6 de fevereiro de 2014

Lia é uma estrela de primeira grandeza

Por Clênio Sierra de Alcântara


Minha ciranda não é minha só
É de todos nós
É de todos nós [...]
Pra se dançar ciranda
Juntamos mão com mão
Formando uma roda
Cantando uma canção.
                                            Minha ciranda. Capiba




Todas as fotos do que restou da estrutura do centro cultural são de minha autoria


Comumente tratada como mero componente do universo folclórico – e não apenas pelo público de um modo geral, como também pelas próprias entidades governamentais -, a rica e fascinante cultura popular brasileira não raro amarga a dura realidade da indiferença e do descaso. Seus fazedores e brincantes muitas vezes atravessam sérias dificuldades socioeconômicas para conseguir manter com dignidade seus brinquedos, suas tradições e suas artes, que eles têm como parte essencial de suas vidas. Cada lantejoula aplicada nas vestes de um caboclo do maracatu rural, cada vestido confeccionado para uma dançarina de coco, cada adereço que enfeita a cabeça de uma Diana do pastoril carrega consigo uma força e um sentido de resistência que extrapolam qualquer explicação que um estudioso dessas manifestações culturais possa nos dar.









Relegada sempre ao segundo plano nos eventos patrocinados pelo Governo e praticamente eliminada daqueles organizados pela iniciativa privada, à cultura popular são destinados os menores cachês, os horários menos atrativos, os arremedos de camarins e as agendas de apresentação diminutas. É nesse quadro vergonhoso e triste que vigora uma escala de valores que estabelece que uma Claudia Leitte, por exemplo, que não representa absolutamente nada para o que se compreende como cultura de raiz e como cultura autêntica que diga muito do que verdadeiramente somos, receba um cachê de mais de R$ 400.000,00 de uma Prefeitura da Região Metropolitana do Recife, e a uma Selma do Coco destine-se míseros R$ 4.000,00 a serem pagos sabe-se lá quando. É por essas e outras que muitos representantes dessas manifestações culturais têm assistido à morte gradual de seus folguedos por esse país afora.


Nesta barraca funcionava o bar








Nesta área ficava o palco


A área demarcada pelo grande círculo e o espaço do palco, ao fundo, eram cobertos por uma grande palhoça


Vista geral: da esquerda para a direita: palco, espaço de dança, banheiros ao fundo e o bar


Não se pense que um maracatu pode ser salvo com a doação de um pacote de miçangas. Não se cogite a ideia de que o cachê de uma única apresentação proporcionará a sobrevivência por um ano de um grupo de caboclinhos. Não se imagine que uma quadrilha junina pode ser mantida com o repasse de dez metros de tecido. Não se fantasie que o auxílio de R$ 200,00 para pagar o aluguel de uma aparelhagem de som de uma noite para uma cantora de ciranda porá a sua vida nos eixos. Não se conceba, enfim, que é à custa de esmolas que se promove a manutenção das manifestações da cultura popular. É sob esta perspectiva que considero extremamente pertinente e exemplar o entendimento que tem Beto Hees, produtor de Lia de Itamaracá, a respeito da política cultural que há décadas vigora em Pernambuco e que, acredito, não deva ser muito diferente da que se verifica nas demais unidades da federação brasileira; diz-nos ele que "O Governo do Estado e a Prefeitura Municipal do Recife propagandeiam a imagem de um Pernambuco multicultural e divulgam, por exemplo, que a cultura popular ocupa 95% da grade dos artistas que se apresentam durante o Carnaval. Agora, será que os artistas locais ficam com 95% da verba destinada aos cachês?".








Em setembro de 2005 a Ilha de Itamaracá, cidade do litoral norte de Pernambuco, começou a vivenciar uma experiência que se revelaria marcante sob vários aspectos, sendo o principal deles o fato de que era uma iniciativa pessoal de uma importante representante da cultura popular pernambucana, em particular, e brasileira, em geral, que contou apenas com a ajuda de alguns amigos para concretizar o seu intento. Naquele mês e naquele ano tiveram início as atividades do Centro Cultural Estrela de Lia (CCEL), da cirandeira Maria Madalena, mais conhecida como Lia de Itamaracá.

