Por Clênio Sierra de
Alcântara
Quando no dia 31 de março de
1595, em plena Sexta-feira da Paixão, o corsário James Lancaster, que comandava
sete navios, tomou de assalto o Recife, se apossando de tudo o que julgou ser
de valor, como as alfaias da primitiva Igreja do Corpo Santo, a ainda pequenina
povoação que no futuro iria lograr o status de capital de Pernambuco, estava
restrita à área hoje conhecida como Bairro do Recife – claro que ainda sem os
sucessivos aterros que a expandiram -, onde existiam principalmente armazéns de
açúcar e residiam pescadores. Já na primeira década do século XVII –
precisamente em 1606, nos dizem alguns manuais – a expansão foi se lançando
para a Ilha de Santo Antônio; naquele ano, franciscanos fizeram erguer ali um
convento sob a invocação do santo que nomeava o lugar. Talvez seja a mencionada
construção eclesiástica a, digamos, “pedra fundamental”, o marco fundador da
ocupação de um território insular que alcançaria, sob o domínio holandês, no
segundo quartel do período seiscentista, a configuração de cidade: Maurício de
Nassau, o dinâmico governante dos invasores flamengos, promoveu o erguimento de
sua Maurícia, ocupando a Ilha de Santo Antônio – o terreno compreende os atuais
bairros de Santo Antônio e São José – com mais de duas mil casas, dois palácios
– Friburgo e Boa Vista -, duas pontes, um horto zoo-botânico e outros equipamentos
que fizeram do Recife um dos experimentos urbanos mais avançados de todo o Novo
Mundo – mais um exemplo: numa das torres do Palácio Friburgo foi instalado o
primeiro observatório astronômico de que se tem notícia na América Latina.
A praça
Não muito distante da beira do Rio Capibaribe, para o lado do Bairro do Recife, um largo que no tempo dos holandeses era denominado de Terreiro dos Coqueiros, e onde existia o “Grande Mercado de Maurícia”, segundo a informação colhida por Vanildo Bezerra Cavalcanti (Recife do Corpo Santo. Recife: Prefeitura Municipal do Recife, 1977, p. 166), atravessou os séculos sem perder a importância como ponto central e comercial de Santo Antônio. Ficou a área conhecida ao longo do tempo por diversos nomes: Praça do Mercado, Praça da Polé – polé era um instrumento de suplício para aplicação de castigos por certos crimes, em geral, correcionais, que ali existia, “junto a um poço que a Municipalidade mandara abrir para serventia pública”, nos diz o limoeirense Sebastião de Vasconcellos Galvão no seu Dicionário corográfico, histórico e estatístico de Pernambuco (2ª ed. Recife: CEPE, 2006, p. 402) -, Praça Grande, Praça dos Campineiros, Praça da União – foi o governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro que propôs, em junho de 1816, o tal nome em razão de o Brasil ter sido elevado à categoria de Reino Unido ao de Portugal e Algarves -, Praça do Comércio e pela denominação do tempo presente Praça da Independência, que foi atribuída pela Câmara em 5 de novembro de 1833, em virtude da independência política do país; por esse tempo os prédios que a rodeavam foram pintados de verde e amarelo.
Acompanhando as vagas de transformação, modificação e modernização que tomaram o núcleo primitivo do Recife, a praça sofreu várias alterações: em 1788 o governador Dom Tomás José de Melo mandou erguer nela um mercado de frutas, hortaliças e outros gêneros, composto por sessenta e duas casinhas com alpendre corrido, descansando sobre arcaria; em 1815 dotaram-na de mais uma série de casinhas em substituição as que foram retiradas da Ponte do Recife - a que hoje se chama Ponte Maurício de Nassau -; em 1818 foram concluídos os trabalhos de uma nova remodelação que fizeram com que ela passasse a se chamar Praça da Nova União. Outras intervenções tomariam impulso botando abaixo aquelas casinhas (1905) e até todo o quarteirão que a separava da Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento de Santo Antônio, fazendo desaparecer alguns prédios e a Rua do Cabugá, como foi feito na década de 40 do século passado. Nos anos 70 ganhou a praça um pequeno lago. Tempo viria em que parte do seu perímetro seria gradeado; e, já no século XXI, trataram de subtrair-lhe as grades. E assim a Praça da Independência, que passara tantos anos estigmatizada como reduto de prostitutas e desocupados, foi sendo ocupada também por outras pessoas que, no vai e vem da agitação que marca a área central da capital, pode ali parar um pouco nem que seja tão somente para tomar fôlego.
