5 de novembro de 2013

Uma outra revolução dos bichos

Por Clênio Sierra de Alcântara

Arte: Ernani Neves


Alguns fatos e ideias se nos apresentam de forma tão absurda que custamos a crer que eles realmente têm a configuração e a consistência com as quais nos foram revelados. Passei dias tentando digerir a série de pronunciamentos estapafúrdios dada por eminentes artistas brasileiros e até agora a coisa permanece me incomodando como uma persistente dor de cabeça que analgésico nenhum consegue debelar.

Num ano marcado por marchas cívicas que tomaram ruas e avenidas deste país clamando por moralidade, progresso, justiça social, educação e saúde de qualidade, e cidadania, eis que, destoando do coro, vem um grupo de figurões pregando, como se tivessem sob efeito de algum alucinógeno que lhes suprimiu a esfera da realidade, o retrocesso, o cerceamento da liberdade de expressão, o obscurantismo.

De certo que não se poderia esperar outra coisa de um homem que vem há décadas tentando impedir que se digam verdades - ele é uma pessoa pública; e fatos são fatos, não são invencionices - a respeito de sua vida que ele julga inconvenientes. De certo que não se poderia esperar boa coisa de um sujeito que, a despeito de viver no bem bom, desfrutando do melhor da vida, faz jogo de cena, faz charminho posando de defensor de um governo de tiranos como o de Cuba. De certo que não se poderia esperar coisa que prestasse de um cara que renega seu passado a ponto de querer reescrever sua obra. Mas o senhor, Caetano Veloso?! Mas o senhor, Gilberto Gil?! Então era tudo mentira o que os senhores proclamavam? Era tudo armação para vender discos e angariar nossa simpatia? Que decepção, senhores, que vergonha! Se eu pudesse, me submeteria a alguma intervenção que fizesse com que os senhores fossem inteiramente apagados de minha memória afetiva. Eu queria agora lhes dizer um palavrão bem cabeludo - um não, vários -; mas eu tenho ainda algum pudor, senhores; não conseguiria dizê-lo nem mesmo neste espaço; eu ainda tenho algum pudor e alguma clareza de pensamento, talvez porque, nesses meus quase quarenta anos de vida, eu nunca consumi droga ilícita nenhuma e nem busquei enganar aqueles que me estimam e me querem bem.

Não adianta que os senhores recorram a malabarismos retóricos, porque para um bom entendedor a pregação desvairada que os senhores estão a fazer é claríssima, límpida, cristalina: é a censura nua e crua o que os senhores querem empunhar como escudos defensores de suas "vidas particulares". É patética, senhores, é patética e ridícula a posição que estão por ora assumindo, porque até parece que os senhores ignoram o fato de que os artistas não são pessoas comuns, que os artistas são patrimônios culturais de suas sociedades. É patética e ridícula a postura que os senhores assumiram bem como essa associação denominada Procure Saber, que os senhores fundaram. Como, "Procure Saber", se o que os senhores querem é ocultar, é esconder, é suprimir, é negar, é reprimir, é cercear, é impedir, é proibir, é encobrir, é disfarçar, é eliminar, é deletar, é bloquear, é vigiar, é censurar? O correto não seria "Não Procure Saber"?

Anos atrás, quando o empenho e a sanha do senhor Roberto Carlos de calar a liberdade de expressão encontrou abrigo na Justiça injusta deste Brasil, e conseguiu fazer com que um livro de tão agradável leitura que é Roberto Carlos em detalhes - eu consegui adquirir um exemplar antes que ele fosse tirado do comércio -, do historiador e fã - destaque-se isso, fã - de Roberto, Paulo Cesar de Araújo, parasse de circular, o episódio mexeu muitíssimo com os meus brios de pesquisador. E foi a partir dali que comecei a rever todos os meus conceitos com relação a esse cantor e compositor. Senti-me mergulhando no abismo da ignorância, porque para mim nada do conteúdo do livro do Paulo Cesar justificava a ação promovida pelo senhor senhor Rei da Ignorância Roberto Carlos; até onde eu sei, o que consta na narrativa já era amplamente conhecido do público, porque, antes de ganhar as páginas do livro, estampara as de jornais e revistas. Pior do que a decisão judicial foi a reação da editora Planeta frente ao caso. Sendo eu diretor dessa casa publicadora jamais queimaria os livros, como dizem que foi feito. A Justiça determinou a suspensão da comercialização da obra? Então eu mandaria distribuí-la de forma gratuita e pronto, só por pirraça. Mas eu devo reconhecer que algo melhor ocorreu: a quem se interessar pela leitura é só procurar o arquivo do livro na internet. Proibir que um livro circule é agir como um inquisidor; e, neste caso, o senhor Roberto Carlos infelizmente não é o único a agir como tal; existe no Brasil um rol, um novo index librorum prohibitorum que conta com o amparo torto da Justiça que, ignorando a lei maior do país, a Constituição, que estabelece a liberdade de expressão e o direito à informação para todo e qualquer cidadão, dá guarida a solicitações dessa natureza, ferindo o nobre princípio contido na Carta Magna.

Esse levante de irracionalidade ora capitaneado por conhecidíssimos artistas brasileiros agride por inteiro a liberdade de expressão e até o exercício do jornalismo independente. Não se concebe que tenhamos de nos ver reprimidos por censores que nos digam o que podemos e o que não podemos escrever; e, por tabela,  que estabeleçam o que podemos e o que não podemos ler e saber. Como historiador, como alguém que pratica a atividade da escrita e como cidadão que busca racionalizar tal condição, não consigo aceitar essa bandeira de falsa moralidade que esses senhores estão a empunhar. Alegar que suas vidas privada só lhes pertencem é apenas uma desculpa esfarrapada para atacarem os fundamentos da democracia, porque não se trata de invasão de privacidade a divulgação de fatos ligados a pessoas públicas. A nós historiadores interessam as vidas de todo tipo de gente, porque os indivíduos são os construtores da História; se se examina com maior acuidade a trajetória de pessoas tidas como de destaque - artistas, políticos, cientistas, etc. - é porque elas agregaram às suas vivências uma forte influência sobre o cotidiano de milhares e até de milhões de outras pessoas de uma forma ou de outra. A leitura de um livro como O queijo e os vermes, do Carlo Ginzburg, ilumina, creio eu, qualquer mente mantida sob esses arroubos retrógrados; a história do moleiro Domenico Scandella, conhecido por Menocchio, é espantosa, é encorajadora, é surpreendente. É de Menocchios que este Brasil dos dias de hoje precisa; e não de organizadores de autos-de-fé.

Podem espernear, podem esbravejar, podem posar de bons moços ao lado da presidente Dilma Poste Apagado Rousseff, podem fazer o diabo, mas os senhores já perderam. A lei autorizando a publicação de biografias "não autorizadas" será aprovada pelo Congresso Nacional porque, mesmo que a duras penas, o Brasil não deixará de marchar nas veredas da democracia.

No clássico A revolução dos bichos, de 1945, o inglês George Orwell utiliza uma fazenda comandada por animais como alegoria para mostrar como os regimes ditos socialistas - ele se refere diretamente à ditadura stalinista - se revelam, na verdade, prepotentes e ditatoriais, apesar de, em princípio, anunciarem o bem comum; os animais vão pouco a pouco sendo oprimidos pelos cabeças do grupo que pregam, na realidade, que todos são iguais, "mas uns são mais iguais que outros". No Brasil dos dias que correm uns bichos escrotos querem promover a todo custo uma "revolução" com intenção de arrancar de nós um bem de valor incalculável, que é a nossa liberdade de expressão. Xô, bichos, xô!!

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