25 de novembro de 2015

O “policial cidadão” e o “ciclo da cultura de paz”: entrevista com Cristiano Galvão

Por Clênio Sierra de Alcântara



Fotos: do autor


Pernambucano nascido no Recife em 1975, graduado em Educação Física pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e integrante do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo Institucional da Polícia Militar de Pernambuco, no próximo dia 04, às 19:00 h, no auditório da Livraria Cultura do Paço Alfândega, no Bairro do Recife, Cristiano Galvão lançará o livro A transformação do indivíduo em quase Estado – Um estudo etnográfico no Curso de Formação de Soldados da Polícia Militar de Pernambuco em edição do autor que contou com o apoio da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da UFPE. A obra é uma versão da dissertação de mestrado em Antropologia que ele defendeu no ano passado. De narrativa concisa e clara, o livro lança um olhar acurado e bastante revelador sobre um assunto que a academia não costuma se debruçar: o período de estudos, de “formação” de agentes de segurança pública, no caso em particular, de soldados da Polícia Militar pernambucana.

O jovem antropólogo está a todo tempo buscando, em rodas de conversa, compartilhar seus conhecimentos/entendimentos acerca da complexa estrutura que constitui a sociedade em que vivemos, tentando desarmar preconceitos e mal-entendidos, e, principalmente, fazer com que seus interlocutores alcancem uma compreensão de si mesmos.

Não tem sido dos mais confortáveis o exercício de suas atividades tanto profissionais quanto intelectuais, mas ele tem procurado pôr em ponto que lhe favoreça a balança de sua vida. O falecimento do seu pai, ocorrido há um ano, e algumas perturbações cotidianas, apesar de o terem abalado seriamente, não ofuscaram nem um pouco o brilho dos seus olhos inquietos e nem diminuíram a sua crença de que o indivíduo pode ser o agente transformador do seu próprio destino.

Foi à sombra de cajueiros em plena florada que na manhã da última sexta-feira Cristiano Galvão me concedeu a seguinte entrevista.






O que o levou a abordar um assunto como esse sobre uma organização que, a exemplo das Forças Armadas, é vista como um “corpo fechado”, que, digamos, não gosta de ser observada?

Eu acho que em parte você já traduziu um pouco esse lado de ter um corpo fechado. Apesar de o Exército verdadeiramente ser uma instituição que nós chamamos de “instituição total”, como diz Goffman [Erving Goffman, cientista social, sociólogo e antropólogo canadense], as instituições que são fechadas mesmo, com muros, tipo são os hospitais, tipo são os conventos. A polícia não tem esse formato fechado, como era antigamente; mas de toda forma existe, como se fosse o código de conduta dos próprios policiais, que faz com que eles tenham suas atitudes internas sem expor ao público. Isso está no motivo que nós observamos da ambiguidade entre o falar militar e o civil ou então o militar e o paisano. Assim, diante de uma instituição que é pública, uma instituição que a sociedade precisa ter o conhecimento sobre o que se passa com ela e a respeito do que ela pensa; a partir disso eu disse, não, é necessário que as pessoas, que a sociedade conheça como se forma a mente do policial, como é que o policial pensa, por que ele age daquela forma, quais são as suas categorias, como ele se identifica para si e para a própria sociedade.




Quem ler o seu livro tomará conhecimento de um episódio de quase confronto direto que o senhor teve com manifestantes durante uma passeata no Recife. Em algum momento de suas idas ao Centro de Formação de Praças o senhor se sentiu, de alguma forma, intimidado devido ao trabalho que realizava?

