Fotos: Juliano da Hora O mestre de cerimônias Roger de Renor |
Ainda hoje a voz perturbadoramente marcante e saudosa de Chico Science ecoa pela Manguetown Recife perguntando: “Cadê Roger? Cadê Roger? Cadê Roger?”. Bom, eu não sei onde ele se encontra neste exato momento; mas na noite da última quinta-feira Roger de Renor estava com sua incrementada Rural na Rua da Aurora, às margens do Rio Capibaribe, bem defronte à escultura Carne da minha perna, obra dos artistas Augusto Férrer, Jorge Alberto Barbosa, Lúcia Cardoso e Eddy Pólo, mais conhecida como Caranguejo gigante da Aurora. Mas o que é que o danado do Roger estava fazendo ali? Bem, ele estava fazendo o que desde sempre fez: instigando os “caranguejos com cérebro” a exaltarem os valores autênticos de nossa cultura sem deixar de olharem para os problemas aparentemente insolúveis da urbe recifense
Roger de Renor conclamando o povo |
No Recife existem muitos comunicadores e
produtores culturais; e existe Roger de Renor, um cara arretado, um sujeito
cujas antenas estão sempre captando o que se passa no cenário cultural da
capital pernambucana e promovendo, como ele próprio diz, “ocupação de espaço”.
Como se fosse movido por um milhão de pilhas alcalinas, Roger não para nunca.
Seu projeto da vez é o chamado Som
na Rural, uma proposta de difusão de cultura e de discussão de problemas
sociais que é itinerante e que consegue reunir entorno de si uma massa
igualmente crítica que, ele acredita, pode expandir o que é discutido nos
encontros.
O cenário da ocupação tomando corpo |
Nilton Pereira observando o movimento |
Onde estaciona a Rural de visual espalhafatoso chama atenção. E quando Roger empunha o microfone e solta sua voz rouca conclamando a multidão, a coisa toma ares de festa. Levando não apenas música para os locais onde marca presença, mas também discussões a respeito de cidadania e de políticas públicas para a cidade e o estado que queremos, compreendendo que é a reverberação, a propagação de tais questionamentos que podem provocar e/ou então promover mudanças positivas, o Som na Rural acaba funcionando como uma espécie de tribuna popular na qual a verdadeira face da cidade é mostrada.
Fosse somente - somente?
- pelo apoio que ele deu ao Mangue
Beat, o último grande e importante movimento cultural deste país, Roger de
Renor já mereceria a admiração e reverência que sinto por ele. Mas não é só
isso, até porque ele continua oferecendo apoio aos artistas locais divulgando
seus trabalhos, dando voz, celebrando. O que, talvez, eu mais admire no Roger é
sua postura de sustentar um discurso de que quem diz: “Mesmo que os senhores,
administradores da coisa pública, não façam, nós estamos fazendo a nossa
parte”. Roger questiona políticas culturais e fustiga os donos do poder que
querem posar de benfeitores quando, na realidade, pouco ou nada fazem pela cultura
de um modo geral e muito menos pela chamada cultura popular, e que ainda
recorrem àquela retórica própria dos canalhas, típica de quem toma o bem público como patrimônio particular e que, por isso, age como se o que realizasse para o povo não fosse uma obrigação nem um dever, mas uma caridade. De modo que, ao
questionar esse estado de coisas, Roger de Renor e o seu Som na Rural, na verdade, estão
promovendo mais que uma atividade cultural, estão propondo uma permanente ação
de cidadania, porque pensar e fazer a cidade que desejamos ter exige de nós um
exercício contínuo de compreensão e conhecimento de suas deficiências e
potencialidades, além de uma discussão que indique caminhos de mudanças e de busca de soluções para os problemas do espaço urbano como um todo.
