Por Clênio Sierra de Alcântara
Luto: a morte de Alexandre reforça uma triste realidade das periferias das cidades brasileiras, onde o imperativo da lei é permanentemente uma abstração |
Segunda-feira, 5 de agosto
de 2015. Repetindo uma rotina diária – quando durmo em minha casa,
evidentemente -, me levantei, arrumei a cama – arrumar a própria cama foi uma
das primeiras lições que aprendi – e abri a janela do quarto. Passando para o
banheiro, urinei e lavei o rosto. Já na cozinha, bebi água – foi com minha avó
Conceição que eu adquiri o hábito de beber água em jejum, “porque faz bem para
o corpo”, ela repetia. Quando, na sala de visitas, abri as janelinhas da porta
que dá vista para a rua, eis que me deparei com algo total e completamente
inesperado: havia no portão uma fita zebrada – certamente delimitando uma área
onde tinha ocorrido algo, foi o que pensei – e um repórter de um desses noticiosos
televisivos que exploram à exaustão o mundo cão, gravava matéria informando a
morte de um homem. Tomado de assombro, fui até o portão; e dele pude observar o
corpo estendido no chão da rua: quase todo coberto por um lençol branco, o
cadáver de um homem se encontrava ali, junto ao muro da minha casa, ao lado de
um tijolo e de uma pedra ensanguentados... Que modo terrível de começar a
semana numa manhã de sol ardente em uma ilha do Oceano Atlântico que durante
muito tempo foi tida como paradisíaca... Quem seria aquele indivíduo? Será que
eu o conhecia? Por que será que o mataram? Qual seria a sua idade? Teria bebido
cerveja, considerando que havia uma lata próxima a ele? Será que o homem
trabalhava? E filhos, será que ele tinha? Estudou até que ano? Onde ele morava?
Seria ele cadastrado no Programa Bolsa
Família, do Governo federal? Será que ele pretendia fazer algum curso do Pronatec? Costumava ele ir pescar com os
amigos? E às festas de Nossa Senhora do Pilar, será que ele ia? Uma pequena
aglomeração de curiosos se juntou para ver, ainda que de longe, o corpo inerte.
Havia tanto sangue ali. Comentava-se que, muito provavelmente, ele fora morto a
pedradas. Apontaram no meio do povo a mãe do rapaz. Coitadinha! Qual mãe quer
ver um filho nessas condições, me digam? As mães sempre sonham futuros de
grandeza para os filhos. Sinceramente eu não sei dizer se entre aquelas
pessoas, alguém sabia da existência de um programa do Governo estadual chamado Pacto pela vida. Minha nossa, como é
precária a nossa existência! E como cresce entre nós a indiferença para com o
ceifamento diário de tantas vidas. Querem ter ideia da quantidade de
assassinatos que todo dia ocorre aqui em Pernambuco? Sintonizem seus rádios no
programa Bandeira 2, da Rádio Jornal,
que vocês ouvirão Gino César e Eliel Alves fazerem um balanço dos crimes de
morte que todos os dias acontecem nas terras pernambucanas. O homem morto
defronte à minha morada, infelizmente, entrou como mais um na macabra
contabilidade policial; ele se tornou mais um número na estatística dos órgãos
governamentais que dizem se manter diuturnamente empenhados para proteger os
cidadãos de bem das ações dos cidadãos do mal. A realidade vem nos mostrando
que o empenho das autoridades tem se revelado contraproducente; e, no entanto,
as estratégias visando à diminuição do índice de assassinatos não se alteram. Até
o presente momento em que você lê esta narrativa, outras pessoas estão sendo ou
vão ser assassinadas, aumentando ainda mais a diferença do número de mortes
havidas neste ano com relação a 2014. Se fosse uma doença, o pernambucanicídio
seria uma das mais letais que surgiram no mundo. Por horas o corpo do homem
permaneceu na terra batida como se nem gente fosse. Por que esse descaso para
com o humano? Por que fazemos de conta que isso não é conosco e nem nos diz
respeito? Ouvi dizer que aquele homem atendia pelo nome de Alexandre; que ele
era usuário de drogas; e que “não mexia com ninguém”. O sol estava tão quente
naquela manhã. Por mais que eu me dissesse que a vida é assim mesmo, eu não
conseguia afastar de mim uma tristeza angustiante. Foi Oscar Wilde, o famoso
escritor irlandês, quem certa feita sentenciou: “Viver é a coisa mais rara. A maioria
das pessoas apenas existe”. As horas iam passando e os curiosos não arredavam o
pé daquele trecho da Rua Pau-ferro, na Ilha de Itamaracá, como se a morte fosse
um espetáculo a ser apreciado. A mãe do rapaz ainda estava ali? Coitadinha! Que
dor não estaria sentindo vendo aquela cena medonha ser prolongada por tanto
tempo. Uma guarnição da Polícia Militar manteve-se no local da ocorrência desde
cedo. Coberto com o lençol branco que em parte ficou vermelho, por estar
embebido do seu sangue, Alexandre parecia dormir o sono dos justos naquele solo
testemunho de incontáveis pisadas. Um dos noticiosos da TV informou que o corpo
do assassinado “já se encontra no Instituto de Medicina Legal”, quando, na
verdade, Alexandre continuava lá, na frente da minha residência, à espera de uma
mão amiga que viesse conduzi-lo para outro lugar de dormida. Precisamos urgentemente
nos desapegar dessa insensibilidade e dessa apatia que faz com que muitos de
nós não nos importemos com a dor que o outro sente. O sol ardia intensamente
naquele princípio de tarde. A erva-cidreira do terreiro da minha casa fica do
lado esquerdo do portão e, às vezes, quando passo por ela, pego uma das folhas
para sentir seu cheiro forte. Eram quase 13:00 h, quando, enfim, o veículo do
Instituto de Medicina Legal chegou para recolher o corpo. Só agora recordei os
versos de um soneto do poeta alagoano Jorge de Lima: “A morte é surda. Amém nos
teus ouvidos./O céu mata, o sol mata, a mão mata”. Entre o agrupamento de curiosos,
não sei se alguém se lembrou de rezar ao menos um “Pai Nosso” para a alma de
Alexandre.
(Artigo publicado também in O Monitor [Garanhuns], Nº 179, outubro de 2015, Opinião, p. 2)
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