Olha, essa questão de se sentir intimidado, na verdade, faz parte da pesquisa. Mesmo com a facilidade de eu ser o que chamo de quase nativo, um híbrido: eu sendo bombeiro para mim é fácil porque eu me apresento para a sociedade sempre como bonzinho. Quanto ao policial, a sociedade, na hora da dificuldade, espera sempre que ele atue. O policial é sempre visto como aquele que pode prender, que pode bater. Então, isso é ruim para a criação dessa imagem, dessa relação policial e sociedade. Ocorria em certos momentos, quando eu estava fotografando, de algumas pessoas, que não tinham conhecimento de que eu estava autorizado a fazer a pesquisa, me olharem diferente; e isso criava uma dificuldade, um tipo de intimidação que, queira ou não, eu sentia um pouco e tentava sempre, de uma maneira ou de outra, me aproximar e tentar explicar às pessoas por que eu estava fazendo a pesquisa e que tinha autorização para que não acontecesse nenhum imbróglio e a situação não ficasse ruim ou chata. Uns desconfiavam, pensavam até, às vezes, que eu me encontrava ali como membro da 2ª Seção [serviço investigativo das organizações militares], fazendo, investigando de alguma forma, alguma coisa.

Parece ser um aspecto indiscutível que o fato de o senhor pertencer a uma organização militar [ele ocupa atualmente a graduação de 1º sargento do Corpo de Bombeiros Militar de Pernambuco] facilitou o seu trânsito nos quartéis. O senhor acredita que se não fosse militar teria encontrado maiores dificuldades para empreender as pesquisas?

Com certeza. Isso aí é certeza. Na maioria dos estudos que existem outros cientistas da área das ciências sociais, das ciências humanas que fizeram pesquisas com policiais, não necessária e diretamente com policiais, mas que os envolvessem, que os policiais estivessem envolvidos, eles citam a grande dificuldade que tiveram. Existe esse distanciamento que possivelmente ainda está marcado pela Era do Regime Militar, não é?, do regime que alguns chamam civil-militar, da Ditadura Militar. Isso causou uma, vamos dizer, barreira entre o grupo dos acadêmicos, da academia científica e a estrutura militar. Se as polícias militares, segundo a lei diz, são auxiliares das Forças Armadas, surge, fica essa dificuldade; ela é latente e de escala grande; essa dificuldade não parou ainda, não. Então, o fato de eu ser militar ajudou e muito o trânsito; ainda assim, eu tive dificuldades e elas não foram poucas.

A questão da segurança pública é algo que, no Brasil, devido ao exacerbamento da violência de um modo geral, não sai das pautas de discussões não apenas no âmbito da sociedade civil, mas também e principalmente do poder público. O senhor acredita que, em termos de formação, o policial militar de Pernambuco está bem preparado para proteger a sociedade?

As novas propostas que foram surgindo nos últimos dez anos, são propostas do “policial cidadão”, do “policial comunitário”. Há essa tentativa; mas acontece que tem a questão da origem do próprio policial; não é algo que existe apenas na instituição, está inserido também na sociedade. É difícil ver um policial sorridente; o policial é aquele que tem cara de mau, o policial é aquele que tem cara de impor temor nas pessoas. Na proposta da matriz curricular da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) almeja-se um policial voltado para as questões dos Direitos Humanos, para defender os direitos dos civis, dos cidadãos. Dentro desse aspecto, a partir desse processo da formação educacional nós poderemos possivelmente ver sim, no futuro, um policial que vá para o “ciclo da cultura de paz” e não para o “ciclo da violência”. O fato é que, às vezes, a própria sociedade, quando se depara com algum ato de violência, parece que quer ver sangue, para que o sangue justifique a criminalidade que está estabelecida em toda a sociedade.

Durante as entrevistas com os alunos do Curso de Formação, que sentimentos o senhor observou neles quanto às expectativas com relação ao exercício da profissão por eles escolhida?

