Por Clênio Sierra de Alcântara
Saia do meu caminho,
Eu prefiro andar sozinho;
Deixem que eu decida minha vida.
Não preciso que me digam
De que lado nasce o sol
Porque bate lá meu coração.
Comentários
a respeito de John. Belchior.
Ai, ai. Por onde começar? Seria um grande
esforço de memória. Neste dia, em que comemoro meus verdes quarenta anos de
vida, eu queria rever, se fosse possível, cada momento bom e ruim que vivi até
aqui. Eu sei que a vida é “uma roda-gigante em movimento contínuo”, como
escrevi num poema anos atrás; e, por isso, não sou do tipo que a observa
contemplativa e romanticamente sem levar em conta as perdas e os danos.
Ah, ninguém, ninguém mesmo pode sequer
imaginar o sentimento maravilhoso que me toma neste momento em que celebro
minha existência escrevendo esta autocelebração, este quase autopanegírico; neste
instante mágico em que fecho os olhos e me vejo percorrendo as ruas e as
estradas de barro de Abreu e Lima, a cidade na qual nasci, onde eu costumava
brincar de saltar as sombras dos veículos que cruzavam a BR 101 no tempo em
que, morando no bairro de Timbó, eu saía para ir almoçar na casa da minha avó,
da minha adorada avó Maria da Conceição, cuja casa ficava na área central da
cidade.
Foram inúmeras as vezes em que eu fui
sozinho tomar banho nas águas ainda limpas do Rio Timbó, escondido de minha mãe.
Eu fui uma criança solitária; e, na maior parte do tempo, feliz. Mesmo não
tendo pai; mesmo não tendo moradia fixa; mesmo tendo de aprender por conta
própria alguns – desculpem-me, estou chorando agora - ensinamentos da vida;
mesmo tendo de carregar algumas responsabilidades que não eram próprias para a
minha idade; mesmo tendo de ouvir insultos de toda ordem; mesmo tendo, quase
que obrigatoriamente, de ir passar finais de semana na casa dos meus padrinhos;
mesmo tendo de suportar algumas humilhações...
Eu, que a partir de certo momento passei a
me educar constantemente para a prática da liberdade, me vejo por vezes sendo
punido pelo infame ditadorzinho que em mim habita. Não sei, não consigo dominar
meus sentimentos: sou oito ou oitenta – sem meio-termo.
Houve um tempo em que a incompreensão de
algumas vivências fez com que eu como que esconjurasse minha mãe. Quando não
compreendemos e nem queremos aceitar certos fatos, tendemos a mirá-los
unilateralmente; buscamos justificar nossas negativas e nossa ojeriza impondo a
verdade que formulamos e que pensamos ser pétrea e definitiva. Não, não. Sim,
sim. Eu estava errado – desculpem-me, estou chorando novamente -; e só eu sei o
quanto me custou reconhecer isso, o quanto me custou ter agido de maneira tão injusta
com a minha mãe, com a minha mãe, poxa, com a pessoa mais importante da minha
vida. Sim, eu tenho plena consciência de que desapontei minha mãe em muitos
aspectos. Mas isso é a vida como ela é: uma sucessividade de desapontamentos
alinhavados com uma e outra alegria.
Com o transcorrer do tempo fui me despindo
de alguns pudores e temores. E também vi se desmancharem várias das fantasias
que eu concebi nos anos iniciais de minha fase adulta. Já não está mais perto
de mim a mulher linda e doce que durante anos existiu como se fosse o sol da
minha vida. E também já não se encontra ao meu lado a criatura que, a despeito
do tanto amor que dizia sentir pela minha pessoa, nunca conseguiu reunir para
si mesma aquele mínimo quinhão de coragem de que todos e cada um de nós
precisamos para nos mantermos firmemente neste mundo.
As vicissitudes fizeram de mim um homem
cuja sensibilidade convive de maneira nem sempre pacífica com uma dureza e uma
aspereza espantosas. Embora eu tente, não consigo conter, na maioria das vezes,
os impulsos que causam o descontrole das atitudes que tomo, mesmo sabendo que
elas me serão muito daninhas.
Não costumo relevar as pessoas que me dão
rasteira, seja pelo motivo que for. Feliz ou infelizmente, não aprendi e nem
quero aprender a perdoar, porque perdoar é renovar a possibilidade do desgosto.
Há quem me julgue um homem sem nenhum
valor simplesmente porque eu não creio nos deuses que a maioria evoca. Há quem
recrimine a conduta sexual que mantenho. Há quem manifeste contrariedade diante
da minha liberdade de ir e vir. Há quem não suporte o meu desprendimento para
com certas coisas que a sociedade em geral difunde como emblemas de pessoas
realmente vitoriosas. Há quem rejeite meu livre pensar. Há quem omita e
silencie o meu nome. Há quem diga que eu não presto. E daí? Isso não muda
absolutamente nada minha postura diante da vida.
Tenho um irmão que é onze anos mais novo
do que eu. Eu cuidei e ainda cuido dele como se ele fosse meu filho. Olho para
ele e enxergo no seu todo muito de minha própria matéria.
Caminhos por onde andei durante todos esses
anos. Tanta coisa para eu ver ainda. Tantos lugares para eu levar minha
curiosidade. Tanto o que encontrar. Tanto o que conhecer. Tanto por fazer.
Morei a maior parte da minha vida até aqui
em Abreu e Lima. Passei um ano – 1987 – em
Olinda. E faz
treze anos que resido na Ilha de Itamaracá.
Quarenta anos. Guardo até hoje pequenos
objetos do tempo de eu menino. As lembranças são certamente os liames
principais que nos deixam permanentemente atrelados ao passado que temos e que
podemos evocar.
Parafraseando o meu mestre Gilberto Freyre
digo que, não fosse por períodos intensos de absoluta solidão, eu não existiria
como o arremedo de escritor como sou. A escrita me salva diariamente. O meu
confessor recebe, paciente, o que vai no cotidiano desta minha existência
simples e movimentada.
Devo recordar aqui minhas idas à feira
livre de Abreu e Lima, onde fui descobrindo o muito do colorido que a
minha vida tem; onde eu conheci minha cidade aberta para os forasteiros; onde
eu me aproximei e me afastei do meu avô, meu sisudo avô que eu ainda busquei no
grande sítio que ele mantinha na zona rural daquele município; feira livre onde
ganhei o meu primeiro ordenado trabalhando com o segundo e derradeiro marido de
minha avó, negociando carne de porco.
Recordações do tempo de escola. A
satisfação imensa que eu senti quando aprendi a ler com a professora Livonete
de Araújo Alves na Escola Mário Domingues. Tantos mestres, tantos aprendizados.
Amigos de sala de aula: Moacir, Fernando, Glécia, Lindomar, Valdirene, Saul,
Alberto, Roberval, Orlando... Tempo bom, tempo muito bom.
Cheguei aos quarenta anos me sentindo um
homem-menino. Ninguém sabe o a vida lhe reserva. Eu não sei fazer previsões nem
tenho pretensão de descortinar o futuro, mas vivo, tenho vivido fazendo planos,
porque esse é o meu principal combustível. A estrada da minha vida está aberta.
A placa sinaliza que eu comecei a adentrar na Rota 40. Ai, ai. Lá vou eu de
novo.
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