12 de janeiro de 2014

Mulher, negra, guerreira, merendeira e pop star: 70 anos de Lia de Itamaracá


Por Clênio Sierra de Alcântara



Congelou-se na minha memória, de modo indelével, o instante em que, muito tempo atrás, pela primeira vez eu vi pessoalmente a figura de Lia de Itamaracá. Era noite. Eu estava num ônibus retornando do Recife quando, na altura do bairro de Ouro Preto, em Olinda, ela embarcou junto com umas pessoas que a acompanhavam. Ao assombro de estar tão perto de uma personagem bastante conhecida da cultura pernambucana, em particular, e brasileira, em geral, somou-se o desapontamento quando eu percebi que ela se encontrava embriagada. Muitos anos se passariam desde aquele inesperado encontro para que eu tomasse conhecimento de que o alcoolismo foi apenas uma das estações da via-crúcis que aquela mulher valentemente teve de enfrentar a fim de firma-ser como uma das grandes personagens deste nosso tempo.


Apresentação no ciclo natalino na Praça do Arsenal com as irmãs Baracho Dulce e Severina






Nascida Maria Madalena Correia do Nascimento aos doze dias de janeiro de 1944, na Ilha de Itamaracá, litoral norte de Pernambuco, Lia é a representante maior, ainda viva, de um folguedo popular – canto e dança – chamado ciranda. De acordo com o pesquisador e escritor Padre Jaime Diniz, que pioneiramente fez registros sobre esse folguedo na década de 1960 – e destaque-se que ele tratava da ciranda de adultos e não das cirandas infantis já conhecidas em todo o país -, “Os que participam desse folguedo popular são cognominados ‘cirandeiros’. Os cirandeiros e as cirandeiras – principalmente essas – além de dançarem, cantam as ‘respostas’ (os estribilhos) das melodias jogadas no ar pela principal figura da ciranda, conhecida pelo nome de ‘Mestre da Ciranda’ ou simplesmente Mestre” (Padre Jaime Diniz. “Ciranda” in Arte popular do Nordeste. Coordenação de Hermilo Borba Filho. Recife: Prefeitura Municipal do Recife, 1966, p. 102).

Desde os doze anos de idade que Maria Madalena começou a frequentar rodas de ciranda; e, já quase adulta, assumiu a persona de Lia, um nome que, incluído numa ciranda “composta” – as aspas se devem ao fato de que não há consenso quanto a isso – por Antônio Baracho, um mestre brincante que saiu da lida da lavoura da cana de açúcar em Nazaré da Mata e fincou seu labor artístico em Abreu e Lima, lançou a cirandeira no imaginário social de todo o país. Quem nunca ouviu estes versos: “Esta ciranda quem me deu foi Lia/ Que mora na Ilha de Itamaracá”?






Minha avó Maria da Conceição me contou que foi várias vezes assistir a apresentações de cirandas na Praça Antônio Vitalino, no centro urbano abreulimense. De minha parte recordo apenas – e muito vagamente – a ocasião em que eu, menino, estava naquela praça vendo uma multidão a dançar formando um grande círculo. Foi em Abreu e Lima que o Padre Jaime Diniz recolheu quadrinhas de ciranda como esta: “Cantei ciranda/ E meu amô não veio/ Não veio, não veio/ E a tristeza se meteu no meio” (op. cit. p. 104).

O porte avantajado e elegante, a indumentária majestosa e a presença imponente conferem à cirandeira Maria Madalena, conhecida nacional e internacionalmente como Lia de Itamaracá, ares de uma deusa africana. “Eu sou filha de Iemanjá”, ela costuma dizer, conferindo às suas palavras toda uma carga de valores espirituais e telúricos que podem emanar de quem realmente se compreende enquanto ser socialmente vivente; porque penso que quando um indivíduo diz o que ele é, ele determina o seu papel no mundo.




