8 de setembro de 2013

Em cartaz: o Cinema da Fundação

Por Clênio Sierra de Alcântara


                                                                             Especialmente para João Maria


Fotos: Ernani Neves

Para o visitante que chegasse ao Recife na última década do século passado não era absurdo acreditar que o fim do mundo estava próximo: o ano 2.000 assinalaria de fato o término de tudo. E se o mundo iria mesmo acabar na virada da centúria, para que cuidar da cidade? O Recife estava abandonado. O Recife se autodestruía. E enquanto uma massa alienada se esbaldava numa coisa chamada Recifolia, que era um verdadeiro acinte à cultura local, Chico Science e os seguidores do Movimento Mangue Beat proclamavam que ninguém fugia ao cheiro sujo da lama da Manguetown, ecoando o “ciclo do caranguejo”, de Josué de Castro. O Recife era a cidade do descaso.

O cenário de ruas e calçadas esburacadas, de praças sem manutenção e de uma atmosfera impregnada de desesperança era acompanhado pelo acelerado desaparecimento dos cinemas, empobrecendo um pouco mais a vida cultural de uma cidade que, havia não muito tempo, era vendida como a “capital do Nordeste”. Os altos índices de criminalidade encontraram seu espaço nas páginas de um jornal lançado naquela década – a Folha de Pernambuco – do qual se dizia que, caso se amassasse alguma de suas páginas,  sairia sangue. A mortandade se alastrava pelas periferias. Mas o cenário de morticínio era marcado também por belos sobrados abandonados no centro da cidade, vários deles às margens do Capibaribe, o “papa-estrelas” do dizer de Gilberto Amado; o rio que viu tantos Recifes nascer e morrer, como registrou Gilberto Freyre numa evocação a Manuel Bandeira; o rio que conhecia de muito perto a miséria de um sem-número de recifenses e emigrados que chegavam à capital sonhando em tomar para si um mínimo que fosse da riqueza que alguns diziam que ainda existia por ali. O Recife era a cidade do medo naqueles anos que eu classifiquei como a “década do desespero”.

Fosse de dentro para fora ou de fora para dentro, a face do Recife era uma só: a de uma cidade que, tal qual uma prostituta no apogeu de sua velhice, fazia com as lembranças de tempos gloriosos, as muletas necessárias para se manter de pé.

No dia em que escreverem o livro de minha vida certamente destacarão, em páginas das mais turbulentas, que o ano de 1998 foi aquele em que eu mergulhei por inteiro – e sem escafandro – dentro do Recife, dentro de mim, dentro do mundo. Eu, tão dado à covardia, encarei naquele ano a vida com uma coragem e com um destemor absurdos. Na cidade do medo eu encarnava o intrépido, eu era a personificação do monstro que tudo queria, que tudo podia fazer: conhecer pessoas, coisas, sensações. Eu parecia fadado a entregar meu corpo em imolação pela causa de uma liberdade irreversível e irrestrita.

Tempos de Miguel Arraes. E mestre Ariano Suassuna, soprando com esforço a névoa do obscurantismo que insistia em pairar sobre a província, fazia o que podia como secretário de Cultura. Criou até o Cineteatro Arraial, a singela casa onde experimentei em doses cavalares o prazer proporcionado pela magia da sétima arte vendo, entre outros, Akira Kurosawa e Louis Malle. O Arraial onde eu conheci Ernani Neves numa noite dedicada a Simião Martiniano, o camelô cineasta.

É de se ver que, na “década do desespero”, ao menos no Recife, nem todos se deixavam abater pelo estado lastimável em que se encontrava a cidade, nem todos faziam planos de arrumar as malas e buscar outras searas. Havia ali uma geração que não se curvava, uma geração que era feita da mesma madeira de lei que cupim não roi, de que falava Capiba. Com o Movimento Mangue Beat parte dos recifenses começou a sair do estado de letargia. Com a realização do filme Baile perfumado o audiovisual pernambucano disse ao resto do país que, ainda que a duras penas, esta terra tinha gente competente e talentosa que estava dando tudo de si para fazer renascer uma atividade que, em outros tempos, tivera dias memoráveis. Era um esforço de muitos para tirar o Recife das trevas – e a luz era a arte.




