31 de outubro de 2015

Da necessidade da Educação patrimonial

Por Clênio Sierra de Alcântara



Levar a discussão sobre a proteção e valorização do patrimônio histórico, artístico e cultural para as salas de aula, pode fazer com que consigamos disseminar entre os nossos pequenos cidadãos um compromisso para com a defesa de um patrimônio que, afinal de contas, pertence a todos



Assim como não se consegue extinguir a pobreza por decreto, a formação de indivíduos que sejam comprometidos com a preservação do patrimônio histórico, cultural e artístico que os rodeia, requer muitíssimo mais do que vistosas peças publicitárias, publicações de livros e folders, discursos emocionados em praça pública e a elaboração de leis que ditem isso e aquilo. Manter um “discurso salvacionista” que não se ligue ao cotidiano dos entes sociais, creio eu, continuará perpetuando a indiferença que grande parte – quiçá a maior parcela – da população mantém para com os patrimônios; talvez essa indiferença seja a responsável pelos inúmeros casos de depredação, furtos e atos de vandalismo que são acometidos contra o patrimônio diariamente por este país afora.

A tutela dos que sabem mais na formação dos órgãos públicos destinados a designar "o que" e "por que" preservar – o que inevitavelmente forjou uma ideia de “memória nacional” que, para muitos, foi uma imposição do olhar elitista – se, por um lado, promoveu a elaboração de diretrizes, conceitos e normas visando à proteção do patrimônio, por outro, ao alijar a participação popular – eu não canso de repetir isso, porque essa é uma das críticas mais ferrenhas que mantenho com relação à conformação que durante décadas pautou a administração do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e, por tabela, a dos diversos órgãos estaduais e municipais que em algum momento resolveram lidar também com essa questão – de toda essa, digamos, política de construção identitária, perdeu um tempo precioso para que desde os seus começos se pudesse disseminar valores, planos e iniciativas de preservação patrimonial nas camadas populares.

Quem ler a publicação do Iphan Educação patrimonial: histórico, conceitos e processos (textos de Sônia Rampim Florêncio, Pedro Clerot, Juliana Bezerra e Rodrigo Ramassote. Brasília, DF: Iphan/DAF/Cogedip/Ceduc, 2014) ficará sabendo que já no anteprojeto para a criação do então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), Mário de Andrade apontava para a relevância de um “caráter pedagógico estratégico dos museus e imagens” (p. 5); e que Rodrigo Melo Franco de Andrade, que dirigiu o órgão desde sua criação, em 1937, até 1967, também apontou, em artigos e discursos, a importância da educação popular para que se assegurasse a defesa permanente do patrimônio cultural (p. 6). No entanto – segue nos informando a referida publicação – somente a partir de 1975 essa questão começou a ser abordada de modo mais insistente; e, na década seguinte, o Iphan se viu efetivamente envolvido com a temática “educação patrimonial”, algo que, de uns anos para cá – sinalizando, auspiciosamente, se tratar de um caminho sem volta – se consolidou em suas diretrizes administrativas, sobretudo com a criação das chamadas Casas do Patrimônio que vêm se espalhando de modo promissor pelo país.

Quando penso em planejamentos educacionais eu tomo sempre como parâmetros referenciais algumas das obras de mestre Paulo Freire que, em títulos como Pedagogia do oprimido, Educação como prática da liberdade e Pedagogia da autonomia, revela a promoção de um ensino/aprendizagem que, tanto quanto o á-bê-cê seja oferecido a quem aprende um esteio que lhe possibilite alcançar um entendimento de si como ente autônomo não apenas no sentido de que pode adquirir e disseminar conhecimentos, mas também como alguém que compreende o seu papel no universo que está ao seu redor. Sabe-se que a educação patrimonial então preconizada pelo Iphan está estruturada em três eixos de atuação: inserção do tema “patrimônio cultural” na educação formal; gestão compartilhada das ações educativas; e instituição de marcos programáticos nesse campo. É particularmente com o primeiro dos três eixos que este artigo buscou dialogar. Meu entendimento sobre essa questão prende-se à convicção de que, a partir do momento em que a temática “educação patrimonial” passe a ser assunto abordado na educação formal – e abordado de preferência com aulas que não se prendam entre as paredes da escola, possibilitando aos alunos conhecerem e apreciarem os patrimônios materiais e imateriais que podem ser encontrados nos mais diversos recantos do lugar onde eles moram -, certamente lidaremos com mais e mais indivíduos tendo ampla compreensão tanto da valorização quanto da preservação do patrimônio cultural.

Preservar determinado patrimônio não é torná-lo intocável, não é restringir rigidamente o seu uso, não é mantê-lo de portas fechadas, não é dificultar o seu acesso, não é, enfim, fazer dele uma espécie de relíquia sagrada destinada ao deleite de uns poucos. Preservar um patrimônio, penso eu, é salvaguardar uma memória que não seja mera sobrevivência de uma época, mas que diga às pessoas de sua importância na constituição e compreensão da história delas. Temos de ter em vista que patrimônio não é só aquilo que foi consagrado como tal pelos órgãos governamentais; que as comunidades podem também ter discernimento sobre o que elas acreditem merecer ser preservado; e que novos patrimônios podem estar surgindo neste nosso tempo na medida em que atribuições de valores designam perspectivas de preservação em qualquer época.

Portanto, esse discurso de afirmação da necessidade de se promover a chamada “educação patrimonial”, que eu trouxe até aqui, vai muito além de uma inquietação e/ou postura intelectual e cidadã que eu defendo: ela se faz necessária para que consigamos efetivamente banir de nossas plagas a indiferença para com a existência e a preservação do patrimônio, porque o patrimônio histórico, artístico e cultural de um país não é um bem de poucos, é um bem de todos.


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