2 de outubro de 2015

Crônica de uma cidade amada

Por Clênio Sierra de Alcântara




Fotos: do autor    Aos 480 anos Igaraçu ainda conserva muito do esplendor que a tornou conhecida em todo o país. Setembro é festivo e as pessoas correm para as ruas a fim de aproveitar



Todo pernambucano que se interessa minimamente pela história de sua terra, desde cedo aprende que foi em Igaraçu que teve início o povoamento de Pernambuco pelos portugueses. Sabe-se que, já em 1516, Cristóvão Jacques estabelecera com os homens que o acompanhara uma feitoria às margens do Canal de Santa Cruz. Segundo Sebastião de Vasconcellos Galvão registrou em seu Dicionário corográfico, histórico e estatístico de Pernambuco existe uma certa dúvida quanto ao fato de se dizer que foi em 27 de setembro de 1530 que portugueses duelaram e venceram franceses e também os índios potiguaras que com estes se aliaram. Apoiado em fontes que ele não cita, Galvão acreditava que, na verdade, o acontecimento se deu em 1535 ou, a ser conservada aquela data, o comandante vencedor do embate tenha sido Pero Lopes de Souza, Martim Afonso de Souza ou Cristóvão Jacques e não Duarte Coelho Pereira.





Antiga Casa de Câmara e Cadeia



Parque de diversão é um dos itens obrigatórios na festa de Igaraçu
 

Acompanhemos atentos o bom e velho Sebastião Galvão. Ele nos conta ainda que o rei português Dom João III tomou conhecimento daquela luta sangrenta e, por ocasião da divisão do Brasil em capitanias, como uma recompensa pelo desempenho de Duarte Coelho naquele enfrentamento e por outros serviços prestados na Índia, fez por carta régia de 10 de março de 1534, a doação das terras de Pernambuco ao valente Duarte, tendo sido o foral lavrado em 24 de setembro do mesmo ano:

Em 9 de Março de 1535 fundeou a armada no porto de Itamaracá e Duarte Coelho saltou com sua família e gente no sitio dos Marcos, á margem do rio Iguarassú [também chamado de São Domingos, Monjope e Santa Cruz], limite de suas terras com as de Itamaracá.




Igreja do Convento do sagrado Coração de Jesus



Sobrado onde o Imperador Dom Pedro II teria pernoitado em 1859. Desde o mês de agosto o prédio abriga a Casa do Patrimônio

 




Ainda no ano da chegada de Duarte Coelho ao sítio onde se daria efetivamente o início do povoamento da terra pernambucana pelos portugueses – é claro que não se está aqui querendo dizer que esta terra era desabitada, que não existiam povos nativos ocupando ela -, foi erguida uma capela que teve como oragos os santos Cosme e Damião, em virtude de ser a eles consagrado o dia 27 de setembro. Transcorrido cinco séculos e inúmeras transformações e reparos, o pequeno edifício eclesiástico existe até hoje como orgulho máximo dos igraçuenses, que enchem o peito para dizer que ela é “a igreja mais antiga do Brasil”.



A Igreja dos Santos Cosme e Damião: motivo de orgulho dos igaraçuenses

 


Prédio da Biblioteca Pública Municipal







Supõe-se que foi em 1550 que Igaraçu obteve a categoria de freguesia. No mesmo século Dom João III lhe conferiu o título de vila, denominando-a de “Muito nobre, sempre leal e mais antiga villa da Santa Cruz de SS. Cosme e Damião”. O tempo foi passando e a prosperidade da pequena vila começou a chamar a atenção de outros forasteiros. Em 1º de março de 1632 holandeses comandados pelo general Werdenbourg e guiados por Calabar adentraram na povoação e saquearam-na.

De acordo com a lei orgânica dos municípios nº 52, de 3 de agosto de 1892, Igaraçu se constituiu município autônomo em 28 de fevereiro de 1893. Três anos depois, segundo a lei nº 130, de 3 de julho de 1895, ela foi elevada à categoria de cidade.
A origem do topônimo Igaraçu é indígena e significa “canoa grande”. Diz-se que foi assim que os índios chamaram, admirados, as embarcações em que apareceram os primeiros europeus que eles viram: igara, canoa – açu, grande.

