23 de janeiro de 2013

Te Deum para a Igreja do Senhor Bom Jesus dos Martírios

Por Clênio Sierra de Alcântara




                                                 Especialmente para Alcir Lacerda (in memorian)



Foto: Alcir Lacerda




Diferentemente do que muitos pensam uma cidade não possui apenas uma fisionomia. São várias as fisionomias que constituem o todo citadino. Uma fisionomia delineada pelo conjunto de seus prédios. Uma fisionomia de suas paisagens naturais. Uma fisionomia de seus subúrbios. Uma fisionomia de sua gente rica. Uma fisionomia de sua gente pobre. Uma fisionomia de suas atividades econômicas. Uma fisionomia de suas manifestações culturais. Uma fisionomia de suas deficiências estruturais. Uma fisionomia de suas carências. Uma fisionomia de seus monumentos. Uma fisionomia de seus desejos. Uma fisionomia de seus escombros. E todas essas fisionomias pontuam, marcam, integram, formam a sua história.

Sob a bandeira do Progresso, o Recife acumulou muitos escombros em seu passado de demolições. O Progresso, como se sabe, é exigente e intransigente em igual medida. Não tolera arroubos passadistas, não se satisfaz com pouca coisa e está sempre querendo mais.

Há quarenta anos, no dia 23 de janeiro de 1973, foi destruída a Igreja do Senhor Bom Jesus dos Martírios para dar lugar a essa artéria que até hoje, transcorridas quatro décadas, sofre de crise de identidade, porque ainda não encontrou sua razão de existir: a Av. Dantas Barreto.

Ao ser posta abaixo, a Igreja dos Martírios juntou-se ao rol dos inúmeros monumentos dos quais os burgomestres do Recife abriram mão para, como diziam, pôr a cidade em dia com a modernidade, sendo que, nestes casos, modernidade tinha um único significado: atender às demandas do trânsito. Antes que as picaretas dos operários do prefeito Augusto Lucena demolissem o edifício eclesiástico, elas já haviam aberto uma clareira enorme no pitoresco bairro de São José, destruindo centenas de sobrados que compunham um dos cenários mais marcantes da capital pernambucana. Ali, no coração do núcleo primitivo da cidade, a tristeza provocada pela desumanidade das máquinas deixou um permanente rastro de incompreensão.

Não foi Augusto Lucena quem inventou a Av. Dantas Barreto; tratava-se de um projeto de muitos anos atrás que não fora concluído até então. O trecho existente começava na Praça da República e ia até a Av. Nossa Senhora do Carmo; o que Lucena fez partia daí até a Praça Sérgio Loreto. Apesar de todos os protestos em contrário, inclusive dos membros do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco, tendo à frente o mestre de mestres José Antônio Gonsalves de Mello, e de um jornalista que viria a se tornar um dos maiores divulgadores da história pernambucana, seja como editor de livros, seja como escritor, o incansável Leonardo Dantas Silva, Augusto Lucena não recuou de seu intento apoiado que foi para tanto por, entre outros, Flávio Guerra, um historiador autor de um livro intitulado de, vejam só, Velhas igrejas e subúrbios históricos, no qual foi incluída a Igreja dos Martírios; e por ninguém menos do que meu mestre maior, o homem que fez do Recife a matéria principal de várias de suas obras, o muitíssimo admirado e respeitado, o genial Sir Gilberto Freyre. Ah, Gilbertinho danado!

Os acontecimentos havidos em torno da Igreja dos Martírios suscitaram sérias discussões a respeito da preservação do patrimônio histórico e da memória urbana no contexto de um regime de exceção, como o era o da Ditadura Militar brasileira (1964-1985). Olhando o evento com a distância proporcionada pelo transcurso do tempo, percebemos como os personagens com ele envolvidos deixaram claro que tinham pleno conhecimento de causa. Minha opinião é de que os confrontos ocorridos entre os que apoiavam a preservação do edifico eclesiástico setecentista e os que clamavam por sua demolição eram, na verdade, discussões “vãs” no sentido de que a ordem ditatorial ficaria, sem dúvida, ao lado do prefeito Augusto Lucena. As discussões eram componentes da crônica de uma demolição anunciada. Agora, algumas questões, a meu ver, permanecem em aberto; por exemplo: 1º) por que Augusto Lucena não aceitou a proposta do desvio no desenho da avenida de modo a livrar o templo da ação demolidora?; 2º) os que apoiaram o projeto do burgomestre o fizeram com vistas a obter algum ganho no bastidores daquele regime? A mim me parece que, no caso de Lucena, o alegado encarecimento da obra não é suficientemente convincente; já dizer que Freyre concedeu seu apoio à derrubada da igreja porque ansiava angariar simpatia dos militares na sua pretensão de ser indicado como governador de Pernambuco me parece válida, muito embora eu creia que havia algo mais por trás de sua atuação no episódio.

Não fosse pela minha vagarosidade, eu já teria posto na praça o resultado de minhas investigações a respeito desse episódio, que venho há anos examinando. Trazê-lo novamente à baila nesta data redonda – quarenta anos – veio bem a calhar, porque coincidiu com um momento em que o Progresso quer mais uma vez lançar suas garras demolidoras sobre o bairro de São José, a fim de erguer naquele espaço vários espigões, a exemplo dos que foram levantados no Cais de Santa Rita.

Uma das imagens mais impressionantes dois últimos dias da Igreja dos Martírios foi capturada pelas lentes do fotógrafo Alcir Lacerda, que faleceu no ano passado. Trata-se de um registro feito a olho de pássaro – a quem interessar possa, ele é dos compõem a obra Alcir Lacerda – fotografia, organizada por Albertina Otávia Lacerda (Recife: CEPE, 2012) -, no qual o templo aparece solitário, desolado, como que implorando para não ser demolido. Infelizmente, o Anjo da História só teve forças para não deixar que o seu martírio caísse no esquecimento.





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