No camarim 


Aqui apareço ao lado da grande Lia de Itamaracá no Centro Cultural Correios do Recife


Quem hoje vê Lia de Itamaracá se apresentando magnífica e brilhantemente nos palcos por esse mundo afora, não pode imaginar as barreiras e dificuldades todas que a mulher Maria Madalena teve de superar para que a artista Lia de Itamaracá pudesse estabelecer definitivamente sua pessoa e sua arte no panorama cultural brasileiro. Mulher, suburbana, semianalfabeta e negra numa sociedade machista e preconceituosa, Maria Madalena tinha tudo para dar errado, mas felizmente deu certo.

Foram inúmeros os depoimentos de Lia que eu acompanhei através dos jornais e dos programas de televisão nos quais a cirandeira desfiava seu rosário de queixas: além das dificuldades financeiras, ela reclamava sobretudo da falta de reconhecimento e de apoio para manter sua ciranda em atividade.



Salve, salve majestade!



Cirandando no Centro Cultural Correios





Quem conhece de perto a história de Lia sabe que ela não foi criada pelos pais biológicos; que ela, ainda criança, começou a trabalhar como empregada doméstica; que sofreu alguns abortos espontâneos; que seu único filho faleceu com poucos meses de vida; e que um incêndio – que ela julga ter sido criminoso – acabou com a casa que ela conseguiu com tanto sacrifício, depois de ter sofrido ameaças de despejo do mocambo no qual residia.


Durante certo tempo Lia trabalhou como cozinheira no bar e restaurante Sargaço, localizado no bairro de Jaguaribe, parte da Ilha de Itamaracá onde ela até hoje reside; à noite ela se apresentava com o seu grupo de ciranda no mesmo estabelecimento; as apresentações foram interrompidas a partir do momento em que autoridades policiais passaram a exigir um documento que liberasse a ocorrência de eventos como aquele no referido local; atente-se que a exigência não era um ato arbitrário, ainda que o país estivesse vivendo sob um regime ditatorial.

Afastada do Sargaço, Lia passou a trabalhar como merendeira de uma escola da rede estadual de ensino, profissão essa com a qual garantiu uma diminuta aposentadoria. Paralela a essa ocupação – e como meio de complementar, a renda que era tão pouca -, ela exerceu a função de guia turístico, divulgando as belezas de sua terra natal.



Como ocorreu com outros artistas da cultura popular, Lia de Itamaracá também foi vítima de aproveitadores. Num período em que, por um lado, intelectuais – como o grupo reunido no Movimento de Cultura Popular (MCP), surgido no Recife na década de 1960 – tentavam preservar – ao mesmo tempo que buscando politizar tais manifestações, algo que levou Ariano Suassuna a se afastar do MCP e posteriormente conceber o Movimento Armorial propondo uma simbiose das culturas erudita e popular - manifestações populares de possíveis “descaracterizações” – um devaneio desmedido, como se os elementos que as compõe pudessem ser guardados numa redoma e permanecerem imutáveis; a propósito é muito esclarecedora a afirmação que faz o historiador inglês Eric Hobsbawm na introdução do livro A invenção das tradições. Diz-nos ele: “Muitas vezes, ‘tradições’ que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando não são inventadas” in: Eric Hobsbawm e Terence Ranger (orgs.).Trad. Celina Cardim Cavalcante. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012, p. 11 -, por outro, empresários se aproximaram de alguns desses artistas – a esse propósito ver o estudo Arte popular e dominação: o caso de Pernambuco (1961-1977), de autoria de Ivan Maurício, Marcos Cirano e Ricardo de Almeida (Recife: Editora Alternativa, 1978) – a fim de auferirem algum lucro de maneira desonesta. Em 1977 a Tapecar Gravações, do Rio de Janeiro – a gravação ocorreu no Recife, no Estúdio Rozenblit -, lançou o lp Lia de Itamaracá – A rainha da ciranda. Desse trabalho Lia conta que não recebeu sequer um tostão


