15 de agosto de 2013

Gilberto Freyre e Rüdiger Bilden ou O triunfo de uma (des)honestidade intelectual


Por Clênio Sierra de Alcântara


“O que uma pessoa de bem não esquece é a inspiração recebida d’outra”.
                                              Gilberto Freyre, 1923, em carta a Oliveira Lima


“Seu livro é muito semelhante ao que estou escrevendo e em muitos aspectos importantes o esvazia [...]”.
                                     Rüdiger Bilden, 1935, em carta a Melville Herskovits





Rüdiger Bilden



Em 1914, com 21 anos de idade incompletos, um rapaz alemão deixou sua cidade natal, Eschweiler, rumo a Nova York, onde desembarcou dias antes da eclosão da Primeira Guerra Mundial. Três anos mais tarde – em fevereiro de 1917 – ele conseguiu matricular-se na Columbia University. Morando num país muito diferente do seu, sem dispor de grandes recursos financeiros e ainda por cima sendo alvo de olhares enviesados por conta de sua nacionalidade – recorde-se que uma guerra estava em curso; e que tudo o que tinha marca germânica se viu sob ataque nos Estados Unidos -, o jovem com interesses linguísticos e históricos bastante amplos conheceu, em 1916, o historiador norte-americano William Shepherd, que era um dos poucos do seu país que no início do século XX se interessavam pela América Latina; e a empatia com o mestre foi tamanha que posteriormente o aluno confessaria que Shepherd fora a pessoa e o intelectual que mais marcara seu desenvolvimento como indivíduo e como estudioso. E, quando, em 1922, o rapazote optou pelo estudo da América Latina ao ingressar no curso de pós-graduação na mesma universidade, sob orientação de Shepherd, o fez como escolha refletida e não por simples influência de seu mestre: “Foi então, com grande ambição, garra e paixão” que ele “se tornou um estudioso da história brasileira”. (1)

É com uma vivacidade e com um brilho pouco vistos em narrativas desse porte, que surge a figura do alemão Rütiger [Rüdiger ele adotou depois] Mathias Bilden no primoroso livro O triunfo do fracasso: Rüdiger Bilden, o amigo esquecido de Gilberto Freyre, da mais do que competente historiadora Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke, que veio a lume no ano passado. Maria Lúcia inicia o prefácio de sua obra dizendo que “Este livro é fruto de uma obsessão”; e o leitor, à medida que vai percorrendo suas páginas, dá-se conta de quão perspicaz, reveladora e proficiente foi a autora na condução dessa sua obsessão intelectual.

Ao lado de Francis Butler Simkins, Rüdiger Bilden era um dos companheiros inseparáveis de Gilberto Freyre, quando este iniciou seu mestrado na Columbia University. Estudante aplicadíssimo e dono de um repertório linguístico admirável – ele era fluente em português, francês, inglês, alemão e holandês - , Bilden voltou seus interesses para o estudo do passado brasileiro tomando caminhos bastantes originais num tempo – as primeiras décadas do século XX – em que a América Latina ainda era uma seara a ser descoberta em termos de compreensão de sua história social e de seu papel enquanto território ainda “imune” aos efeitos colaterais da Primeira Guerra Mundial. Estrangeiro – alemão, ainda por cima! – num país que não conseguia acertar as contas com seu passado escravocrata, impondo à parcela negra de sua população toda sorte de segregação racial, (2) Bilden, que, por seu turno, sofreu com os desdobramentos bélicos “terminados” em 1918 e os iniciados em 1939 – e ainda teve a crise mundial de 1929 no meio – que poriam os alemães numa espécie de índex nos Estados Unidos e em grande parte do mundo, atentou para uma abordagem inovadora sobre a influência da escravidão no desenvolvimento do Brasil; para tanto ele buscou fazer um levantamento bibliográfico inédito sobre esse país, sem o menor pudor de listar trabalhos que considerava fracos.