Localizado no bairro de Jaguaribe, onde até hoje reside a cirandeira, que nasceu e criou-se na ilha, o CCEL era uma chama acesa no breu da indiferença e do descaso das autoridades públicas para com a preservação de manifestações culturais genuinamente populares como a ciranda. Quem teve o prazer e o privilégio de frequentar aquele espaço conheceu um lugar que primava por bem recepcionar os visitantes oferecendo uma programação diversificada na qual Lia recebia convidados para, como se diz, animar a festa.









No primeiro plano o bar; ao fundo, a Igreja do Senhor Bom Jesus dos Passos







Além de ter ficado marcado como um importante espaço de difusão cultural, o CCEL serviu também como um ponto de cidadania oferecendo cursos de gastronomia, de tranceiras, de cerâmica e de percussão, a fim de capacitar a população para o mercado de trabalho e/ou para promover iniciativas de geração de renda; além disso, palestras informativas, bastante concorridas, levavam esclarecimentos sobre os mais variados assuntos para todos que as buscavam.

Como forma de autossustentar-se o CCEL abrigava um bar que durante certo tempo se transformou num dos points mais movimentados da orla de Jaguaribe. Em determinado momento o público foi rareando; e sem poder investir mais no empreendimento, a cirandeira Lia, com muito pesar, teve de encerrar as atividades do CCEL em novembro de 2009, deixando os frequentadores mais fiéis igualmente desolados. 














Daqui a alguns dias será lançada uma grande campanha intitulada "Nós queremos cirandar" visando à arrecadação de fundos para a reconstrução do CCEL, cuja estrutura principal desmoronou semanas atrás. Desde já eu me apresento como alguém que dará total apoio a essa iniciativa tão nobre e relevante. Anteontem teve lugar no Centro Olorum Jetiun Axé, de Pai Milton de Xangô, no bairro de Guadalupe, em Olinda, a primeira reunião do grupo que administrará a campanha. Compareceram, além do produtor Beto Hees, de mim e da própria cirandeira Lia, Juliano da Hora (jornalista e fotógrafo), José Milton ( o Pai Milton de Xangô), Roger de Renor (comunicador), Demétrio Albuquerque (arquiteto e escultor), Luciana Torreão (jornalista), Lúcia dos Prazeres (pedagoga), Sônia Costa (relações públicas e produtora cultural), João Felipe (logística) e Nilton Pereira (diretor de audiovisual). Nesse primeiro encontro discutimos em linhas gerais a natureza do projeto, definimos o papel que caberá a cada um ao longo do processo e, acima de tudo, firmamos um compromisso com a causa, irmanados que ficamos na compreensão de que, contando com o apoio da sociedade, formaremos uma grande e entusiasmada ciranda e alcançaremos nosso objetivo.





















Lia acompanhou atenta toda a reunião



Juntando mão com mão formaremos uma grande ciranda










Foto: Beto Hees



Foto: Beto Hees



Personalidade das mais queridas do meio artístico, Lia de Itamaracá continua cirandando pelo mundo, levando o nome de Pernambuco e do Brasil pelas ruas, praças e palcos da vida, exaltando os valores mais legítimos do nosso povo, tendo plena consciência de que, sendo um Patrimônio Vivo da nossa cultura, ela ainda tem muito o que nos mostrar. Mais do que uma diva, mais do que uma sereia negra de poderoso canto, mais do que uma mãezona que alimentou centenas de crianças nas escolas nas quais trabalhou como merendeira, mais do que uma admirável artista, Lia é uma entidade que, do alto dos seus setenta anos de idade recentemente completados, paira soberana sobre nós, nos abençoando com toda a sua energia, brilho, fé e grandeza.




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