26 de fevereiro de 2014

As vibes do Som na Rural agitam a Manguetown

 Por Clênio Sierra de Alcântara


Fotos: Juliano da Hora       O mestre de cerimônias Roger de Renor         
  

Ainda hoje a voz perturbadoramente marcante e saudosa de Chico Science ecoa pela Manguetown Recife perguntando: “Cadê Roger? Cadê Roger? Cadê Roger?”. Bom, eu não sei onde ele se encontra neste exato momento; mas na noite da última quinta-feira Roger de Renor estava com sua incrementada Rural na Rua da Aurora, às margens do Rio Capibaribe, bem defronte à escultura Carne da minha perna, obra dos artistas Augusto Férrer, Jorge Alberto Barbosa, Lúcia Cardoso e Eddy Pólo, mais conhecida como Caranguejo gigante da Aurora. Mas o que é que o danado do Roger estava fazendo ali? Bem, ele estava fazendo o que desde sempre fez: instigando os “caranguejos com cérebro” a exaltarem os valores autênticos de nossa cultura sem deixar de olharem para os problemas aparentemente insolúveis da urbe recifense




Roger de Renor conclamando o povo

No Recife existem muitos comunicadores e produtores culturais; e existe Roger de Renor, um cara arretado, um sujeito cujas antenas estão sempre captando o que se passa no cenário cultural da capital pernambucana e promovendo, como ele próprio diz, “ocupação de espaço”. Como se fosse movido por um milhão de pilhas alcalinas, Roger não para nunca. Seu projeto da vez é o chamado Som na Rural, uma proposta de difusão de cultura e de discussão de problemas sociais que é itinerante e que consegue reunir entorno de si uma massa igualmente crítica que, ele acredita, pode expandir o que é discutido nos encontros.



O cenário da ocupação tomando corpo



Nilton Pereira observando o movimento


Onde estaciona a Rural de visual espalhafatoso chama atenção. E quando Roger empunha o microfone e solta sua voz rouca conclamando a multidão, a coisa toma ares de festa. Levando não apenas música para os locais onde marca presença, mas também discussões a respeito de cidadania e de políticas públicas para a cidade e o estado que queremos, compreendendo que é a reverberação, a propagação de tais questionamentos que podem provocar e/ou então promover mudanças positivas, o Som na Rural acaba funcionando como uma espécie de tribuna popular na qual a verdadeira face da cidade é mostrada.













Fosse somente - somente? - pelo apoio que ele deu ao Mangue Beat, o último grande e importante movimento cultural deste país, Roger de Renor já mereceria a admiração e reverência que sinto por ele. Mas não é só isso, até porque ele continua oferecendo apoio aos artistas locais divulgando seus trabalhos, dando voz, celebrando. O que, talvez, eu mais admire no Roger é sua postura de sustentar um discurso de que quem diz: “Mesmo que os senhores, administradores da coisa pública, não façam, nós estamos fazendo a nossa parte”. Roger questiona políticas culturais e fustiga os donos do poder que querem posar de benfeitores quando, na realidade, pouco ou nada fazem pela cultura de um modo geral e muito menos pela chamada cultura popular, e que ainda recorrem àquela retórica própria dos canalhas, típica de quem toma o bem público como patrimônio particular e que, por isso, age como se o que realizasse para o povo não fosse uma obrigação nem um dever, mas uma caridade. De modo que, ao questionar esse estado de coisas, Roger de Renor e o seu Som na Rural, na verdade, estão promovendo mais que uma atividade cultural, estão propondo uma permanente ação de cidadania, porque pensar e fazer a cidade que desejamos ter exige de nós um exercício contínuo de compreensão e conhecimento de suas deficiências e potencialidades, além de uma discussão que indique caminhos de mudanças e de busca de soluções para os problemas do espaço urbano como um todo.



                           









Para além dos reclamos oficiais que enchem outdoors e propagandas televisivas com uma face limpa do Recife, todos nós que somos cidadãos esclarecidos e formadores de opinião sabemos que muitos pseudocidadãos, verdade seja dita, não conseguem fugir do cheiro sujo da lama da Manguetown, e permanecem catando comida nas lixeiras, como o bicho do poema de Manuel Bandeira, dormindo sob marquises e erguendo barracos sobre palafitas, repetindo a sina miserável que não consegue escapar daquele “ciclo do caranguejo” que Josué de Castro descreveu em seu Documentário do Nordeste.




O caranguejão saudando o povo






Por mais que a ordem do discurso das autoridades insista em dizer que o Recife vai bem, obrigado, as calçadas esburacadas, a degradação do patrimônio histórico, o lixo onipresente, o desprezo para com os subúrbios, a ocupação desordenada do espaço público, enfim, denunciam que a ordem que impera é nefasta e que é preciso que nos mobilizemos contra esse domínio do descaso – e do mal. Tendo isso em vista, práticas afirmativas estão claras no que o Roger de Renor propõe, estão neste espaço em que escrevo, estão num fanzine como o De cara com a poesia, que o poeta Malungo põe para circular não apenas em Pernambuco, mas também em outros estados desde maio de 2002, estão, por fim, em conceitos e iniciativas de caráter individual e coletivo que engrossam o caldo de uma sopa de muita sustância preparada para alimentar todos aqueles que têm fome de tudo e, principalmente, de cidadania.




Tom Jaime passando o som



Iza e Valentina na maior curtição



Divulgar é preciso, não é?






Na noite da última quinta-feira um trecho da Rua da Aurora era só vibração por conta da presença da Rural turbinada de Roger.O poeta Malungo, que na ocasião divulgou o seu livro Digitais, recitou, com sua conhecida verve, o poema “Telescópio”:


A cidade bonita e cruel
com seus monstros foliônicos
de ferro e cimento

luzes e misérias
por trás do cartão-postal

em cada esquina surda
leões mortos rugindo

artistas invisíveis 
sacaneados pelo sistema

é preciso carregar 
(o quanto antes)

um sol de poemas 
por essas ruas escuras

e enxergar o Recife
com olhos de diamante.
  



O poeta Malungo e Pitanga segurando o livro Digitais





Eu e Roger, Roger e eu


O jornalista e fotógrafo Juliano da Hora



Malungo fazendo sua perfomance poética









E logo depois se apresentou a grande atração dessa edição do evento: Lia de Itamaracá, que, antes de pôr o povo para dançar, anunciou, junto com Roger e Beto Hees, o pré-lançamento da campanha “Nós queremos cirandar”, que pretende arrecadar fundos para reerguer o Centro Cultural Estrela de Lia, um espaço que, como nos seus melhores dias, oferecerá cultura alinhavada com ações de cidadania no bairro de Jaguaribe, na Ilha de Itamaracá.




A hora da estrela Lia de Itamaracá





Roger, Lia e Beto Hees






Estar ao lado de Lia é para mim um grande privilégio



Canta Lia, porque nós queremos cirandar




Vem dançar ciranda meu bem

Pense numa gente animada

A festa foi massa




Eu, Malungo e o Rio Capibaribe



Eu e Juliano da Hora num clique do Malungo


A rua, o mangue, o rio, a Rural, o protesto, a insatisfação, o incômodo, a determinação, o empenho, a crença na transformação, o passo seguinte... O Recife clama por socorro e é preciso que soltemos a voz, o grito, a coragem, a palavra. Lutemos e recusemos a todo custo que os mandantes dos absurdos e da incompetência nos façam de títeres dessa política mesquinha e enganadora, porque o que eles querem é nos deixar à margem de tudo.




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