A fim de percorrer lugares, arquivos e bibliotecas para substanciar sua tese, Bilden conseguiu uma bolsa de estudos que lhe possibilitou vir ao Brasil – ele chegou ao país em dezembro de 1925 e ficou até abril de 1927 -; e em carta dirigida ao amigo Manuel de Oliveira Lima, o diplomata e historiador pernambucano de quem se aproximara em 1923, expôs de modo vibrante suas primeiras impressões do lugar: “[...] Mesmo para mim, que conhecia o Brasil através de um estudo íntimo por um período de três anos, as primeiras impressões foram inteiramente novas e poderosas”; (3) o Pará, por exemplo, era, segundo ele, “tão estranhamente diferente de tudo o que jamais vi antes”. Bilden esteve ainda no Ceará, na Bahia, em Pernambuco, no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Minas Gerais. Por onde passou seu olhar investigador avistou deslumbramentos e também decepções. (4)

Revela-nos Maria Lúcia que as ideias inovadoras que Bilden pretendia apresentar em livro sobre o Brasil foram delineadas num artigo publicado pela renomada revista The Nation em janeiro de 1929, intitulado “Brazil, laboratory of civilization”, que fora encomendado para vir a público por ocasião da visita ao Brasil do recém-eleito presidente norte-americano Herbert Hoover, em dezembro de 1928. Ainda que tenha tido trechos cortados pelo editor do mencionado periódico, o texto de Bilden teve boa repercussão , principalmente nos meios acadêmicos. Edgar Roquette-Pinto foi uma das vozes mais entusiasmadas a alardear a perspicácia do estudioso alemão, sobretudo por concordar com a importante diferenciação entre raça e cultura proposta por Bilden para tratar os “males” da miscigenação do Brasil. Residia aí o cerne, o ponto luminoso da sua tese, afinal, como destacou Maria Lúcia “considerar a composição racial como irrelevante e afirmar, em seu lugar, a importância da cultura, era contrapor-se ao chamado ‘racismo científico’ tão difundido naquela época”. (5)

O fato foi que, apesar de toda confiança que os amigos e a comunidade acadêmica depositaram nos estudos de Rüdiger Bilden – até porque o artigo aparecido na The Nation fora considerado uma pequena pedra preciosa a ser convertida numa joia -, ele não conseguiu concluí-los. E os porquês desse insucesso foram esmiuçados com grande clareza por Maria Lúcia neste seu O triunfo do fracasso.

A “figura obscura” de Rüdiger Bilden já aparecera num outro livro igualmente entusiasmador de Maria Lúcia lançado em 2005: a biografia Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos, (6) na qual a autora fez um “mapeamento” dos elementos formadores do pensamento freyriano: as influências, as ideias e os estudos absorvidos pelo Mestre de Apipucos antes do aparecimento de sua obra mais incensada, Casa-grande & senzala, que foi publicada pela primeira vez em dezembro de 1933. No estudo que veio a público em 2005 a historiadora centralizou sua análise no papel preponderante que Bilden desempenhou no desenvolvimento das reflexões que levaram Freyre a elaborar Casa-grande & senzala. Sim, é verdade – diz-nos ela -, que o projeto de pesquisa original do alemão – Slavery as a factor in Brazil history – incluía “alguns tópicos que se inspiravam” no trabalho de mestrado de Freyre de maio de 1922; (7) por outro lado, Bilden inseriu em seu projeto “a discussão de tópicos que, ausentes das preocupações iniciais do jovem Freyre, serão, no entanto, desenvolvidos magistralmente por ele em Casa-grande & senzala”. (8) Em O triunfo do fracasso, além de nos apresentar um retrato de corpo inteiro de Rüdiger Bilden – inteiro dentro do que as fontes disponíveis sobre ele lhe possibilitaram fazer -, Maria Lúcia retoma, com empenho ainda mais vigoroso, sua sede de fazer justiça quanto ao peso que deve ser atribuído a Bilden com relação à obra máxima de Freyre.

