3 de maio de 2014

Adiós, mi muy querido Gabo!


Por Clênio Sierra de Alcântara










No dia em que eu me deixei levar pelos caminhos realisticamente mágicos de Macondo, me deparei com um universo maravilhoso e epifânico que apenas a grande literatura é capaz de conceber. O encontro com os Buendía desencadeou em mim uma sede intensa de procura pela potência da escrita que tanto fascina como liberta. Úrsula Iguarán - e sua persistência em se manter viva - pôs-se diante dos meus olhos como aquela pessoa de cabelos brancos muito adorada que habita a minha casa: e ela nunca mais saiu do meu coração. Através das páginas de Cem anos de solidão Gabriel García Márquez, o Gabo, entrou na minha vida como se fosse uma revelação, como se fosse uma força vital – e por isso arrebatadora – que eu estivera o tempo todo a buscar.

Talvez mais do que qualquer outro artista foi Gabriel García Márquez que me fez acreditar que a arte foi inventada para que os homens encontrassem em si mesmos o absoluto, desprezando a finitude física do corpo. Foi Gabo também quem me deu um tanto de compreensão para aceitar que as pessoas que admiramos têm, igualmente a cada um de nós, idiossincrasias que fazem parte de sua formação. Daí por que, apesar de repudiar todo e qualquer governo de natureza autoritária, eu não rejeitei esse ilustre colombiano de Aracataca pelo fato para mim lamentável de ele apoiar a ditadura que vigora em Cuba. As pessoas são pessoas, ora, não são máquinas guiadas por sistemas operacionais.

A vida intelectual de Gabo e o modo como ele facilmente transitava entre a fantasia e a realidade – esta advinda de sua competente prática jornalística; aliás, ele acreditava que literatura e jornalismo são complementares – sempre me causaram admiração. No prólogo do livro Doze contos peregrinos ele expôs para os seus leitores o processo de coleta dos temas e as idas e vindas até a estruturação final das narrativas que constituíram essa obra. E a certa altura sentenciou com um juízo conciso e preciso: “É insaciável e abrasivo o vício de escrever”.

Em títulos diversos como Do amor e outros demônios, Ninguém escreve ao coronel, A má hora, Crônica de uma morte anunciada e Memória de minhas putas tristes, Gabo elencou personagens e situações inesquecíveis em narrativas marcadas por uma maneira muito particular de fazer uso da matéria da memória. Gabo mais de uma vez declarou que o fio condutor da maioria de suas estórias eram as lembranças do que ele ouvira dos seus avós na infância, anunciando que, no caso dele – e eu creio que isso valha para quase todo escritor – a literatura ficcional era uma corporificação de algo real ou sobrenatural vivido por alguém, que podia ser ele próprio, alinhavada pelo fio encantador da imaginação e da poesia. Gabo deixava o tempo todo claro que, para ele, escrever era mais do que um ofício, era uma necessidade de estar e sentir a vida.

Parte da crítica nunca o perdoou pelo fato de ele ser adepto do castrismo. Outra vertente apontava para o realismo mágico acusando-o de alienação: ora, numa terra marcada por caudilhos que estavam/estão permanentemente sequiosos de pisotear a democracia e impor suas vontades e verdades autoritárias, escrever literatura dessa maneira era considerado um inconveniente plano de fuga. E foi sem dúvida nessa mesma linha crítica que um grupo de escritores se engajou num “movimento” denominado McCondo a fim de dizer ao mundo – como se não soubéssemos, pelo menos nós brasileiros, que líamos Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego entre outros – que, na América Latina, vicejava também uma literatura muito diferente daquela realidade fantástica.

A notícia do encantamento de Gabriel García Márquez me encontrou no sítio histórico de Olinda – cenário esse que, não duvido, inspiraria e muito meu mais do que querido Gabo -, à noite, no instante em que eu estava frente a frente com alguém que vinha adicionando doses maciças de alegria ao meu cotidiano. E fiquei triste. Muito triste. E eu que alimentei tanto o sonho de que algum dia iria abraçar com a maior ternura o admirado escritor, desejei naquele momento ser eu também um ente fantástico que pudesse chegar à Cidade do México naquela hora a fim de ver o meu Gabo e lhe dizer, ignorando a presença da señora muerte, que, desde que o conheci, todos os meus anos se quedaram sem solidão. Adiós, querido!



(Artigo publicado também in: O Monitor [Garanhuns], Opinião, p. 2, maio de 2014).

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