18 de julho de 2015

Cirandando com Mané Baixinho no Largo da Gameleira

Por Clênio Sierra de Alcântara
                                                      

                                                                              Especialmente para Ricardo Carvalho



Fotos: do autor     Mané Baixinho acompanhado de sua contramestra Tina. Legítimo representante e divulgador da ciranda na Paraíba, Mestre Mané Baixinho continua envidando esforços para pôr o seu folguedo na rua a fim de celebrar não apenas a grandeza do rito, mas também a herança de todos aqueles com os quais aprendeu seu ofício de artista popular que sente orgulho das raízes que defende e exalta




Nem a Comadre Sebastiana do Jackson do Pandeiro, nem a Severina Xique-Xique do Genival Lacerda, e nem o cego Aderaldo do Chico César deram as caras; mas eu estava lá, no Largo da Gameleira, em plena orla da capital da Paraíba, no último dia 24 de janeiro, a fim de prestigiar a Ciranda do Sol, do Mestre Mané Baixinho.

Ainda que não tenha atraído uma plateia numerosa – os turistas que se encontravam na cidade e que ignoraram o evento, não sabem o que perderam -, Mané Baixinho, que estava com o pé direito enfermo – Tina, sua contramestra, me falou que se tratava de problema de circulação -, embalou, junto com seu grupo, todos aqueles que, como eu, foram até lá para prestigiá-lo e integrar uma animada roda de ciranda e, também, ver o gingado dos que dançam coco. (Abri este parêntese aqui para comentar o seguinte: os estudos mais conhecidos sobre a ciranda de adultos que se encontra no Nordeste são unânimes em destacar a relação intrínseca que existe entre os mestres cirandeiros e os coquistas; isso porque, antes de conhecer a ciranda, grande parte deles era brincante do coco; daí por que, ainda hoje, em suas apresentações, alguns reservam um espaço do show para celebrar este folguedo que, de acordo com o folclorista Théo Brandão, tem uma origem africana e talvez tenha surgido na zona fronteiriça de Alagoas e Pernambuco, na área ocupada pelo Quilombo dos Palmares.)










Padre Jaime Diniz, que foi quem primeiro tratou do folguedo ciranda numa publicação lançada no final da década de 50, em Pernambuco, defendia a tese de que essa manifestação popular – cuja origem mais remota possivelmente está vinculada a Portugal – como modalidade, como ronda de adultos, apareceu primeiramente na cidade de Goiana, uma das mais importantes da Zona da Mata norte pernambucana, e dali se espalhou por Nazaré da Mata, Timbaúba, Limoeiro, Paulista, Abreu e Lima, Igaraçu e outras localidades (Padre Jaime C. Diniz. Ciranda: roda de adultos no folclore pernambucano. Separata da Revista do Departamento de Extensão Cultural – Deca. Recife, ano II, Nº 3, 1960, p. 13 e 65). Dada a proximidade com o território paraibano – com o qual, inclusive, faz fronteira -, é muito provável que foram cirandeiros de Goiana que levaram para a Paraíba o canto e a dança e/ou “formaram” algum paraibano que disseminou o brinquedo por lá. Entre as cirandas que Altimar de Alencar Pimentel coletou para o seu livro Ciranda de adultos (João Pessoa: Fundo de Incentivo à Cultura Augusto dos Anjos, 2005), obra referencial sobre a presença do folguedo na Paraíba e digna de muito louvor por ser completada por um disco que reúne mais de cinquenta composições, existe uma ciranda intitulada “Em Ponta de Pedra" – não sei em qual ano ela surgiu – que diz muito dessa contiguidade, dessa ligação de cirandeiros pernambucanos com paraibanos; ela menciona Ponta de Pedra, uma praia de Goiana, e um dos versos diz “do lado de lá”, o que nos faz crer que esse “lado de lá” não se trata de outra praia pernambucana, Carne de Vaca, e, sim, já o litoral paraibano. Vejamos:


Solista – Eu estava em Ponta de Pedra
                Avistei meus colegas
                Do lado de lá

Coro – Eu vi as meninas
             De maiô
             Espere por mim
             Que eu vou
             Também me banhá (. 131).



E ainda tem outra, cujo título é “Itamaracá” – nome de uma ilha do litoral norte pernambucano onde reside até hoje uma das cirandeiras mais conhecidas do Brasil, Lia de Itamaracá -, como a certificar a influência de Pernambuco no universo cultural dos cirandeiros paraibanos:


Solista – Itamaracá é pra lá de Itapissuma,
               Igarassu já ficou muito atrás

Coro – Tem um rapaz
            Que já tá de perna bamba
             De tanto dançar ciranda
             Só pedindo: “Eu quero mais!” (p. 92).
