Diferentemente do que um leitor apressado possa pensar, O triunfo do fracasso não é um trabalho que tenha como fundamento denegrir a imagem e a própria identidade intelectual de Gilberto Freyre, um autor sobre o qual Maria Lúcia vem se debruçando há muitos anos com análises sempre percucientes e pelo qual demonstra ter um verdadeiro fascínio. Não se pode negar, no entanto, que o teor investigativo que confronta Bilden e Freyre tem, sim, um desejo de reparação. E para deixar bastante evidente sua postura, numa espécie de justificativa – não, não se trata de um mea culpa -, Maria Lúcia recorre à citação do artigo “Rio Branco: a estátua e o homem” - que a mim também me serve com igual propósito -, do próprio Freyre, em seus dois estudos, no qual, entre outras coisas, ele diz que convém “não acreditar nunca na existência de homens em que a vida não tenha deixado cicatrizes, deformações, marcas repugnantes ou apenas lamentáveis”. (9)

Buscando defender o legado de Bilden e a honestidade intelectual desse estudioso alemão, Maria Lúcia corajosamente não poupa críticas à atitude de Freyre com relação ao seu amigo. Ela, como já fizera em 2005, descreve, em O triunfo do fracasso, as manobras feitas por Freyre ao longo dos anos para desconstruir, apagar e/ou diminuir ao máximo a ressonância dos estudos de Bilden nos seus, a ponto de fazer sucessivas modificações num artigo de 1926 no qual louvava a figura daquele que, sem dúvida alguma, foi co-responsável por alguns dos insights que o levaram ao desenvolvimento de Casa-grande & senzala. (10) Maria Lúcia diz que esse processo de depreciação do valor de Bilden se deu numa época em que Freyre foi acometido por “uma crescente preocupação, senão obsessão” de afirmar seu pioneirismo e ligar-se forçosamente a Franz Boas – Bilden é quem fora amigo, discípulo e colaborador desse antropólogo –, como se ele se sentisse ameaçado pelos fundamentos investigativos do alemão que, infelizmente, não conseguiu nos legar um livro, mas que deixou seu rastro no mencionado artigo publicado pela The Nation. A perspicaz historiadora enfatizou que:

Cumpre aqui acrescentar que por razões que nos escapam, a renomada vaidade de Freyre, que talvez fosse defensiva e fruto de uma insegurança jamais superada, chegou em certas ocasiões, a atingir proporções colossais, que trabalharam em detrimento dele próprio e não só de amigos como Bilden. (11)

Não foi sem razão que, ao receber um exemplar de Casa-grande & senzala, em julho de 1934, Rüdiger Bilden, ficou chocado e, por algum tempo, até deprimido, porque Freyre fizera uso das ideias que ele vinha defendendo havia mais de uma década; e o recifense fora a única pessoa a quem confiara a leitura de seus manuscritos. Não custa lembrar que, até pelo menos o final de 1929, Freyre mantinha o projeto de escrever um estudo sobre “child life in Brazil”. Por que Freyre não levou isso adiante? (12) Creio que Casa-grande & senzala tenha feito Bilden desistir de escrever o seu próprio livro.

Maria Lúcia classificou a postura de Freyre frente a Bilden como uma “relação conflituosa, senão mesquinha”; e mais uma vez incisiva registrou:

Enfim, penso não ser exagero afirmar que Bilden não só teve impacto nas ideias de Gilberto Freyre e nas de outros estudiosos, como fez uma diferença na história das relações raciais norte-americanas, tanto como pensador quanto como ativista cultural, apesar de seus projetos de ampliar a questão para abarcar muitas outras regiões além dos Estados Unidos e do Brasil não terem se realizado. (13)

A tese defendida por Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke em O triunfo do fracasso  difere completamente da que, por exemplo, aparece em Gilberto Freyre: uma biografia cultural, de Enrique Rodríguez Larreta e Gillermo Giucci. Segundo eles:



Todo Gilberto Freyre conflui para Casa-grande & senzala. A biografia do autor está presente  tanto na concepção quanto na execução da obra que cristaliza intuições de época de sua adolescência e dos primeiros anos de estudo no estrangeiro. Está presente na vida do "menino de engenho" circunstancial dos verões em São Severino do Ramo, nos primeiros escritos juvenis sobre Oliveira Lima, na tese de mestrado na Universidade de Columbia, nos ensaios sobre a vida cotidiana no Nordeste, no projeto da história colonial do Brasil. O impulso final está ligado à Revolução de 1930. Casa-grande & senzala foi concebido, sem dúvida, à luz do incêndio da casa da família e estimulado pela nostalgia do exilado. (14)



Com a autoridade de quem acompanha e vem aqui e ali publicando análises sobre vários aspectos da obra freyriana, Anco Márcio Tenório Vieira, professor da Universidade Federal de Pernambuco, não poupou críticas a O triunfo do fracasso na conversa que mantivemos na Livraria Cultura do Recife Antigo, em junho passado. Começou dizendo que considerava o estudo de Maria Lúcia "um livro esquizofrênico". E por quê?