São três os aspectos que eu preciso ressaltar acerca disso, que eles mesmos falam. Hoje existem os chamados “concurseiros”, que estão lá como uma ponte [eles não têm intenção de permanecer na corporação]; outros falam que estão felizes por terem alcançado a estabilidade, por terem vivido no mundo civil, onde o emprego não é estável; e outros que verdadeiramente colocam o ser policial como um sonho, um sonho às vezes vindo da própria família. Muitos policiais que estão na corporação hoje em sua maioria têm pais, irmãos, primos e amigos que também atuam como policiais. Então eles se sentem como se fosse uma obrigação, como se eles estivessem estendendo ou confirmando: eu tenho que também fazer a minha complementariedade de eu pertencer à minha família. Dessa forma, ele se torna, faz parte de uma família.





Em que medida se pode dizer que houve avanços no que diz respeito à formação da força policial nos últimos anos? Ou não houve avanço nenhum?

Nós nunca podemos dizer que não houve avanços. As instituições vivem numa dinâmica: umas com a velocidade maior, outras com a velocidade menor. As instituições de polícia passaram por várias mudanças ao longo dos anos. O maior problema de tudo, em termos desses avanços sobre os quais falamos, é exatamente o que eu digo: é o “ciclo da violência”: quando eu penso, como sociedade, que um ato de violência só pode ser parado ou detido com outro ato de violência, com outro ato constante de força. Não vamos ter a demagogia de que um dia a sociedade não vai precisar da polícia, é muito difícil pensar isso hoje. Mas enquanto não parar esse ciclo dentro da cabeça do policial, ainda que a parte externa esteja cheia de técnicas, continuaremos presos a um passado opressor, com uma polícia que foi constituída para ser o braço forte do Estado. Nós precisamos entender que a polícia precisa ser exatamente a polícia que é companheira do cidadão. Isso me parece que começou, pelo menos em termos de discurso. Agora, é necessário que a própria sociedade veja isso na prática.

É sabido que o número de crimes que resultam em mortes continua elevadíssimo aqui em Pernambuco já faz alguns anos. Como antropólogo e como cidadão qual a sua avaliação sobre o que foi feito até agora pelo programa Pacto pela vida criado e posto em prática ainda no Governo de Eduardo Campos?

Eu acho que só o fato de o Pacto pela vida criar índices é importante para que seja avaliado pela sociedade e pela própria instituição. Agora, eu penso que a formação desses índices tem de ser compartilhada com outros órgãos da sociedade para que, aí sim, se possa verificar se esses índices numéricos batem com as questões da qualidade e com o sentimento de segurança que a sociedade está sentindo. Então essa decaída que se dizia no início do Pacto pela vida deveria também ter sido acompanhada de um índice qualitativo com a sociedade. Qual é o sentimento de segurança que a sociedade está sentindo? Eu não posso simplesmente pôr números e não observar como é que está esse termômetro da sociedade com relação à segurança. O que é que eu acho que seja necessário para que haja mudança nisso? Deveria haver uma participação, uma formação de conselhos envolvendo a sociedade, organizações não-governamentais, organizações civis que também detêm outros índices. Um exemplo disso: quando alguns índices do Pacto pela vida decresceram, em sua maioria foram em áreas de classes favorecidas e não nas de classes desfavorecidas, e isso nós não vemos nos números. Além do mais, enquanto ocorreu um decréscimo no número de mortes de pessoas de cor branca, aumentou o índice com relação a pessoas de cor negra. Então é necessário reavaliar esses índices em relação a termos qualitativos e não apenas numéricos.


4 comentários:

  1. Excelente entrevista!
    Parabéns Cristiano! Sorte e muito mais sucesso!!!

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  2. Parabéns, Galvão!! O GT Racismo PMPE ganha muito tendo um pesquisador estudioso e engajado como VC. Forte abraço!!! Sucesso!!!

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  3. Parabéns pela entrevista!
    Tanto o entrevistador como o entrevistado abordaram assuntos pertinentes a nossa sociedade.

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  4. Viva a evolução! E Parabéns pela ousadia de por em prática um assunto tão específico que ajuda a desmistificar as visoes sobre a função Policial.

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