 




Igreja do Convento de Santo Antônio


Conforme a “Divisão administrativa, em 1911”, citada pela Enciclopédia Brasileira dos Municípios, Igaraçu compunha-se de três distritos: Igaraçu, Itapissuma e Pilar (Ilha de Itamaracá). No quadro da divisão administrativa relativo ao ano de 1933, publicado no Boletim do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e no de divisão territorial datado de 31 de dezembro de 1936, o município era formado pelos distritos de Igarassu, Itapissuma, Chã de Estêvão e Itamaracá (sem Pilar). O quadro de divisão territorial com data de 31 de dezembro de 1937 e o anexo ao Decreto-lei estadual nº 92, de 31 de março de 1938, Igarassu permaneceu com os distritos do mesmo nome e Itapissuma, Chã do Estêvão e Itamaracá; o que se nota de mudança no referido quadro é que o distrito de Itamaracá se denomina Pilar. Por força do Decreto-lei estadual nº 235, de 9 de dezembro de 1938, que estabelecia divisão territorial para vigorar no quinquênio 1939-1943, o município – e, consequentemente, o distrito – de Igarassu tiveram seu topônimo mudado para Igaraçu; e, nessa divisão territorial, Igaraçu figurava com o distrito-sede e os de Araçoiaba (ex-Chã do Estêvão), Itamaracá e Itapissuma; tal configuração foi mantida na divisão territorial-administrativo-judiciária do Estado que vigorou no quinquênio 1944-1948, fixada pelo Decreto-lei estadual nº 952, de 31 de dezembro de 1943. A Lei municipal nº 148, de 30 de maio de 1953 criou os distritos de Nova Cruz e Três Ladeiras – o primeiro, com território da sede; e o segundo, de Araçoiaba. Antes que o século XX terminasse, Igaraçu perderia porções significativas de seu espaço territorial: Araçoiaba, Itapissuma e a Ilha de Itamaracá se emanciparam e lograram o status de cidades.

 


O casario conservado de Igaraçu é algo encantador



Ciclistas atravessando a ponte sobre o Rio São Domingos

 

Ao fundo, a Capela de São Sebastião

 


 

Distando a cerca de 30 km da capital Recife, Igaraçu é nacionalmente conhecida em razão do rico patrimônio edificado que abriga, como a já mencionada Igreja dos Santos Cosme e Damião; a Capela de São Sebastião; a antiga Casa de Câmara e Cadeia, onde se instalou a Câmara dos Vereadores; o Convento de Santo Antônio, onde estão expostos quatro grandes painéis da primeira metade do século XVIII, que retratam acontecimentos – além da ilustração aparecem textos breves – da história da localidade, lembrando a intercessão dos santos padroeiros Cosme e Damião; o Convento e Igreja do Sagrado Coração de Jesus e a Capela de Nossa Senhora do Livramento. Além de um casario encantador encravado, junto com os edifícios mencionados, num terreno de relevo acidentado que torna o sítio histórico um lugar ímpar. Mas é claro que Igaraçu é bem maior que o seu cenário antigo. O município engloba inúmeras localidades que abrangem paisagens tomadas por canaviais, um parque industrial que cada dia ganha mais projeção na economia de Pernambuco e um trecho de praia bastante procurado.


 





 
Numa página do seu famoso Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife, cuja 1ª edição saiu em 1934, mestre, o grande mestre Gilberto Freyre, que tinha um apreço enorme pelo núcleo citadino igaraçuense, assim recomendou um “Passeio a Olinda e Igaraçu”: “Demorando no Recife, o turista não deixe de ir a Olinda. É a mãe do Recife. Podendo vá também a Igaraçu, que é a avó” – imagino que foi com indisfarçável lamento que ele, logo em seguida a essa dica turística tenha classificado o velho burgo como “Cidade morta” que, não duvido, deveria se referir ao estado de abandono em que na época se encontrava seu conjunto arquitetônico e paisagístico.





Hora da missa: os igaraçuenses agradecem aos santos-meninos






Corre, corre, meninada, que os confeitos vão acabar!!

 
Outro ilustre pernambucano que incluiu Igaraçu em sua obra foi Lourenço da Fonseca Barbosa, o Capiba, autor de uma variada produção musical que na composição “Igaraçu, cidade do passado” – ela nasceu depois de uma visita feita em 1950 – evocou uma paisagem não apenas física, mas também memorialística:


Olhando os teus campos,
Teus canaviais
Menino inda hoje
Eu sinto que sou.
Teu povo tão bravo,
Teus feitos heroicos,
Serão para sempre
Lembrados por nós
- Toda vida –
Igaraçu!
Igaraçu!
Cadê tuas moças bonitas
Que em dia de festa cantavam
Melodias de nossos avós?
Igaraçu!
Cadê teus garotos levados,
Que brincavam descalços na rua,
Mas rezavam, de noite, ao deitar?
Igaraçu!
Cadê tuas festas de igreja,
Onde o povo fazia oração
Para São Cosme, para São Damião?
Igaraçu, cidade do passado,
Tu viverás nos livros tristes,
Ninguém foi mais do que tu!