No livro anterior [Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos] ela mostra Gilberto Freyre como um leitor voraz, como alguém que tinha capacidade de ler um livro e tirar dele muita coisa - e isso examinando leituras de autores ingleses feitas por ele. Agora, neste O triunfo do fracasso, Freyre aparece como alguém que se deteve num único estudioso. Quem era esse Bilden? Quando eu li o livro anterior dela, procurei algo sobre ele e não encontrei nada. Para mim Bilden era uma dessas pessoas que elaboram grandes projetos e não conseguem levá-los adiante, porque dão um tiro no próprio pé. O próprio artigo que ela reproduz dele é fraco. (15)


A diatribe de Anco Márcio se acentua quando ele comenta que na entrevista que Maria Lúcia concedeu à edição de fevereiro  deste ano do suplemento cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco, ela declarou que "Não se pode saber com certeza como teria sido esse livro pioneiro de Bilden, mas, a levar em conta o projeto original e textos posteriores, é de supor que teria um viés econômico e científico bastante acentuado [...]". (16)

Levando em consideração essa declaração de Maria Lúcia, Anco Márcio avaliou que, neste caso, Gilberto Freyre não fez em Casa-grande & senzala o estudo que Rüdiger Biden supostamente faria:


Ora, quantas vezes você dá ideias a uma pessoa e ela não realiza nada; ou então, se faz, não fica bom. Gilberto Freyre escreveu Casa-grande & senzala porque ele tinha capacidade para tanto. O livro é grandioso porque Freyre escreveu a história de uma civilização - e eu creio que ninguém fez isso até hoje em outro país - sem recorrer aos aspectos políticos e econômicos. E isso por si só explica a dimensão que o livro adquiriu.
              

Quem se dispõe a penetrar no universo freyriano não demora a perceber que o seu brilho intelectual e sua genialidade aparecem quase sempre de mãos dadas com uma vaidade incontida. Freyre está a todo tempo tomando para si – e lembrando incansavelmente a seu público leitor – primazias em várias frentes: foi ele quem primeiro viu que a miscigenação racial existente no Brasil não era perda e sim ganho (Casa-grande & senzala, 1933); saiu de sua pena o primeiro guia turístico "amoroso" de cidade brasileira (Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife, 1934); ele escreveu o primeiro estudo de caráter ecológico destas plagas (Nordeste, 1937); foi ele quem pioneiramente deu status de documentos aos jornais em estudos históricos (O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX [1963], que é o prolongamento de uma conferência publicada pela revista Lanterna Verde, da Sociedade Felippe d’Oliveira, em fevereiro de 1935). E por aí vai.

Gilberto Freyre nunca deu ponto sem nó. Não sei se se tratava de uma “insegurança jamais superada”, como sugere Maria Lúcia, a recorrência dele em querer redimensionar seus feitos e, por conseguinte, anular os dos seus adversários, digamos assim -, reescrevendo e/ou suprimindo trechos de seus textos. Como ler as obras freyrianas com olhos que parecem lupas, Maria Lúcia vem enxergando nelas saliências que revelam um comportamento que, a meu ver, é de pura desonestidade intelectual: uma coisa é corrigir, é rever, é reconsiderar, é ampliar determinados escritos e deixar o leitor ciente disso; outra, bem diferente, é alterar textos e reapresentá-los como se eles tivessem tido sempre essa nova conformação. Quando prefaciou a segunda edição de Tempo morto e outros tempos, Maria Lúcia não se furtou – como fizera, aliás, em Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos – a esclarecer que, boa parte do que aparecia nesse suposto diário de adolescência e de primeira mocidade, era, na verdade, produto não de um tempo morto e, sim, de um tempo recriado: “Idealizadas pela nostalgia, muitas passagens de sua juventude ali descritas dizem muito mais sobre um Freyre maduro e famoso do que sobre a vida entre 1918 e 1930, o período a que supostamente se estava referindo”. (17) Alterações textuais foram encontradas por ela em outras obras de Gilberto: Região e tradição (1941), Retalhos de jornais velhos (1964) e em Tempo de aprendiz (1979), não por acaso livros compostos basicamente por artigos anteriormente publicados. A mim me parece que, mais do que querer ludibriar o seu leitor, o que Freyre fazia ao reescrever suas narrativas era tripudiar sobre os seus detratores, como que dizendo que, uma pessoa que possuía uma obra tão celebrada como a sua, estava acima do bem e do mal, e poderia escrever e/ou reescrever o que e como bem entendesse. Ou então, ingenuamente, ele pensava que sua artimanha jamais seria descoberta, acreditando que ninguém iria se dar ao trabalho de ir às fontes originais. Ao dizer que o seu amigo recifense tinha um “temperamento prima donna”, Bilden acertou em cheio.

