31 de março de 2014

Cinquenta anos este dia: da infame Ditadura militar à desfaçatez da Canalhocracia

Por Clênio Sierra de Alcântara


Há cinquenta anos uma nuvem espessa e negra estacionou sobre os céus do Brasil e ali permaneceu, pairando soberana, durante vinte e um longos anos. “Golpe militar”, “Anos de chumbo”, “Quartelada”... São vários os títulos para designar o período de Ditadura militar – uns tantos ainda insistem em designar o evento como Revolução militar – inaugurado em 31 de março de 1964 e findado em 15 de março de 1985. Cinquenta anos se passaram e parece que foi ontem, dada a força com que “valores autoritários” relutam em se manter entranhados nas esferas nas quais transitam os donos do poder de hoje.

Eu era uma criança; não vivi conscientemente as agruras da ditadura que os militares implantaram neste país. Tudo o que me lembro como vivência desse tempo é das vinhetas da censura veiculadas antes de alguns programas de tevê; da “Semana do Presidente”, inserções bajulatórias que Sílvio Santos exibia no Sistema Brasileiro de Televisão (SBT); do plástico negro que envolvia as revistas pornográficas; e dos livros do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), de aulas do qual minha avó Maria da Conceição frequentou e delas saiu sem sequer “desenhar” o próprio nome. Meu conhecimento desse tempo adveio de minha formação acadêmica; e de uma permanente curiosidade – todo historiador é curioso – sobre essa época da qual há muito que ser revelado.

Implantada no país sob a justificativa de que, se não fosse assim, o Brasil seria mais uma nação a ser tomada pelo comunismo ateu, a Ditadura militar impôs aos brasileiros toda a sorte de abusos e humilhações – sobretudo contra aqueles cidadãos que se rebelavam ante esse estado de coisas. Os militares se apresentavam como únicos protetores e salvadores da pátria e dos valores morais representados pela família e pela Igreja Católica. De modo que, em defesa de tais valores, tudo o que se fizesse contra os “inimigos comunistas” era mais do que uma luta legítima – era uma obrigação, era um dever.

Espécie de nova Cruzada – agora cristãos contra ateus endemoninhados -, a Ditadura militar e os seus próceres estabeleceram neste país um regime de exceção no qual, para se alcançarem os fins, não importavam os meios. A máquina de morte – para amenizar eles preferiam dizer “de ordem” – construída pela engenharia militar se valia de qualquer pretexto para eliminar os ditos subversivos. Nos porões da ditadura muitos foram os que penaram no aparato montado para torturar – choques elétricos, espancamentos, “telefones”, introdução de objetos no ânus... -, matar, forjar laudos e até fazer desaparecer corpos.

Trincheiras sendo constantemente atacadas. Interesses de civis colaboracionistas do golpe e de militares linha-dura sendo contestados; direita e esquerda lançando petardos uns contra os outros como que medindo a capacidade de seus furores sanguinários.

O imperativo da “segurança nacional” estendia seus tentáculos medonhos sobre todas as instâncias da vida social, privando os cidadãos de direitos e garantias individuais. E apoiados pelos norte-americanos, que não queriam ver mais um satélite russo gravitando sobre as terras deste lado de cá do mundo, os militares brasileiros maquinavam a seu modo o “fortalecimento” do país. O período de crescimento econômico denominado de “Milagre brasileiro” foi utilizado como uma legitimação – como uma compensação ficaria melhor dito – para uma vida sob um regime ditatorial. E nada se falava sobre negociatas, armações, favorecimentos a grupos econômicos e corrupção; ou seja, nada se dizia sobre alguns dos males que os honrados e valentes militares pretenderam eliminar.

Pelo lado dos subversivos processou-se, em dado momento, uma espécie de salve-se quem puder. Sequestros de embaixadores, atentados a bomba, eliminação de possíveis alcaguetes... Nada fazia minar o poder maior. E, nesse embate, muitos inocentes, que não estavam envolvidos com a luta armada, perderam suas vidas.

Imprensa censurada. Aposentadorias compulsórias. Demissões sumárias. Exílios forçados. Interferências nas manifestações culturais. Distorção da realidade. Perseguições desenfreadas. Declarações absurdas. Perda de rumo...  Pouco a pouco um vento começou a soprar forte, dispersando a nuvem negra que pairava sobre a perturbada e desorientada nação brasileira. E a Ditadura militar chegou ao fim. O que não terminou foi o calvário do Brasil.

