Por Clênio Sierra de
Alcântara
Há
cinquenta anos uma nuvem espessa e negra estacionou sobre os céus do Brasil e
ali permaneceu, pairando soberana, durante vinte e um longos anos. “Golpe militar”,
“Anos de chumbo”, “Quartelada”... São vários os títulos para designar o período
de Ditadura militar – uns tantos ainda insistem em designar o evento como
Revolução militar – inaugurado em 31 de março de 1964 e findado em 15 de março de 1985.
Cinquenta anos se passaram e parece que foi ontem, dada a força com que
“valores autoritários” relutam em se manter entranhados nas esferas nas quais
transitam os donos do poder de hoje.
Eu
era uma criança; não vivi conscientemente as agruras da ditadura que os
militares implantaram neste país. Tudo o que me lembro como vivência desse
tempo é das vinhetas da censura veiculadas antes de alguns programas de tevê;
da “Semana do Presidente”, inserções bajulatórias que Sílvio Santos exibia no
Sistema Brasileiro de Televisão (SBT); do plástico negro que envolvia as
revistas pornográficas; e dos livros do Movimento Brasileiro de Alfabetização
(Mobral), de aulas do qual minha avó Maria da Conceição frequentou e delas saiu
sem sequer “desenhar” o próprio nome. Meu conhecimento desse tempo adveio de
minha formação acadêmica; e de uma permanente curiosidade – todo historiador é
curioso – sobre essa época da qual há muito que ser revelado.
Implantada
no país sob a justificativa de que, se não fosse assim, o Brasil seria mais uma
nação a ser tomada pelo comunismo ateu, a Ditadura militar impôs aos
brasileiros toda a sorte de abusos e humilhações – sobretudo contra aqueles
cidadãos que se rebelavam ante esse estado de coisas. Os militares se
apresentavam como únicos protetores e salvadores da pátria e dos valores morais
representados pela família e pela Igreja Católica. De modo que, em defesa de
tais valores, tudo o que se fizesse contra os “inimigos comunistas” era mais do
que uma luta legítima – era uma obrigação, era um dever.
Espécie
de nova Cruzada – agora cristãos contra ateus endemoninhados -, a Ditadura
militar e os seus próceres estabeleceram neste país um regime de exceção no
qual, para se alcançarem os fins, não importavam os meios. A máquina de morte –
para amenizar eles preferiam dizer “de ordem” – construída pela engenharia
militar se valia de qualquer pretexto para eliminar os ditos subversivos. Nos
porões da ditadura muitos foram os que penaram no aparato montado para torturar
– choques elétricos, espancamentos, “telefones”, introdução de objetos no
ânus... -, matar, forjar laudos e até fazer desaparecer corpos.
Trincheiras
sendo constantemente atacadas. Interesses de civis colaboracionistas do golpe e
de militares linha-dura sendo contestados; direita e esquerda lançando petardos
uns contra os outros como que medindo a capacidade de seus furores
sanguinários.
O
imperativo da “segurança nacional” estendia seus tentáculos medonhos sobre
todas as instâncias da vida social, privando os cidadãos de direitos e
garantias individuais. E apoiados pelos norte-americanos, que não queriam ver
mais um satélite russo gravitando sobre as terras deste lado de cá do mundo, os
militares brasileiros maquinavam a seu modo o “fortalecimento” do país. O
período de crescimento econômico denominado de “Milagre brasileiro” foi
utilizado como uma legitimação – como uma compensação ficaria melhor dito –
para uma vida sob um regime ditatorial. E nada se falava sobre negociatas,
armações, favorecimentos a grupos econômicos e corrupção; ou seja, nada se
dizia sobre alguns dos males que os honrados e valentes militares pretenderam
eliminar.
Pelo
lado dos subversivos processou-se, em dado momento, uma espécie de salve-se
quem puder. Sequestros de embaixadores, atentados a bomba, eliminação de
possíveis alcaguetes... Nada fazia minar o poder maior. E, nesse embate, muitos
inocentes, que não estavam envolvidos com a luta armada, perderam suas vidas.
Imprensa
censurada. Aposentadorias compulsórias. Demissões sumárias. Exílios forçados.
Interferências nas manifestações culturais. Distorção da realidade.
Perseguições desenfreadas. Declarações absurdas. Perda de rumo... Pouco a pouco um vento começou a soprar forte,
dispersando a nuvem negra que pairava sobre a perturbada e desorientada nação
brasileira. E a Ditadura militar chegou ao fim. O que não terminou foi o
calvário do Brasil.
