11 de janeiro de 2014

Rota 40

Por Clênio Sierra de Alcântara

Saia do meu caminho,
Eu prefiro andar sozinho;
Deixem que eu decida minha vida.
Não preciso que me digam
De que lado nasce o sol
Porque bate lá meu coração.

                  Comentários a respeito de John. Belchior.



Ai, ai. Por onde começar? Seria um grande esforço de memória. Neste dia, em que comemoro meus verdes quarenta anos de vida, eu queria rever, se fosse possível, cada momento bom e ruim que vivi até aqui. Eu sei que a vida é “uma roda-gigante em movimento contínuo”, como escrevi num poema anos atrás; e, por isso, não sou do tipo que a observa contemplativa e romanticamente sem levar em conta as perdas e os danos.

Ah, ninguém, ninguém mesmo pode sequer imaginar o sentimento maravilhoso que me toma neste momento em que celebro minha existência escrevendo esta autocelebração, este quase autopanegírico; neste instante mágico em que fecho os olhos e me vejo percorrendo as ruas e as estradas de barro de Abreu e Lima, a cidade na qual nasci, onde eu costumava brincar de saltar as sombras dos veículos que cruzavam a BR 101 no tempo em que, morando no bairro de Timbó, eu saía para ir almoçar na casa da minha avó, da minha adorada avó Maria da Conceição, cuja casa ficava na área central da cidade.

Foram inúmeras as vezes em que eu fui sozinho tomar banho nas águas ainda limpas do Rio Timbó, escondido de minha mãe. Eu fui uma criança solitária; e, na maior parte do tempo, feliz. Mesmo não tendo pai; mesmo não tendo moradia fixa; mesmo tendo de aprender por conta própria alguns – desculpem-me, estou chorando agora - ensinamentos da vida; mesmo tendo de carregar algumas responsabilidades que não eram próprias para a minha idade; mesmo tendo de ouvir insultos de toda ordem; mesmo tendo, quase que obrigatoriamente, de ir passar finais de semana na casa dos meus padrinhos; mesmo tendo de suportar algumas humilhações...

Eu, que a partir de certo momento passei a me educar constantemente para a prática da liberdade, me vejo por vezes sendo punido pelo infame ditadorzinho que em mim habita. Não sei, não consigo dominar meus sentimentos: sou oito ou oitenta – sem meio-termo.

Houve um tempo em que a incompreensão de algumas vivências fez com que eu como que esconjurasse minha mãe. Quando não compreendemos e nem queremos aceitar certos fatos, tendemos a mirá-los unilateralmente; buscamos justificar nossas negativas e nossa ojeriza impondo a verdade que formulamos e que pensamos ser pétrea e definitiva. Não, não. Sim, sim. Eu estava errado – desculpem-me, estou chorando novamente -; e só eu sei o quanto me custou reconhecer isso, o quanto me custou ter agido de maneira tão injusta com a minha mãe, com a minha mãe, poxa, com a pessoa mais importante da minha vida. Sim, eu tenho plena consciência de que desapontei minha mãe em muitos aspectos. Mas isso é a vida como ela é: uma sucessividade de desapontamentos alinhavados com uma e outra alegria.

Com o transcorrer do tempo fui me despindo de alguns pudores e temores. E também vi se desmancharem várias das fantasias que eu concebi nos anos iniciais de minha fase adulta. Já não está mais perto de mim a mulher linda e doce que durante anos existiu como se fosse o sol da minha vida. E também já não se encontra ao meu lado a criatura que, a despeito do tanto amor que dizia sentir pela minha pessoa, nunca conseguiu reunir para si mesma aquele mínimo quinhão de coragem de que todos e cada um de nós precisamos para nos mantermos firmemente neste mundo.

As vicissitudes fizeram de mim um homem cuja sensibilidade convive de maneira nem sempre pacífica com uma dureza e uma aspereza espantosas. Embora eu tente, não consigo conter, na maioria das vezes, os impulsos que causam o descontrole das atitudes que tomo, mesmo sabendo que elas me serão muito daninhas.

Não costumo relevar as pessoas que me dão rasteira, seja pelo motivo que for. Feliz ou infelizmente, não aprendi e nem quero aprender a perdoar, porque perdoar é renovar a possibilidade do desgosto.

Há quem me julgue um homem sem nenhum valor simplesmente porque eu não creio nos deuses que a maioria evoca. Há quem recrimine a conduta sexual que mantenho. Há quem manifeste contrariedade diante da minha liberdade de ir e vir. Há quem não suporte o meu desprendimento para com certas coisas que a sociedade em geral difunde como emblemas de pessoas realmente vitoriosas. Há quem rejeite meu livre pensar. Há quem omita e silencie o meu nome. Há quem diga que eu não presto. E daí? Isso não  muda absolutamente nada minha postura diante da vida.

Tenho um irmão que é onze anos mais novo do que eu. Eu cuidei e ainda cuido dele como se ele fosse meu filho. Olho para ele e enxergo no seu todo muito de minha própria matéria.

Caminhos por onde andei durante todos esses anos. Tanta coisa para eu ver ainda. Tantos lugares para eu levar minha curiosidade. Tanto o que encontrar. Tanto o que conhecer. Tanto por fazer.

Morei a maior parte da minha vida até aqui em Abreu e Lima. Passei um ano – 1987 – em Olinda. E faz treze anos que resido na Ilha de Itamaracá.

Quarenta anos. Guardo até hoje pequenos objetos do tempo de eu menino. As lembranças são certamente os liames principais que nos deixam permanentemente atrelados ao passado que temos e que podemos evocar.

Parafraseando o meu mestre Gilberto Freyre digo que, não fosse por períodos intensos de absoluta solidão, eu não existiria como o arremedo de escritor como sou. A escrita me salva diariamente. O meu confessor recebe, paciente, o que vai no cotidiano desta minha existência simples e movimentada.

Devo recordar aqui minhas idas à feira livre de Abreu e Lima, onde fui descobrindo o muito do colorido que  a minha vida tem; onde eu conheci minha cidade aberta para os forasteiros; onde eu me aproximei e me afastei do meu avô, meu sisudo avô que eu ainda busquei no grande sítio que ele mantinha na zona rural daquele município; feira livre onde ganhei o meu primeiro ordenado trabalhando com o segundo e derradeiro marido de minha avó, negociando carne de porco.

Recordações do tempo de escola. A satisfação imensa que eu senti quando aprendi a ler com a professora Livonete de Araújo Alves na Escola Mário Domingues. Tantos mestres, tantos aprendizados. Amigos de sala de aula: Moacir, Fernando, Glécia, Lindomar, Valdirene, Saul, Alberto, Roberval, Orlando... Tempo bom, tempo muito bom.

Cheguei aos quarenta anos me sentindo um homem-menino. Ninguém sabe o a vida lhe reserva. Eu não sei fazer previsões nem tenho pretensão de descortinar o futuro, mas vivo, tenho vivido fazendo planos, porque esse é o meu principal combustível. A estrada da minha vida está aberta. A placa sinaliza que eu comecei a adentrar na Rota 40. Ai, ai. Lá vou eu de novo.





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