Lia e as irmãs Baracho no dia do lançamento do catálogo da exposição


Fila para pegar autógrafo







Lia autografando o meu exemplar do catálogo

Chamada ainda em 1984, numa publicação da Fundação Nacional de Artes (Funarte), de “mito pernambucano”, Lia de Itamaracá passou anos esquecida, jogada no limbo, a despeito da sua importância para a cultura nacional. Tal situação deixou-a desolada; e o desamparo fez com que ela descambasse para o alcoolismo. Uma prova inconteste do desprezo com que a importante figura de Lia foi tratada é evidenciado pelo grande hiato que separa o lançamento do lp A rainha da ciranda e o cd Eu sou Lia, que foi lançado no ano 2000 pela Ciranda Records.



No meio da efervescência do Movimento Mangue Beat Lia começou a ser redescoberta. E o encontro com Josiberto da Costa Hees, o Beto Hees, que se tornou seu produtor e a vem acompanhando há quase dezoito anos, revigorou e muito a sua carreira, algo que ela já reconheceu em pelo menos uma entrevista. Apresentando sua arte no Brasil e no exterior, Lia de Itamaracá, hoje, é uma artista mais do que consagrada; e, generosa, divide o palco com duas filhas de Antônio Baracho, Dulce e Severina, entoando cirandas, maracatus e outras loas. Lia é reconhecida como Patrimônio Vivo de Pernambuco por uma lei estadual desde 2005. Como me disse certa vez o Beto Hees, “Mesmo que a duras penas, Lia alcançou o reconhecimento que sempre lhe foi devido”. Lia é uma entidade realmente iluminada, porque, apesar de tudo o que passou – e talvez por isso mesmo -, mantém-se confiante diante da vida: “Até hoje meus caminhos são todos muito abertos e eu me sinto muito feliz”, declarou ela a uma pesquisadora (Maria Alice Amorim. “Eu sou Lia da beira do mar” in Continente Documento. Ano IV – nº 43. Recife: CEPE, 2006, p. 60).

Venho há alguns anos acompanhando a trajetória dessa artista singular – ocupamos o mesmo território geográfico: eu ao sul e ela na porção mais ao norte da ilha – pela qual nutro uma grande admiração. Fui vê-la abrir o show de Manu Chao na Praça do Arsenal, no Bairro do Recife, catorze anos atrás. Mais de uma vez fui prestigiá-la e aos seus convidados no Centro Cultural Estrela de Lia, instalado em Jaguaribe e que por ora encontra-se fechado por falta de recursos para mantê-lo. Estava na sessão de lançamento, no Cinema da Fundação, do curta-metragem Recife frio, de Kleber Mendonça Filho, no qual Lia faz uma participação especial. Prestigiei a exposição Lia – a ilha e a ciranda, que ficou em cartaz de 18 de outubro a 1º de dezembro de 2013 no Centro Cultural Correios no Recife; marquei presença nesse lugar também no dia em que ela promoveu a divulgação do catálogo da referida exposição. E mais recentemente fui aplaudi-la – e aproveitei para cirandar, que eu não sou besta nem nada – durante sua apresentação, também na Praça do Arsenal, dentro do ciclo natalino.




Um grande beijo e parabéns, querida!


Lia de Itamaracá é mais do que uma artista popular; ela é um símbolo grandioso de resistência – ela resistiu até à mercantilização da cultura popular que vem com uma forte pressão para tudo descaracterizar ou então padronizar – por ser mulher, negra e pobre num quadro social, como o é o brasileiro, ainda marcado por tantos desníveis. Lia é uma força poderosa que sobrepôs inúmeros obstáculos. Para mim ela é um monumento, um ícone, uma artista referencial. Podem dizer o que quiserem: para mim Lia de Itamaracá é uma das maiores pop stars que eu conheço.


Neste dia em que celebramos os seus setenta anos de vida, a ciranda com certeza vai dar o tom da festa em Jaguaribe. E quem for até lá vai cantar assim: “Essa alegria quem me deu foi Lia que mora na Ilha de Itamaracá”.


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