29 de dezembro de 2015

Sem sutilezas

Por Clênio Sierra de Alcântara


Quem só olha para o seu próprio umbigo, não se dá conta do quão complexo e desafiador é o mundo que está ao seu redor; e nem se esforça para compreender o que o outro sente



Neste Brasil “país do futuro” e das desigualdades sociais, três elementos que pontuam o convívio da “brava gente” brasileira não fazem distinção de raça, credo, idade, gênero e muito menos de classe social. A saber: a falta de educação; a desonestidade; e, sobretudo, o desrespeito para com o próximo.

Não é só a falta de educação que nos leva a praticar atos por vezes abomináveis que maculam a convivência pacífica e harmoniosa que deveríamos manter, na medida do possível, nesse existir em sociedade. Evidentemente que eu não estou falando aqui apenas da educação formal; muito embora seja tida como fator preponderante dentro de nossa formação como pessoas, como indivíduos, como cidadãos, ela, creio eu, está intrinsecamente ligada àquela outra que chamamos de educação informal e, também, de “educação que se aprende em casa”. Não me enquadro entre aqueles que acreditam que a escola é a única responsável pela formação do indivíduo. Acredito, isso sim, que a escola deve disseminar os saberes necessários para que o indivíduo desenvolva competências que lhe possibilite compreender o mundo que está ao seu redor, a fim de que ele possa participar ativamente da sociedade em que vive; e que esses tais ensinamentos, ditos formais, podem e devem ser complementados com os saberes da vida cotidiana, com as vivências e experiências pessoais, com os ensinamentos de pais, tios, tias, avós, amigos... Se eu acreditasse que só a escola constitui e forma uma pessoa, eu teria que admitir que o analfabeto não é gente; e que a minha avó Conceição nada sabe de si e nem tem consciência de existir.

Muito das nossas misérias, das nossas mazelas, do nosso atraso, da nossa pobreza, da nossa pequenez, da nossa mediocridade, da nossa insignificância, da nossa irrelevância como povo e nação aos olhos dos países mais desenvolvidos e, vá lá, civilizados, decorre essencialmente do fato de insistirmos em nos portarmos como indivíduos de segunda categoria, em nos comportarmos como se não tivéssemos deveres e obrigações a cumprir e tão somente direitos; como se não devêssemos respeitar os ditames da lei e as regras mais básicas exigidas pelo convívio em sociedade; como se acreditássemos que tudo existe para nosso único e exclusivo usufruto; como se pudéssemos viver sem assumir qualquer compromisso para com tudo que está em volta de nós e para conosco mesmo; como se, enfim, olhássemos a todo tempo somente para o nosso próprio umbigo, crentes de que as nossas necessidades são as maiores, os nossos desejos são os mais legítimos, as nossas dores são as mais excruciantes e as nossas vontades devessem ser prontamente atendidas e as necessidades, os desejos, as dores e as vontades dos outros não nos dissessem respeito.

É estranho esse tipo de comportamento. Estranho e absurdo, porque agimos como se a nossa existência, o nosso viver não dependesse e não estivesse encadeado e ligado a uma série de saberes e fazeres realizados por outras pessoas; e fôssemos autossustentáveis e independentes.

Ao não assumirmos responsabilidades para com o outro deixamos efetivamente claro que com ele não nos importamos. Daí por que furamos filas; e jogamos lixo nas ruas e córregos; e instalamos “macacos” nos contadores de energia; e buscamos burlar o fisco;  e ateamos fogo nos terreiros de cultos de matriz africana; e oferecemos suborno ao guarda de trânsito; e não nos preocupamos em eliminar os focos de proliferação do mosquito Aedes aegypti; e adulteramos leite batizando-o com ureia, água oxigenada e soda cáustica; e tiramos carteiras de estudante sem sermos estudantes; e nos apossamos de objetos esquecidos por colegas de trabalho; e nos cadastramos no Bolsa Família sem precisarmos dele; e ocupamos os lugares reservados aos idosos e portadores de deficiência física; e postamos nas redes sociais, em meio a futilidades e demonstrações de pura vaidade e exibicionismo, fotos íntimas de pessoas que namorávamos, promovemos a intolerância religiosa e escrevemos comentários racistas e homofóbicos; e nos aproveitamos do cargo que ocupamos para tirar a máxima vantagem dele e punir e mandar para bem longe quem se atreve a apontar nosso mal comportamento e a contrariar nossos interesses escusos; e sejamos hipócritas, fingidos e desonestos...

Por fundamentalmente não termos o devido respeito para com o próximo e não sabermos o que é alteridade e muito menos empatia nos lançamos numa verdadeira roda-viva na qual viceja, com uma força desconcertante, roubalheiras e desmandos, como os que estão a unir em conluio figurões empresariais e o chorume político do grande lixão instalado em Brasília, o morticínio desenfreado que se alastra por todas as cidades deste Brasil, brasileiro ceifando a vida da nossa juventude e a crônica de uma tragédia anunciada, como a que se deu em Mariana, há quase dois meses.

Quem inventou o calendário que seguimos, talvez, não tenha imaginado que, mais do que um orientador para a contagem da sucessividade dos dias, estava legando à humanidade a ilusão - ou oportunidade, como queiram -,  para tantos confortadora, de que, quando da virada do dia 31 de dezembro para o dia 1º de janeiro, temos a possibilidade de um novo recomeço para nossas vidas, deixando erros, frustrações e infortúnios para trás, acreditando que tudo ou muita coisa poderá ser diferente. Aos que acreditam nisso, eu peço que, ao erguerem as taças de champanhe e brindarem efusivamente se despedindo deste longo e sombrio ano que está chegando ao fim, lembrem-se de que a indiferença, o descaso, a insensibilidade, o desinteresse, a apatia e o desrespeito para com o outro ferem, mutilam e matam tanto quanto o ódio, a intolerância, a covardia, o preconceito, a estupidez, a ignorância...

Sem o esteio de uma educação que verdadeiramente nos humanize, nunca seremos capazes de promover a tomada de consciência de que a nossa integridade só se efetiva realmente pela existência do outro.


(Artigo publicado também in O Monitor [Garanhuns], nº 186, maio de 2016, Opinião, p. 2.)

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