O prefeito Renildo Calheiros deveria sofrer um impeachment, um processo de impedimento por descumprir uma lei que proíbe o trânsito de veículos pesados no sítio histórico”, eu me certifiquei de que, realmente, barreiras retráteis em Olinda são mais do que supérfluas.



A cidade revelada

Vista da Rua 15 de Novembro




Em Olinda, a arquitetura surge dentre os esplendores da natureza tropical”.
                                                                                  Michel Parent,1967.




Na conferência “Cidades e cotidiano: dimensões teóricas e práticas”, o arquiteto André Renato Pina Moreira, da Secretaria de Patrimônio e Cultura de Olinda, traçou, em ordem cronológica, momentos marcantes da trajetória de Olinda enquanto objeto de políticas que visavam a preservação de seu patrimônio, a partir de meados da década de 1960, quando se deu, de acordo com Moreira, o primeiro processo de gentrificação da cidade e atuou o chamado Movimento da Ribeira. Em sua opinião “Enquanto não houver uma real conscientização dos moradores que cometem intervenções irregulares nos imóveis, nosso trabalho será em vão”.



Mirando a cidade sob diferentes ângulos somos capazes de perceber como certas dinâmicas vão lhe impondo uma espécie de transformação compulsória. Por exemplo, é fato – e aqui eu não estou tratando especificamente de Olinda – que a “imposição” do automóvel como meio de transporte preponderante está alterando o traçado de muitas artérias por conta da imperiosa necessidade de uma “melhor trafegabilidade”. O desenho das grandes e médias cidades brasileiras está ganhando novos contornos para atender as demandas do tráfego de veículos. Outra maneira de perceber tais mudanças é verificar como a cidade cresce de modo desigual, comparando os investimentos públicos e privados que são aplicados em alguns bairros em detrimento de outros.

Conforme foi levando adiante o seu discurso o professor Tomás de Albuquerque Lapa expôs muito claramente como certos mecanismos das políticas públicas, que dizem respeito ao trato com o urbanismo, são bons apenas na aparência. Sua avaliação do chamado “orçamento participativo” é de uma crueza espantosa: “Nas reuniões do orçamento participativo, muitas vezes os moradores são manipulados por políticos e grupos de interesses”. Na assertiva de Lapa encontra-se uma crítica ferrenha aos gestores públicos que agem em conivência com empresários da construção civil.


Para conhecer e difundir


Biblioteca Municipal de Olinda


Para mim o ponto mais alto de todo o seminário foi a mesa intitulada “Experiências partilhadas: vivência e cotidiano nas cidades-patrimônio”, em particular a palestra de Gabriel Simões Gobbi, secretário municipal e presidente do COMPURB – Conselho Municipal de Política Urbana de Ouro Preto. Bem falante e articulado, Gobbi exibiu para o público, de modo bastante dinâmico, uma série de fotos que eram acompanhadas por esclarecimentos precisos a respeito de intervenções que foram realizadas no sítio histórico dessa famosa cidade mineira. Ouvindo o palestrante imaginei que boa parte da plateia estava pensando o mesmo que eu naquele instante: que administrações competentes podem, sim, contornar problemas graves encontrados em áreas de preservação. Gobbi foi muitíssimo aplaudido. Gente, Minas Gerais possui uma lei – Lei nº 13.803, de 1995 -, única em todo o país, que repassa recursos para os municípios que preservam a sua memória e a sua produção cultural; é o chamado ICMS Cultural (“Lei Robin Hood”). E a gestão do patrimônio histórico é tão eficiente em Ouro Preto que, em 2011, ela recebeu o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade concedido pelo Iphan.


Fachadismo




Na manhã da quinta-feira eu saí da casa de Edson Nery da Fonseca, onde estava hospedado por conta do seminário, uma hora mais cedo do que nos dias anteriores, porque planejara fazer alguns registros fotográficos para o blog.

Da Rua de São Bento eu tomei a Rua 10 de Novembro e atravessei o Sítio de Seu Reis; da Av. Liberdade eu segui por toda a Rua do Bonfim. Nesta via eu me deparei com um grande descaso para com um patrimônio histórico numa cidade que é considerada “Patrimônio Cultural da Humanidade”: a torre da Igreja do Bom Jesus do Bonfim está com graves rachaduras. A faixa de protesto colocada na casa que fica ao lado desse templo católico deveria ser multiplicada e exposta em vários pontos da cidade; ela e a mensagem que foi deixada no tapume defronte à igreja.


A Igreja do Bom Jesus do Bonfim





Ocupação irregular na encosta do Alto da Sé




Ao tomar a Av. Bernardo Vieira de Melo eu me dirigi ao terraço do Mercado da Ribeira a fim de fotografar a ocupação irregular da encosta do Alto da Sé. Não entendo como o poder público não coibiu tal ato de degradação àquela ambiência.




Protesto no hall da Prefeitura



Naquela mesma manhã, precisamente no instante em que teve início a primeira palestra do dia, um grupo de manifestantes tomou o hall de entrada do Palácio dos Governadores batendo palmas e cantando assim: “Daqui não saio, daqui ninguém me tira. Daqui não saio, daqui ninguém me tira. Onde é que eu vou morar? Renildo, cadê você? Eu vim aqui só pra te ver”. Deixei o salão para fazer um registro fotográfico do protesto que, segundo um guarda municipal que eu interpelei, era pela cobrança de auxílio-moradia.

Ainda na tarde daquela quinta-feira ouvi da palestrante Eliane Maria Vasconcelos do Nascimento uma sentença tristemente verdadeira: “Olinda está sofrendo uma destruição interna. Aqui está ocorrendo um processo de fachadismo”. E dizer fachadismo, creio eu, é o mesmo que dizer cenografia; é o mesmo que dizer cidade de mentira. Ou, como preferiu se expressar o professor Antenor, “O sítio histórico de Olinda virou um shopping center a céu aberto”.



Trinta anos este dia






O passado é para reflexão, não é para imitação”.
                                       Mário de Andrade



Lá pelas tantas do seminário alguém lembrou de dizer – foi o professor Antenor – que Olinda deixou passar em branco os trinta anos da morte de Aloísio Magalhães, completados em junho passado. Uma lástima que tenha sido assim, porque Aloísio é grande demais para ser esquecido.






Como alguém também lembrou, Olinda atravessou séculos condensando camadas e camadas de história sobre as cinzas do incêndio que quase a destruiu completamente no século XVII. Por isso é preciso que permaneçamos o tempo todo atentos e vigilantes a fim de salvaguardá-la das tantas ameaças que ficam a espreitá-la. Que a “impermanência de urbanidade”, evocada pelo meu estimado Lourival Holanda, não se estabeleça nos quatro cantos de Olinda, porque, como sentenciou Lúcia Leitão Santos na mesa “Paisagens vividas: culturas e subjetividades”, “Destruir memória, desorganiza a sociedade”.








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