Para além dos reclamos oficiais que enchem outdoors e propagandas televisivas com uma face limpa do Recife, todos nós que somos cidadãos esclarecidos e
formadores de opinião sabemos que muitos pseudocidadãos, verdade seja dita, não conseguem fugir do
cheiro sujo da lama da Manguetown, e permanecem catando comida nas lixeiras,
como o bicho do poema de Manuel Bandeira, dormindo sob marquises e erguendo
barracos sobre palafitas, repetindo a sina miserável que não consegue escapar
daquele “ciclo do caranguejo” que Josué de Castro descreveu em
seu Documentário do Nordeste.
O caranguejão saudando o povo |
Por mais que a ordem do
discurso das autoridades insista em dizer que o Recife vai bem, obrigado, as
calçadas esburacadas, a degradação do patrimônio histórico, o lixo onipresente, o desprezo para com os subúrbios, a ocupação desordenada do espaço público, enfim, denunciam que a ordem que impera é nefasta e que é preciso que nos mobilizemos contra esse domínio do descaso – e do
mal. Tendo isso em vista, práticas afirmativas estão claras no que o Roger de
Renor propõe, estão neste espaço em que escrevo, estão num fanzine como o De cara com a poesia, que o poeta Malungo põe para circular
não apenas em Pernambuco, mas também em outros estados desde maio de 2002,
estão, por fim, em conceitos e iniciativas de caráter individual e coletivo que
engrossam o caldo de uma sopa de muita sustância preparada para alimentar todos aqueles
que têm fome de tudo e, principalmente, de cidadania.
Tom Jaime passando o som |
Iza e Valentina na maior curtição |
Divulgar é preciso, não é? |
Na noite da última
quinta-feira um trecho da Rua da Aurora era só vibração por conta da presença da Rural turbinada de
Roger.O poeta Malungo, que na ocasião divulgou o seu livro Digitais, recitou, com sua
conhecida verve, o poema “Telescópio”:
A cidade bonita e cruel
com seus monstros foliônicos
de ferro e cimento
luzes e misérias
por trás do cartão-postal
por trás do cartão-postal
em cada esquina surda
leões mortos rugindo
leões mortos rugindo
artistas invisíveis
sacaneados pelo sistema
sacaneados pelo sistema
é preciso carregar
(o quanto antes)
(o quanto antes)
um sol de poemas
por essas ruas escuras
por essas ruas escuras
e enxergar o Recife
com olhos de diamante.
com olhos de diamante.
O poeta Malungo e Pitanga segurando o livro Digitais |
Eu e Roger, Roger e eu |
O jornalista e fotógrafo Juliano da Hora |
Malungo fazendo sua perfomance poética |
E logo depois se apresentou a grande atração dessa edição do evento: Lia de Itamaracá, que, antes de pôr o
povo para dançar, anunciou, junto com Roger e Beto Hees, o pré-lançamento da
campanha “Nós queremos cirandar”, que pretende arrecadar fundos para reerguer o
Centro Cultural Estrela de Lia, um espaço que, como nos seus melhores dias,
oferecerá cultura alinhavada com ações de cidadania no bairro de Jaguaribe, na
Ilha de Itamaracá.
A hora da estrela Lia de Itamaracá |
Roger, Lia e Beto Hees |
Estar ao lado de Lia é para mim um grande privilégio |
Canta Lia, porque nós queremos cirandar |
Vem dançar ciranda meu bem |
Pense numa gente animada |
A festa foi massa |
Eu, Malungo e o Rio Capibaribe |
Eu e Juliano da Hora num clique do Malungo |
A rua, o mangue, o rio, a Rural, o protesto, a insatisfação, o incômodo, a determinação, o empenho, a crença na transformação, o passo seguinte... O Recife clama por socorro e é preciso que soltemos a voz, o grito, a coragem, a palavra. Lutemos e recusemos a todo custo que os mandantes dos absurdos e da incompetência nos façam de títeres dessa política mesquinha e enganadora, porque o que eles querem é nos deixar à margem de tudo.
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