 






 
Setembro fervilha em Igaraçu. E faz tempo que é assim. A cidade se enfeita, traz parque de diversão e cantores, celebra missas, passa uma demão de tinta nas paredes do casario antigo – eu havia me dito que nessa crônica festiva e evocativa de tantas coisas boas que me ligam a Igaraçu, não iria abordar o trato com o patrimônio edificado da cidade, mas não resisti. Numa ocasião tão especial como essa, não se cuidou de renovar as placas de sinalização dos monumentos, que estão completamente apagadas; o prédio da Rua Dantas Barreto permanece, há mais de dez anos, sem telhado e, tudo leva a crer, a caminho do desabamento; e a Municipalidade teve a infeliz ideia (e olhem que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional mantém uma Casa do Patrimônio ali perto) de pôr um letreiro na fachada do belo edifício que a abriga indicando que é lá a “Prefeitura de Igarassu” – e espoca fogos de artifício, tudo em honra dos santos padroeiros Cosme e Damião. Neste ano as comemorações se fizeram mais intensas, porque a cidade completou 480 anos de existência.

 






Na tarde do último domingo, exatamente no dia dos padroeiros, desembarquei no sítio histórico da cidade para acompanhar parte das festividades. Subi e desci ladeiras empunhando minha câmera fotográfica. Flagrei uma multidão de crianças, adolescentes e alguns adultos correndo para pegarem bombons, pipocas e brinquedos que tradicionalmente são distribuídos em louvor dos santos-meninos por pessoas como paga por graças alcançadas. Cheguei à igreja dos padroeiros no momento em que se celebrava uma missa. Fotografei um senhor de nome Orlando empunhando um tabuleiro de pirulitos e um boneco articulado feito de papelão. Vi senhorinhas sentadas nas calçadas. Registrei também um vendedor de algodão doce; e o vai e vem das pessoas que por ali passavam: umas com trajes domingueiros, como se diz por aqui, e outras como que paramentadas para acompanharem a procissão. Ciclistas retornavam de um passeio quase romaria porque também alusivo aos santos...




Orlando exibindo as suas mercadorias








Olha o algodão doce!!





Eu no "coração" da cidade: Igaraçu está indelevelmente conservada na minha memória afetiva








Capela de Nossa Senhora do Livramento







Senti a cidade pulsando viva e sem se importar com o peso dos tantos anos que carrega nas costas. Cada recanto daquele lugar me dizia de sua grandeza e importância para a história não só de um estado, mas de todo um país. As ruas se animavam com as pessoas que iam chegando... Poucas vezes eu fui tão feliz como naquela tarde que passei em Igaraçu.

4 comentários:

  1. Parabens amigo Clenio, voce escreve muito bem, é um prazer ler seus artigos, solo que no caso deste artigo há informação errada. A igreja mais antiga do Brasil é a da Nossa Senhora da Conceição aquí na Vila Velha na Ilha de Itamaracá, existe prova contundente e irrefutavel da sua existencia em 1526 ! A noção errada de Cosme e Damião de Igarassu nace dum artigo do jornalista Mario Melo em 1926 na edição natalicio do Diario de Pernambuco. Tenho entendido que voce mora aquí na ilha, lhe convido me visitar aquí em Vila Velha quando, com o maior prazer, posso explicar a fascinante e quase desconhecido historia do povoado.

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    1. Que bom que tem gente que aprecia a nossa história. Gostaria muito de que nos conhecêssemos a fim de trocarmos impressões e "corrigir" equívocos históricos. Mande mensagem para o meu e-mail, informando o telefone. lafrontera@pop.com.br.
      Grato.

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  2. Boa noite Companheiro Sierra...estava lendo outras postagens do seu blog...é impressionante a riqueza de seus textos precisamos divulgar mais ainda os seu trabalhos...

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  3. Sim companheiro já estava me esquecendo...estou enviando para seu e-mail o press release do lançamento do livro...sexta-feira volto ao trabalho!!!

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