Livro muito bem escrito e com uma riqueza de informações e intuições impressionantes, O triunfo do fracasso confirma não só o talento, mas também o caráter passional – para mim a passionalidade em estudos históricos é sempre bem-vinda – com que Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke trata os seus objetos de investigação. Quase que podemos ver o brasilianista - o protobraslianista, como disse dele Roberto DaMatta – Rüdiger Bilden caminhar pelas páginas dessa obra, carregando os infortúnios e desilusões que tanto pesaram sobre ele. Bilden fracassou? De maneira alguma, porque seu legado rendeu o livro primoroso de Maria Lúcia e, a se crer no que essa autora propõe, inspirou uma obra da importância de Casa-grande & senzala. Por meu lado são dois os senões  que faço a O triunfo do fracasso. O primeiro deve-se ao fato de que, tratando-se de um estudo a respeito de um brasilianista alemão e de sua relação com Gilberto Freyre, a autora não tenha incluído na bibliografia o livro Nós e a Europa germânica, que o sociólogo pernambucano lançou em 1971. Corroborando o que afirma Maria Lúcia – que a partir da década de 1970 o autor de Ordem e progresso começou a apagar a importância de Bilden em seus estudos acerca da influência da escravidão na sociedade brasileira -, nessa obra o alemão não é mencionado sequer na dedicatória. (18) O segundo senão é a ausência no apêndice do artigo tão comentado por ela que Bilden publicou na The Nation.

Concordo plenamente com meu querido amigo e mestre Edson Nery da Fonseca, reconhecido e celebrado como um dos maiores gilbertólogos, que Maria Lúcia “escreve sem retórica e com muita precisão sobre temas obscuros da formação social do Brasil” e que seu “livro merece o prêmio da Academia Brasileira de Letras”. (19) Considero a fortuna crítica que Maria Lúcia empreende com uma das mais elucidativas que até hoje se fez sobre a obra freyriana.

Ao ler estudos como O triunfo do fracasso, chego a sentir vontade de odiar Gilberto Freyre. Mas isso logo passa, porque até o veneno dele me anima: Gilberto é aliciante demais.

Quero encerrar este artigo dizendo que, num momento que se preparam as comemorações pelos 80 anos de publicação de Casa-grande & senzala, Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke vem, com O triunfo do fracasso, proclamar que, acender uma vela em louvor de Rüdiger Bilden no mesmo altar em que foi posto Gilberto Freyre, não seria uma profanação, seria, isso sim, reconhecer o tanto que esse alemão contribuiu para a canonização do renomado pernambucano.



Notas

1- Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. O triunfo do fracasso, p. 83.

2-  Nunca esqueci daquela página de Tempo morto e outros tempos, na qual Gilberto Freyre conta que, ao passar por uma cidade ou vila chamada Waxahaxie, ter sentido um cheiro intenso de carne queimada e ter sido informado com “relativa simplicidade” que: “’É um negro que os boys acabam de queimar!’. Seria exato? Seria mesmo odor de negro queimado? Não sei, mas isso me arrepiou, e muito” (p. 67).

