Por Clênio Sierra de Alcântara
No dia em que eu me deixei levar pelos caminhos realisticamente mágicos de Macondo, me deparei com um universo maravilhoso e epifânico que apenas a grande literatura é capaz de conceber. O encontro com os Buendía desencadeou em mim uma sede intensa de procura pela potência da escrita que tanto fascina como liberta. Úrsula Iguarán - e sua persistência em se manter viva - pôs-se diante dos meus olhos como aquela pessoa de cabelos brancos muito adorada que habita a minha casa: e ela nunca mais saiu do meu coração. Através das páginas de Cem anos de solidão Gabriel García Márquez, o Gabo, entrou na minha vida como se fosse uma revelação, como se fosse uma força vital – e por isso arrebatadora – que eu estivera o tempo todo a buscar.
Talvez mais do que qualquer outro artista foi Gabriel García Márquez que me fez acreditar que a arte foi inventada para que os homens encontrassem em si mesmos o absoluto, desprezando a finitude física do corpo. Foi Gabo também quem me deu um tanto de compreensão para aceitar que as pessoas que admiramos têm, igualmente a cada um de nós, idiossincrasias que fazem parte de sua formação. Daí por que, apesar de repudiar todo e qualquer governo de natureza autoritária, eu não rejeitei esse ilustre colombiano de Aracataca pelo fato para mim lamentável de ele apoiar a ditadura que vigora em Cuba. As pessoas são pessoas, ora, não são máquinas guiadas por sistemas operacionais.
A vida intelectual de Gabo e o modo como ele facilmente transitava entre a fantasia e a realidade – esta advinda de sua competente prática jornalística; aliás, ele acreditava que literatura e jornalismo são complementares – sempre me causaram admiração. No prólogo do livro Doze contos peregrinos ele expôs para os seus leitores o processo de coleta dos temas e as idas e vindas até a estruturação final das narrativas que constituíram essa obra. E a certa altura sentenciou com um juízo conciso e preciso: “É insaciável e abrasivo o vício de escrever”.
Em títulos diversos como Do amor e outros demônios, Ninguém escreve ao coronel, A má hora, Crônica de uma morte anunciada e Memória de minhas putas tristes, Gabo elencou personagens e situações inesquecíveis em narrativas marcadas por uma maneira muito particular de fazer uso da matéria da memória. Gabo mais de uma vez declarou que o fio condutor da maioria de suas estórias eram as lembranças do que ele ouvira dos seus avós na infância, anunciando que, no caso dele – e eu creio que isso valha para quase todo escritor – a literatura ficcional era uma corporificação de algo real ou sobrenatural vivido por alguém, que podia ser ele próprio, alinhavada pelo fio encantador da imaginação e da poesia. Gabo deixava o tempo todo claro que, para ele, escrever era mais do que um ofício, era uma necessidade de estar e sentir a vida.
Parte da crítica nunca o perdoou pelo fato de ele ser adepto do castrismo. Outra vertente apontava para o realismo mágico acusando-o de alienação: ora, numa terra marcada por caudilhos que estavam/estão permanentemente sequiosos de pisotear a democracia e impor suas vontades e verdades autoritárias, escrever literatura dessa maneira era considerado um inconveniente plano de fuga. E foi sem dúvida nessa mesma linha crítica que um grupo de escritores se engajou num “movimento” denominado McCondo a fim de dizer ao mundo – como se não soubéssemos, pelo menos nós brasileiros, que líamos Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego entre outros – que, na América Latina, vicejava também uma literatura muito diferente daquela realidade fantástica.
A notícia do encantamento de Gabriel García Márquez me encontrou no sítio histórico de Olinda – cenário esse que, não duvido, inspiraria e muito meu mais do que querido Gabo -, à noite, no instante em que eu estava frente a frente com alguém que vinha adicionando doses maciças de alegria ao meu cotidiano. E fiquei triste. Muito triste. E eu que alimentei tanto o sonho de que algum dia iria abraçar com a maior ternura o admirado escritor, desejei naquele momento ser eu também um ente fantástico que pudesse chegar à Cidade do México naquela hora a fim de ver o meu Gabo e lhe dizer, ignorando a presença da señora muerte, que, desde que o conheci, todos os meus anos se quedaram sem solidão. Adiós, querido!
(Artigo publicado também in: O Monitor [Garanhuns], Opinião, p. 2, maio de 2014).
(Artigo publicado também in: O Monitor [Garanhuns], Opinião, p. 2, maio de 2014).
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