10 de maio de 2014

Complexo de caranguejos

Por Clênio Sierra de Alcântara



Quinhentos e catorze anos de um “processo civilizatório” que empregou mecanismos tais como um regime escravocrata e um tribunal inquisitorial, a proibição durante séculos da implantação de estabelecimentos de publicação de livros e décadas de governos ditatoriais, culminaram neste triste quadro que é o Brasil: um país de milhões de analfabetos – os que nada sabem ler e escrever; e os analfabetos funcionais, que leem e escrevem com dificuldade – que não encontra, que não consegue achar o caminho verdadeiro da civilização e do progresso social.

Frei Vicente do Salvador certa feita declarou que a população que vivia no Brasil nos primeiros tempos da colonização não buscava o interior do território: habitava a costa “como caranguejos arranhando o litoral”. Sob outra ótica ainda hoje se diz em grande parte do Nordeste, quando se quer apontar alguém que está fazendo e/ou fez algo contrário ao senso comum, que fulano “anda para trás que nem caranguejo”. Dadas as circunstâncias dos tormentosos dias que correm é de se pensar que os brasileiros não temos um “complexo de vira-latas”, como enfatizava Nelson Rodrigues; o que temos mesmo, creio eu, é um “complexo de caranguejos”: não progredimos de fato, porque continuamos a dar enormes passos para trás.

Prender criminosos e ofertar a eles as mais diversas regalias, não é progresso. Empregar dinheiro – no caso em questão, algo mais de 1 bilhão de reais – num negócio de antemão tido como furado, não é progresso. Pressionar órgãos de pesquisa para que não sejam divulgados dados que exponham a realidade e, por conseguinte, revelem a inoperância do Governo, não é progresso. Investir bilhões de reais na construção e reforma de estádios de futebol quando ao cidadão não são oferecidos serviços públicos de qualidade nas escolas, nos hospitais e nem segurança, não é progresso. Ser conivente e/ou cúmplice de políticos malfeitores, não é progresso. Intimidar a imprensa livre e independente, não é progresso. Apoiar regimes ditatoriais, inclusive com dinheiro, não é progresso.

Aplicando a Lei de Lynch. Não vou cair aqui no discurso tolo de dizer que a turba de linchadores que, de uns meses para cá apareceu no noticiário, se originou e ganhou corpo porque os brasileiros não acreditam e nem confiam na Justiça do seu país. Uma gente que não respeita sinais de trânsito, que descaradamente joga lixo nas ruas, que burla o fisco, que furta água e energia, que compra documentos falsos para pagar meia entrada, que não lê livros, que gasta horas escrevendo e/ou “curtindo” bobagens e futilidades de toda ordem nos Facebooks da vida, não é apenas fruto de uma Justiça deficiente. Gente assim é resultado de uma educação precária – tanto escolar como familiar – na qual valores éticos e morais não são postos na grade curricular. Daí por que nestas plagas quem cumpre com todas as suas obrigações sociais é tachado de idiota. Daí por que neste lugar quem não compactua com falcatruas é escanteado quando não perseguido e retaliado.

Talvez por não ter tido uma educação exemplar, eu permaneça carregando alguns preconceitos. Talvez por não ter tido uma educação exemplar, eu continue praticando algumas mesquinharias. Talvez por não ter tido uma educação exemplar, meus raciocínios sejam deveras simplistas. Talvez por não ter tido uma educação exemplar, eu às vezes me perca em divagações vazias.

Brutalidade, covardia, barbárie, intolerância, ah, minha nossa, como eu me senti mal e derrotado ao assistir a um vídeo que mostrava o linchamento da Fabiane Maria de Jesus, ocorrido no Guarujá, em São Paulo, no sábado passado. E chorei. Chorei sentindo a dor provocada pela impotência, pelo inconformismo, pela incapacidade de compreender tamanha crueldade, pela vergonha e pelo medo de viver em uma sociedade na qual dezenas de indivíduos são capazes de cometer algo tão desumano, tão ignóbil, tão abjeto. A sequência que exibia um homem empunhando um pedaço de madeira com intenção de desferir golpes na indefesa mulher foi uma das coisas mais terríveis que eu já vi.


Provavelmente pelo resto da minha vida, as imagens do trucidamento da pobre Fabiane Maria de Jesus, às quais eu assisti, ficarão rondando a minha cabeça como a lembrança permanente de que a ignorância, a brutalidade e a intolerância podem fazer com que pessoas retornem à condição primeva da animalidade e da selvageria.

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