3-  Apud Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. Op. cit., p. 140. A data da carta é 27 de dezembro de 1925.

4-  Vejam a seção “Impressões de viagem”, que faz parte do segundo capítulo de O triunfo do fracasso, p. 142-172.

5- Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. Op. cit. p. 194. E é ela mesma quem completa: “É importante ressaltar, mais uma vez, que a defesa finamente articulada e historicamente fundamentada da miscigenação brasileira era inusitada para a época e não pode deixar de ter impressionado ou até chocado muitos ouvintes e leitores de então” (p. 204).
6-  A pessoa e os estudos de Bilden aparecem na seção “Rüdiger Bilden: um interlocutor esquecido”, que integra o quarto capítulo, p. 378-411.

7- Trata-se de Social life in Brazil in the middle of the nineteenth century, publicado no vol. 5, nº 4 da Hispanic American Historical Review, em novembro de 1922. A primeira edição em língua portuguesa foi publicada em 1964 sob o título Vida social no Brasil nos meados do século XIX, com tradução de Waldemar Valente.

8-  Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos. Op. cit. p. 379 e 380.

9- Gilberto Freyre. “Rio Branco: a estátua e o homem”. In: Pessoas, coisas e animais, p. 151. O livro, na verdade, dá um título geral a uma série de artigos escritos sobre Rio Branco publicados pelo Diario de Pernambuco em 1946.

10- Gilberto Freyre. “Sobre as ideias gerais de Rüdiger Bilden”; publicado originalmente pelo Diario de Pernambuco em 17 de janeiro de 1926, aparece ainda no segundo volume de Tempo de aprendiz, p. 249-252. Em Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos o artigo foi reproduzido integralmente no apêndice, onde se podem verificar as modificações, cortes e adições feitos pelo autor e destacados por Maria Lúcia. Não se pode esquecer – e Maria Lúcia também salienta isso – que Freyre elogiou os estudos de Bilden no prefácio da 1ª ed. de Casa-grande & senzala. Na 41ª ed. desse livro isso aparece na página 44: “Devo aos meus dois amigos [o outro era Francis Butler Simkins], principalmente a Ruediger Bilden, sugestões valiosas para este trabalho”. Note-se, no entanto, que, já a partir do prefácio à 1ª ed., Freyre se põe a superdimensionar a influência de Franz Boas em sua formação intelectual.

11- Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. O triunfo do fracasso. Op. cit. p. 355.

12- Vejam possíveis explicações a respeito in Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos. Op. cit. p. 407.

13-  Id., ibid. p.  372 e 376.

14- Enrique Rodríguez Larreta e Guillermo Giucci. Gilberto Freyre: uma biografia cultural, p. 426.

15- Anco Márcio Tenório Vieira. Depoimento. Recife, 30 de junho de 2013.

16- Paulo Carvalho. "A necessidade de se legitimar um 'fracasso'", p. 17.

17- Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. “’Um livro marcante’, ou uma Autobiografia à prestação”. In: Gilberto Freyre. Tempo morto e outros tempos, p. 13. Vejam, ainda a propósito, as páginas 24, 25, 26, 27, 28 e 29 de Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos. Não podemos esquecer que Assis Claudino, no seu O monstro sagrado e o amarelinho comunista, publicado em 1985, já apontava esse expediente de Freyre. Segundo Claudino, Freyre "tem mania de retificar seus textos primitivos para ajustá-los ao gosto estético dos seus admiradores", p. 149. De minha parte, não acredito que tenha partido de José Antônio Gonsalves de Mello, a iniciativa de declarar, em Tempo de aprendiz, que os artigos reunidos nos dois volumes apareciam ali sem modificações nos textos originais. A mim me parece que Gilberto Freyre pediu ao nobre historiador organizador da obra, que assim procedesse.

18-  Gilberto Freyre. Nós e a Europa germânica, p. 5. O conjunto de ensaios foi dedicado a Helmut Schelsky, da Universidade Münster, Conde Luduvig Schomberg, austríaco e seu tradutor, Frei Serafim Preim, da Westfália, e ao professor Herman Gorgen, de Bonn.

19-Edson Nery da Fonseca. Depoimento. Recife, 22 de abril de 2013.


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