Por Clênio Sierra de Alcântara
Assim como não se consegue extinguir
a pobreza por decreto, a formação de indivíduos que sejam comprometidos com a
preservação do patrimônio histórico, cultural e artístico que os rodeia, requer
muitíssimo mais do que vistosas peças publicitárias, publicações de livros e
folders, discursos emocionados em praça pública e a elaboração de leis que
ditem isso e aquilo. Manter um “discurso salvacionista” que não se ligue ao
cotidiano dos entes sociais, creio eu, continuará perpetuando a indiferença que
grande parte – quiçá a maior parcela – da população mantém para com os
patrimônios; talvez essa indiferença seja a responsável pelos inúmeros casos de
depredação, furtos e atos de vandalismo que são acometidos contra o patrimônio diariamente por este país afora.
A tutela dos que sabem mais
na formação dos órgãos públicos destinados a designar "o que" e "por que" preservar
– o que inevitavelmente forjou uma ideia de “memória nacional” que, para
muitos, foi uma imposição do olhar elitista – se, por um lado, promoveu a
elaboração de diretrizes, conceitos e normas visando à proteção do patrimônio,
por outro, ao alijar a participação popular – eu não canso de repetir isso,
porque essa é uma das críticas mais ferrenhas que mantenho com relação à
conformação que durante décadas pautou a administração do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e, por tabela, a dos diversos
órgãos estaduais e municipais que em algum momento resolveram lidar também com
essa questão – de toda essa, digamos, política de construção identitária,
perdeu um tempo precioso para que desde os seus começos se pudesse disseminar
valores, planos e iniciativas de preservação patrimonial nas camadas populares.
Quem ler a publicação do
Iphan Educação patrimonial: histórico,
conceitos e processos (textos de Sônia Rampim Florêncio, Pedro Clerot,
Juliana Bezerra e Rodrigo Ramassote. Brasília, DF: Iphan/DAF/Cogedip/Ceduc,
2014) ficará sabendo que já no anteprojeto para a criação do então Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), Mário de Andrade apontava
para a relevância de um “caráter pedagógico estratégico dos museus e imagens”
(p. 5); e que Rodrigo Melo Franco de Andrade, que dirigiu o órgão desde sua
criação, em 1937, até 1967, também apontou, em artigos e discursos, a
importância da educação popular para que se assegurasse a defesa permanente do
patrimônio cultural (p. 6). No entanto – segue nos informando a referida
publicação – somente a partir de 1975 essa questão começou a ser abordada de
modo mais insistente; e, na década seguinte, o Iphan se viu efetivamente
envolvido com a temática “educação patrimonial”, algo que, de uns anos para cá
– sinalizando, auspiciosamente, se tratar de um caminho sem volta – se
consolidou em suas diretrizes administrativas, sobretudo com a criação das
chamadas Casas do Patrimônio que vêm se espalhando de modo promissor pelo país.
Quando penso em
planejamentos educacionais eu tomo sempre como parâmetros referenciais algumas
das obras de mestre Paulo Freire que, em títulos como Pedagogia do oprimido, Educação
como prática da liberdade e Pedagogia
da autonomia, revela a promoção de um ensino/aprendizagem que, tanto quanto
o á-bê-cê seja oferecido a quem aprende um esteio que lhe possibilite alcançar
um entendimento de si como ente autônomo não apenas no sentido de que pode
adquirir e disseminar conhecimentos, mas também como alguém que compreende o
seu papel no universo que está ao seu redor. Sabe-se que a educação patrimonial então
preconizada pelo Iphan está estruturada em três eixos de atuação: inserção do
tema “patrimônio cultural” na educação formal; gestão compartilhada das ações
educativas; e instituição de marcos programáticos nesse campo. É
particularmente com o primeiro dos três eixos que este artigo buscou dialogar.
Meu entendimento sobre essa questão prende-se à convicção de que, a partir do
momento em que a temática “educação patrimonial” passe a ser assunto abordado
na educação formal – e abordado de preferência com aulas que não se prendam
entre as paredes da escola, possibilitando aos alunos conhecerem e apreciarem
os patrimônios materiais e imateriais que podem ser encontrados nos mais diversos
recantos do lugar onde eles moram -, certamente lidaremos com mais e mais
indivíduos tendo ampla compreensão tanto da valorização quanto da preservação
do patrimônio cultural.
Preservar determinado
patrimônio não é torná-lo intocável, não é restringir rigidamente o seu uso,
não é mantê-lo de portas fechadas, não é dificultar o seu acesso, não é, enfim,
fazer dele uma espécie de relíquia sagrada destinada ao deleite de uns poucos.
Preservar um patrimônio, penso eu, é salvaguardar uma memória que não seja mera
sobrevivência de uma época, mas que diga às pessoas de sua importância na
constituição e compreensão da história delas. Temos de ter em vista que
patrimônio não é só aquilo que foi consagrado como tal pelos órgãos
governamentais; que as comunidades podem também ter discernimento sobre o que
elas acreditem merecer ser preservado; e que novos patrimônios podem estar
surgindo neste nosso tempo na medida em que atribuições de valores designam
perspectivas de preservação em qualquer época.
Portanto, esse discurso de
afirmação da necessidade de se promover a chamada “educação patrimonial”, que
eu trouxe até aqui, vai muito além de uma inquietação e/ou postura intelectual e cidadã que eu defendo: ela se faz necessária para que consigamos efetivamente banir de
nossas plagas a indiferença para com a existência e a preservação do patrimônio, porque o patrimônio histórico, artístico e cultural de um país não é um bem de poucos, é um bem de todos.
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