Coube
à nação brasileira o infortúnio de ter como primeiro presidente de sua era de
redemocratização um político da estirpe de José Sarney, um símbolo do atraso,
um representante do que pior existe na vida pública brasileira – está aí o
Maranhão como prova incontestável disso. E na esteira desse acontecimento
trágico vieram planos econômicos desastrados, que fizeram sumir os alimentos
das prateleiras dos supermercados, e uma Constituição revanchista que prometeu
o mundo e o fundo sem ter o país fundos para arcar com tantas benfeitorias. E
como se os males já não bastassem, ainda tivemos de aturar um Fernando Collor
de Melo no Palácio do Planalto fazendo do país uma extensão de seu quintal
alagoano. A decepção para com figuras como Sarney e Collor fizeram muitos
sentir saudades dos militares; enquanto que outros se perguntavam se os
brasileiros tinham desaprendido a viver sob um regime democrático.
A
implantação do Plano Real, ainda no governo Itamar Franco, e sua consolidação
durante os oitos anos da administração do sociólogo Fernando Henrique Cardoso,
puseram o Brasil no mapa dos países emergentes que estavam conseguindo não
apenas pôr suas economias em eixos seguros, mas também se livrando ao mesmo
tempo de engrenagens gastas e do ranço autoritário daquelas décadas perdidas.
Contudo, a corrupção continuou grassando a olhos vistos nestas plagas; e os
escândalos envolvendo políticos e seus comparsas, repartindo os butins dos
recursos públicos, continuaram na ordem do dia, como nos querendo dizer que o
país permaneceria por muito tempo ainda com os pés fincados no passado. Mas aí
veio a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, um ex-metalúrgico ícone do Partido
dos Trabalhadores, e o Brasil, num primeiro momento, contando com o bom cenário
da economia mundial, viu-se imerso num clima de que, dali para frente, tudo
iria ser diferente: a nação brasileira enfim chegara à sua maturidade
democrática elegendo um ex-operário; e as promessas de mudança de status do
cidadão esquecido pelas políticas públicas iriam ser finalmente cumpridas com o
estabelecimento de um modo de governar que não admitiria malversação dos
recursos do erário. Bom, se isso era um ponto-chave do script, ele foi solenemente ignorado.
A
distância do evento Ditadura militar proporcionada pelo transcurso do tempo se
não comprovou a tese – eles insistem em negar o fato - de que os “outros”, que
não os militares, queriam mesmo era promover a “cubanização” do Brasil,
revelou, por outro lado, que os “outros” não estavam lutando contra os militares
em favor da nação brasileira, mas em defesa de seus próprios interesses. O
modelo de gerenciamento implantado pelo Partido dos Trabalhadores neste país
culminou no escândalo chamado de “mensalão”, que levou para trás das grades
alguns dos seus luminares; e mostrou aos brasileiros dos mais diversos credos
políticos e ideológicos que tal partido, na verdade, estava contaminado até a
medula - e talvez desde a sua origem – por todas as doenças que ele se propunha
a erradicar. A apropriação da máquina pública; as constantes tentativas de
intimidação à imprensa livre e independente; o escárnio com que valores e
instituições democráticos – vejam como o Supremo Tribunal Federal, nossa instância
maior da Justiça, está sendo atacado – são tratados por essa gente; os
conchavos políticos com antigos “inimigos número 1” ... A impressão que o Partido
dos Trabalhadores e os seus apaniguados têm passado para nós outros é de que
lutamos em vão para nos vermos livres dos grilhões do regime militar, porque os
valores da democracia têm sido dia após dia vilipendiados à custa de um modelo
de governança que atende pelo nome de canalhocracia: um modo de governar que
não consegue sequer diminuir os altos índices de criminalidade que põem algumas
capitais do país entre as mais violentas do mundo; que compactua com
malfeitores; que não melhora a qualidade
da educação que é oferecida nas escolas públicas e muito menos a do serviço
público de saúde; que não promove a dinamização da infraestrutura; e que
descaradamente apoia regimes ditatoriais, como o de Cuba, investindo dinheiro
do contribuinte na ilha de Fidel e contratando médicos escravizados para o
Programa Mais Médicos, uma das ações mais absurdas e vergonhosas levadas a cabo
por esses ditos “refundadores” do Brasil.
Datas
redondas como esta que marca os cinquenta da Ditadura militar neste país, se
carregam em seu bojo algo enfadonho por conta da quase onipresença no
noticiário de discussões com elas relacionadas, por outro lado fazem com que
temas tão caros à história do país e à história de cada um de nós venham à tona,
propondo que releituras e novos entendimentos de fatos passem a ser conhecidos
principalmente por aqueles que os ignoravam.
Não
existe mestra mais eficiente do que a História. E ela está a todo tempo nos
dizendo que não devemos, em momento algum, permitir que sejamos subjugados por
quem quer que seja.
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