8 de outubro de 2015

Assassinato na Rua Pau-ferro

Por Clênio Sierra de Alcântara


Luto: a morte de Alexandre reforça uma triste realidade das periferias das cidades brasileiras, onde o imperativo da lei é permanentemente uma abstração



Segunda-feira, 5 de agosto de 2015. Repetindo uma rotina diária – quando durmo em minha casa, evidentemente -, me levantei, arrumei a cama – arrumar a própria cama foi uma das primeiras lições que aprendi – e abri a janela do quarto. Passando para o banheiro, urinei e lavei o rosto. Já na cozinha, bebi água – foi com minha avó Conceição que eu adquiri o hábito de beber água em jejum, “porque faz bem para o corpo”, ela repetia. Quando, na sala de visitas, abri as janelinhas da porta que dá vista para a rua, eis que me deparei com algo total e completamente inesperado: havia no portão uma fita zebrada – certamente delimitando uma área onde tinha ocorrido algo, foi o que pensei – e um repórter de um desses noticiosos televisivos que exploram à exaustão o mundo cão, gravava matéria informando a morte de um homem. Tomado de assombro, fui até o portão; e dele pude observar o corpo estendido no chão da rua: quase todo coberto por um lençol branco, o cadáver de um homem se encontrava ali, junto ao muro da minha casa, ao lado de um tijolo e de uma pedra ensanguentados... Que modo terrível de começar a semana numa manhã de sol ardente em uma ilha do Oceano Atlântico que durante muito tempo foi tida como paradisíaca... Quem seria aquele indivíduo? Será que eu o conhecia? Por que será que o mataram? Qual seria a sua idade? Teria bebido cerveja, considerando que havia uma lata próxima a ele? Será que o homem trabalhava? E filhos, será que ele tinha? Estudou até que ano? Onde ele morava? Seria ele cadastrado no Programa Bolsa Família, do Governo federal? Será que ele pretendia fazer algum curso do Pronatec? Costumava ele ir pescar com os amigos? E às festas de Nossa Senhora do Pilar, será que ele ia? Uma pequena aglomeração de curiosos se juntou para ver, ainda que de longe, o corpo inerte. Havia tanto sangue ali. Comentava-se que, muito provavelmente, ele fora morto a pedradas. Apontaram no meio do povo a mãe do rapaz. Coitadinha! Qual mãe quer ver um filho nessas condições, me digam? As mães sempre sonham futuros de grandeza para os filhos. Sinceramente eu não sei dizer se entre aquelas pessoas, alguém sabia da existência de um programa do Governo estadual chamado Pacto pela vida. Minha nossa, como é precária a nossa existência! E como cresce entre nós a indiferença para com o ceifamento diário de tantas vidas. Querem ter ideia da quantidade de assassinatos que todo dia ocorre aqui em Pernambuco? Sintonizem seus rádios no programa Bandeira 2, da Rádio Jornal, que vocês ouvirão Gino César e Eliel Alves fazerem um balanço dos crimes de morte que todos os dias acontecem nas terras pernambucanas. O homem morto defronte à minha morada, infelizmente, entrou como mais um na macabra contabilidade policial; ele se tornou mais um número na estatística dos órgãos governamentais que dizem se manter diuturnamente empenhados para proteger os cidadãos de bem das ações dos cidadãos do mal. A realidade vem nos mostrando que o empenho das autoridades tem se revelado contraproducente; e, no entanto, as estratégias visando à diminuição do índice de assassinatos não se alteram. Até o presente momento em que você lê esta narrativa, outras pessoas estão sendo ou vão ser assassinadas, aumentando ainda mais a diferença do número de mortes havidas neste ano com relação a 2014. Se fosse uma doença, o pernambucanicídio seria uma das mais letais que surgiram no mundo. Por horas o corpo do homem permaneceu na terra batida como se nem gente fosse. Por que esse descaso para com o humano? Por que fazemos de conta que isso não é conosco e nem nos diz respeito? Ouvi dizer que aquele homem atendia pelo nome de Alexandre; que ele era usuário de drogas; e que “não mexia com ninguém”. O sol estava tão quente naquela manhã. Por mais que eu me dissesse que a vida é assim mesmo, eu não conseguia afastar de mim uma tristeza angustiante. Foi Oscar Wilde, o famoso escritor irlandês, quem certa feita sentenciou: “Viver é a coisa mais rara. A maioria das pessoas apenas existe”. As horas iam passando e os curiosos não arredavam o pé daquele trecho da Rua Pau-ferro, na Ilha de Itamaracá, como se a morte fosse um espetáculo a ser apreciado. A mãe do rapaz ainda estava ali? Coitadinha! Que dor não estaria sentindo vendo aquela cena medonha ser prolongada por tanto tempo. Uma guarnição da Polícia Militar manteve-se no local da ocorrência desde cedo. Coberto com o lençol branco que em parte ficou vermelho, por estar embebido do seu sangue, Alexandre parecia dormir o sono dos justos naquele solo testemunho de incontáveis pisadas. Um dos noticiosos da TV informou que o corpo do assassinado “já se encontra no Instituto de Medicina Legal”, quando, na verdade, Alexandre continuava lá, na frente da minha residência, à espera de uma mão amiga que viesse conduzi-lo para outro lugar de dormida. Precisamos urgentemente nos desapegar dessa insensibilidade e dessa apatia que faz com que muitos de nós não nos importemos com a dor que o outro sente. O sol ardia intensamente naquele princípio de tarde. A erva-cidreira do terreiro da minha casa fica do lado esquerdo do portão e, às vezes, quando passo por ela, pego uma das folhas para sentir seu cheiro forte. Eram quase 13:00 h, quando, enfim, o veículo do Instituto de Medicina Legal chegou para recolher o corpo. Só agora recordei os versos de um soneto do poeta alagoano Jorge de Lima: “A morte é surda. Amém nos teus ouvidos./O céu mata, o sol mata, a mão mata”. Entre o agrupamento de curiosos, não sei se alguém se lembrou de rezar ao menos um “Pai Nosso” para a alma de Alexandre.

(Artigo publicado também in O Monitor [Garanhuns], Nº 179, outubro de 2015, Opinião, p. 2)
                                   

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