Fachada do prédio da Fundação Joaquim Nabuco que abriga entre outros o cinema e a Galeria Vicente do Rego Monteiro

Foi ainda em 1998 que o Recife viu nascer uma das experiências culturais mais marcantes e que eu tive o privilégio de acompanhar desde o começo – a abertura de uma sala de exibição de filmes num prédio da Fundação Joaquim Nabuco, na Rua Henrique Dias, no bairro do Derby. Em princípio chamado de Cineteatro José Carlos Cavalcanti Borges, depois passou a atender pela designação de Cinema da Fundação Joaquim Nabuco; mas quase todos os seus frequentadores o chamam apenas de Cinema da Fundação – a sala continua homenageando José Carlos Cavalcanti Borges.


Na camiseta, vendida na bilheteria, Robert de Niro é o Touro indomável



Este é o espaço de um aconchegante café que funciona no local



Ao longo dos anos os equipamentos do cinema foram sendo modernizados para a satisfação de seu público cativo

Eu no aguardo do início da sessão de Porcos raivosos seguida de Doméstica

Num tempo em que o programa Todos com a nota, do Governo do Estado, permitia que notas fiscais fossem trocadas por ingressos desse cinema e não apenas para jogos de futebol, como funciona atualmente, eu, que havia muitos anos não via filmes na telona, comecei a frequentar o Cinema da Fundação com uma assiduidade quase que religiosa – bem é verdade que às vezes eu só ia para lá depois de me encontrar com Eliane.


É um charme a decoração do corredor com cartazes de filmes



Com uma programação dirigida por Luiz Joaquim e pelo crítico de cinema Kleber Mendonça Filho – e é com muita satisfação que eu vejo que Kleber como que acompanhou o sucesso da sala de exibição, empreendendo uma promissora carreira de cineasta com curtas-metragens como Recife frio, e um longa, O som ao redor, que foi uma das sensações cinematográficas brasileiras no ano passado -, o Cinema da Fundação logo caiu no gosto de um público ávido por apreciar filmes que não entravam no circuitão – naqueles anos o circuitão era na verdade um circuitinho -, produções recentes e antigas, que Kleber e Luiz punham em cartaz a fim de diversificar ainda mais a programação. Além do que era exibido, eles fizeram algumas experimentações quanto aos horários das sessões. Assim foi que apareceu uma chamada Sessão Paranormal, que começava à meia-noite – lembro de ter ido a pelo menos uma dessas sessões alternativíssimas.

Entre longas e curtas-metragens eu fui efetuando minha educação pela tela do cinema - rindo e chorando muito: Corisco e Dadá, Como ser solteiro no Rio de Janeiro, Anahy de las Misiones, O que é isso, companheiro?, El dia de la bestia, Funny games, Muro, Superbarroco, Vitrais, Clandestina felciidade, Lemon tree, Cartola: música para os olhos, Vidas secas, O segredo de Brokeback Mountain, Deuses e monstros, Amigas de colégio, Café da manhã em Plutão, Trem da vida, A história de Adele H, Boleiros, Quando tudo começa, A mulher e o atirador de facas, Velvet goldmine, Touro indomável, Texas Hotel, Recife frio, O pedido, Véio, O som ao redor, Caché, Amor, Boogie nights – Prazer sem limites, Buena Vista Social Club, Bocage – O triunfo do amor, Sonata de outono, Desconstruindo Harry, Pickpocket, O sol por testemunha, Dançando no escuro, O mundo de Andy, Vamos nessa, Felicidade, Gaijin – Caminhos da liberdade, Radiofreccia, Incontri proibiti, Magnólia, Porcos raivosos, Doméstica, Hana-Bi – Fogos de artifício, Aimeé e Jaguar, A enguia, E sua mãe também, Dogville, A trapaça, Hilary e Jackie, Os idiotas, Jackie Brown, Dogma, A maçã, Corra, Lola, corra, A vida sonhada dos anjos, Babilônia 2000, Amor à flor da pele, A hora do show, Festa de família, O hospedeiro, À meia noite levarei sua alma, Que fiz eu para merecer isto?...