Manoel Pedro das Neves, o Mané Baixinho, é discípulo de outro mestre, João Grande, que aprendeu a cantar ciranda na década de 60, em Alhandra, com um compadre chamado José Grande, antes de se mudar para o Bairro dos Novais, em João Pessoa. Nascido em Serraria, no interior paraibano, Mané Baixinho exercia a profissão de pedreiro em sua cidade natal; e ao conhecer João Grande tomou gosto pela brincadeira que o mestre dirigia e ingressou no grupo de ciranda dele, primeiro como tocador de zabumba, depois no coro e por fim como tirador de cirandas. Conta-nos ainda Altimar de Alencar Pimentel que com o falecimento de João Grande, Mané Baixinho viu-se em apuros, com dificuldade para formar um novo grupo; até que chegou ao Bairro dos Novais um cirandeiro do Recife conhecido como Rocinha, que se juntou a ele constituindo outro conjunto (op. cit. p. 58). Posteriormente Mané Baixinho formou e batizou a Ciranda do Sol, que tem esse nome, segundo declarou a Tina para a plateia, porque houve um tempo em que apresentações entravam pela noite e iam até o raiar do dia.














Primitivamente – pelo menos em Pernambuco – os cirandeiros – tanto o Mestre quanto os músicos – se apresentavam no meio da roda. Evandro Rabello, em seu Ciranda: dança de roda, dança da moda (Recife: Universidade Federal de Pernambuco, Ed. Universitária, 1979, p. 77) assim esclareceu: “O mestre tem atuação normalmente ao centro da roda de cirandeiros, juntamente com outros instrumentistas”. Foi com essa configuração que Mané Baixinho se apresentou no Largo da Gameleira. Outro ponto a ser destacado neste folguedo é que os “instrumentos mais característicos” tocados nas cirandas são o bombo (zabumba, surdo), a caixa (tarol, rufo) e o mineiro (ganzá, maracá, maracaxá ou caracaxá)). Em seu estudo Padre Jaime Diniz relata que tomou conhecimento de cirandeiros que se valiam de clarineta, trombone, pistão, saxofone e até sanfona em suas apresentações (op. cit. p. 23).

Devo-lhes confessar, caros leitores, que a primeira vez que eu dancei ciranda foi na Praça Rio Branco, localizada no sítio histórico da capital paraibana, anos atrás. Naquela noite eu, um fã ardoroso da cirandeira Lia de Itamaracá, me vi fascinado com o grupo de Mané Baixinho: homens bem alinhados, mulheres com saias rodadas e todos trajando camisetas brancas nas quais estava estampado o nome do brinquedo que defendiam com tanto empenho e eu diria até com devoção: Ciranda do Sol. E foi embebido com tamanha empolgação que eu deixei a timidez de lado, porque não tinha mais idade para isso, e dei as mãos aos brincantes para agigantar a roda. E rodei no compasso da ciranda sentindo uma alegria intensa e verdadeira. E agora que eu estou a recordar esse acontecimento, lembrei da singeleza com que o Padre Jaime Diniz descreveu esse instante de filiação em tom de quase convite: “Para entrar na roda, ninguém encontra obstáculo. A roda é do povo. É de todos. Basta abrir os braços de um par e eis o candidato a dançar” (op. cit. p. 31).

Quando cheguei ao Largo da Gameleira fiquei mesmo emocionado ao me deparar com Mestre Baixinho sentado, com o pé direito enfaixado, cantando com o maior dos entusiasmos em defesa do seu folguedo e sem esquecer de convidar os passantes para tomarem lugar na roda. Enquanto rodava e cantava eu vez por outra mirava o mestre cirandeiro me sentindo mais do privilegiado por estar participando e vivenciando aquele divertimento.







Lá pelas tantas, perto da hora da despedida, Mestre Mané Baixinho proclamou:


Canto ciranda
Porque Deus quer que eu cante
Porque sou representante
Da cultura brasileira.


Aos meus ouvidos essa quadra chegou como um grito de guerra, como uma convocação, como uma arregimentação e como um desabafo, porque só quem conhece de perto as agruras por que passam os artistas populares neste país compreende o sentimento que toma mestres como Mané Baixinho ao se darem conta de que, mais uma vez, apesar de todas as dificuldades, conseguiram pôr o seu brinquedo na rua, repassando para o público, em geral, e para seus seguidores, em particular, as lições aprendidas com outros que, como eles, acreditavam verdadeiramente no que faziam e, por isso, continuaram na brincadeira.

Mané Baixinho é um dos marcos de resistência da cultura popular na Paraíba; e carrega consigo aquela singeleza e aquela grandeza muito próprias dos mestres que sustentam e defendem com zelo, confiança, persistência e fé a natureza bruta e ao mesmo tempo inefável das coisas em que acreditam.

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