Coube à nação brasileira o infortúnio de ter como primeiro presidente de sua era de redemocratização um político da estirpe de José Sarney, um símbolo do atraso, um representante do que pior existe na vida pública brasileira – está aí o Maranhão como prova incontestável disso. E na esteira desse acontecimento trágico vieram planos econômicos desastrados, que fizeram sumir os alimentos das prateleiras dos supermercados, e uma Constituição revanchista que prometeu o mundo e o fundo sem ter o país fundos para arcar com tantas benfeitorias. E como se os males já não bastassem, ainda tivemos de aturar um Fernando Collor de Melo no Palácio do Planalto fazendo do país uma extensão de seu quintal alagoano. A decepção para com figuras como Sarney e Collor fizeram muitos sentir saudades dos militares; enquanto que outros se perguntavam se os brasileiros tinham desaprendido a viver sob um regime democrático.

A implantação do Plano Real, ainda no governo Itamar Franco, e sua consolidação durante os oitos anos da administração do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, puseram o Brasil no mapa dos países emergentes que estavam conseguindo não apenas pôr suas economias em eixos seguros, mas também se livrando ao mesmo tempo de engrenagens gastas e do ranço autoritário daquelas décadas perdidas. Contudo, a corrupção continuou grassando a olhos vistos nestas plagas; e os escândalos envolvendo políticos e seus comparsas, repartindo os butins dos recursos públicos, continuaram na ordem do dia, como nos querendo dizer que o país permaneceria por muito tempo ainda com os pés fincados no passado. Mas aí veio a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, um ex-metalúrgico ícone do Partido dos Trabalhadores, e o Brasil, num primeiro momento, contando com o bom cenário da economia mundial, viu-se imerso num clima de que, dali para frente, tudo iria ser diferente: a nação brasileira enfim chegara à sua maturidade democrática elegendo um ex-operário; e as promessas de mudança de status do cidadão esquecido pelas políticas públicas iriam ser finalmente cumpridas com o estabelecimento de um modo de governar que não admitiria malversação dos recursos do erário. Bom, se isso era um ponto-chave do script, ele foi solenemente ignorado.

A distância do evento Ditadura militar proporcionada pelo transcurso do tempo se não comprovou a tese – eles insistem em negar o fato - de que os “outros”, que não os militares, queriam mesmo era promover a “cubanização” do Brasil, revelou, por outro lado, que os “outros” não estavam lutando contra os militares em favor da nação brasileira, mas em defesa de seus próprios interesses. O modelo de gerenciamento implantado pelo Partido dos Trabalhadores neste país culminou no escândalo chamado de “mensalão”, que levou para trás das grades alguns dos seus luminares; e mostrou aos brasileiros dos mais diversos credos políticos e ideológicos que tal partido, na verdade, estava contaminado até a medula - e talvez desde a sua origem – por todas as doenças que ele se propunha a erradicar. A apropriação da máquina pública; as constantes tentativas de intimidação à imprensa livre e independente; o escárnio com que valores e instituições democráticos – vejam como o Supremo Tribunal Federal, nossa instância maior da Justiça, está sendo atacado – são tratados por essa gente; os conchavos políticos com antigos “inimigos número 1”... A impressão que o Partido dos Trabalhadores e os seus apaniguados têm passado para nós outros é de que lutamos em vão para nos vermos livres dos grilhões do regime militar, porque os valores da democracia têm sido dia após dia vilipendiados à custa de um modelo de governança que atende pelo nome de canalhocracia: um modo de governar que não consegue sequer diminuir os altos índices de criminalidade que põem algumas capitais do país entre as mais violentas do mundo; que compactua com malfeitores; que não melhora  a qualidade da educação que é oferecida nas escolas públicas e muito menos a do serviço público de saúde; que não promove a dinamização da infraestrutura; e que descaradamente apoia regimes ditatoriais, como o de Cuba, investindo dinheiro do contribuinte na ilha de Fidel e contratando médicos escravizados para o Programa Mais Médicos, uma das ações mais absurdas e vergonhosas levadas a cabo por esses ditos “refundadores” do Brasil.

Datas redondas como esta que marca os cinquenta da Ditadura militar neste país, se carregam em seu bojo algo enfadonho por conta da quase onipresença no noticiário de discussões com elas relacionadas, por outro lado fazem com que temas tão caros à história do país e à história de cada um de nós venham à tona, propondo que releituras e novos entendimentos de fatos passem a ser conhecidos principalmente por aqueles que os ignoravam.

Não existe mestra mais eficiente do que a História. E ela está a todo tempo nos dizendo que não devemos, em momento algum, permitir que sejamos subjugados por quem quer que seja.


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