Foi nas idas ao Cinema da Fundação que eu conheci o cinéfilo de carteirinha e montador premiado João Maria – foi João quem montou, entre outros, Muro, de Tião, premiado no Festival de Cannes, e O som ao redor, apontado pelo The New York Times como um dos dez melhores filmes do ano passado -; e ficamos amigos desde então. Acompanhando suas andanças, eu entrei pela primeira vez numa ilha de edição, quando ele me levou para ver as imagens ainda verdes, das quais sairia o clipe dirigido por seu amigo Martins, da música “Sapopemba”, do grupo Comadre Florzinha. E foi ainda por intermédio de João Maria que eu fiz uma figuração – as pessoas só sabem que eu estou ali por causa do meu nome nos créditos – no curta-metragem A visita, de Hilton Lacerda, na sequência filmada na Praia do Paiva. Hilton que também vem percorrendo uma trajetória de êxitos como roteirista e diretor; recentemente o seu ainda não lançado filme Tatuagem, foi eleito o melhor do Festival de Gramado.

Movimento no corredor para entrar na sala

Consolidado como verdadeiro point de cinéfilos, o Cinema da Fundação, ao longo dos seus quinze anos, promoveu mostras bastante concorridas como a de François Truffaut, Robert Bresson, Alain Delon e Zé do Caixão; e a de filmes espanhóis, italianos e franceses - estes últimos dentro do Festival Varilux. E sem falar das Retropectivas/Expectativas no mês de dezembro, que causam sensação na cidade.

Em mais de uma ocasião eu cheguei ao Cinema da Fundação e não encontrei ingressos para determinadas sessões. O corredor lotado. (Recordo perfeitamente do dia em que, celebrando o centenário da imigração japonesa no Brasil com a exibição do filme Gaijin – Caminhos da liberdade, da Tizuka Yammasaki, foram espalhados lindos ikebanas pelos corredores.) O bulício. E aquela torcida para ver se sobraria um ingresso que fosse.







Antes que terminasse o século XX eu já me encontrava quase que completamente impregnado da seiva bruta do Recife. No atropelo das horas Helen Graças se esvaiu de mim como água que escorre da concha das mãos. Descobri André Araújo e Clarice Lispector num tempo em que, sem dúvida alguma, não existia um coração mais selvagem do que o meu: nem perto nem longe dali. Apresentei Aderbal Lima ao Cinema da Fundação numa sessão do filme Boleiros, de Ugo Giorgetti. Entrei na turma de Darry, Poniboy e Sodapop ao ler Outsiders – Vidas sem rumo, da Susan E. Hinton, que me foi emprestado por João Maria, quando eu buscava dar um rumo a minha caminhada. E guardei muitos fragmentos daqueles dias em escritos para o meu próprio consumo – quiçá para o de outrem futuramente.




Daqui para baixo folders,  panfletos e programas distribuídos no Cinema da Fundação que compõem o meu acervo
























Passados quinze anos, desde o début do Cinema da Fundação, o Recife – o Recife, sim! Recife, não!, como preconizava o Mestre de Apipucos – continua procurando se reerguer, estendendo as mãos para que cada um de nós de alguma maneira contribua para sua reabilitação a fim de que lhe seja restituído o que ele tinha e tem de melhor: sua gente guerreira e criadora, sua beleza aliciadora, sua história verdadeira, sua atmosfera inspiradora. Tal qual o Cinema da Fundação, que vem se renovando continuamente, o Recife deve ser mantido sempre em cartaz.


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