O jornal
Com tipografia instalada na Rua Direita nº 267, residência de seu fundador Antonino José de Miranda Falcão – e seriam vários os endereços que o periódico teria -, em 7 de novembro de 1825, uma segunda-feira, começou a circular no Recife o Diario de Pernambuco, jornal que viria a tornar-se o mais antigo em circulação da América Latina e a mais antiga publicação diária em língua portuguesa do mundo. Com formato de 24,5 X 19 cm e como simples “folha de anúncios”, as quatro páginas franqueadas aos leitores custavam 40 réis por exemplar. Leiamos o que dizia a “Introdução” que eu transcrevo aqui a partir do admirável trabalho que foi conduzido por Luiz do Nascimento em sua História da imprensa de Pernambuco (Volume 1. 2ª ed. Recife: Imprensa Universitária da UFPE, 1968, p. 21-22):
Faltando nesta cidade assás populosa um Diário de Anúncios, por meio do qual se facilitassem as transações, e se comunicassem ao público notícias, que a cada um em particular podem interessar o administrador da Tipografia de Miranda & Companhia se propôs a publicar todos os dias da semana, exceto aos domingos somente, o presente Diario, no qual, debaixo dos títulos de Compras – Vendas – Leilões – Aluguéis – Arrendamentos – Aforamentos – Roubos – Perdas - Achados – Fugidas e Apreensões de escravos – Viagens – Afretamentos – Amas de leite, etc., tudo quanto disser respeito a tais artigos; para o que tem convidado a todas as pessoas, que houverem de fazer estes anúncios a os levarem à mesma Tipografia, que lhes serão impressos grátis, devendo ir assinados. Também se publicarão todos os dias as entradas e saídas das embarcações do dia antecedente, portos de onde vierem, dias de viagem, passageiros, cargas e notícias que trouxeram. Além disto, todas as semanas se darão os preços correntes dos gêneros de importação e exportação, com um atestado de dois negociantes desta praça.
No transcurso dos anos, o Diario de Pernambuco foi se firmando como um dos principais órgãos de imprensa do estado, acompanhando e registrando os acontecimentos que constituíram a história do país e do mundo, os grandes e os pequenos; e toda sorte de miudezas que marcam a vida das pessoas, sendo depositário, por isso, não apenas de fatos que entraram nas páginas da história dita oficial, que elege o que bem entende para figurar em suas narrativas pretensamente totais e globalizantes, mas também de ocorrências que ditam o cotidiano do homem comum e que tanto se prestam à escritura de uma história que dá vez e voz a vivências dos indivíduos anônimos, aqueles elementos que contribuem de alguma maneira para a formação da sociedade e dos quais se costuma omitir até mesmo os nomes.
Conflitos sociais, disputas políticas, filiações partidárias, defesa de ideologias. Metido no amplo palco dos acontecimentos, ao longo de sua existência o Diario de Pernambuco foi alvo de inúmeros empastelamentos, manobra à qual se recorria quase sempre para evitar que outras denúncias e “provocações” ganhassem as páginas do periódico que contava com gente afiada em sua redação. Reduto da intelectualidade pernambucana, o simples fato de fulano de tal ser colaborador do jornal já era motivo para que ele fosse perseguido pelos poderosos que se sentiam prejudicados e ofendidos pelo que era publicado em suas colunas.
O jornal impõe-se na praça
No ano de 1903, em plena belle époque, quando várias cidades brasileiras, em particular o Rio de Janeiro, então capital do país, passavam por enormes e destruidoras intervenções urbanísticas com o propósito de higienizá-las, saneá-las e dotá-las de largas avenidas e prédios suntuosos, fazendo desaparecer os vestígios dos tempos do Brasil Colônia e Império, o Diario de Pernambuco, que agora tinha como proprietário o Conselheiro Rosa e Silva, passou a ocupar um edifício imponente erguido naquele ano com três andares e em estilo neoclássico que logo se tornou uma referência da arquitetura civil do Recife.
Com a frente voltada para o lado sul, como que a evocar os ideais libertários do Frei Caneca arcabuzado no Largo das Cinco Pontas em decorrência da Confederação do Equador, eclodida em 1824, a edificação atravessaria todo o século XX assistindo aos embates infrenes que travavam os intelectuais e os mandatários da hora. Um dos eventos mais lembrados se deu no dia 3 de março de 1945: já era noite quando, em meio a um comício de apoio à candidatura do Brigadeiro Eduardo Gomes à presidência da República, um tiroteio teve início na praça, tudo leva a crer, partindo das forças policiais do interventor Agamenon Magalhães. Na sacada do primeiro andar discursava Gilberto Freyre, o grande intelectual que, vinte anos antes, organizara as festas de comemoração dos cem anos de existência do Diario de Pernambuco, legando à posteridade a obra coletiva Livro do Nordeste, para a qual Manuel Bandeira escreveu essa coisa maravilhosa que é o poema “Evocação do Recife”, em que descreve lembranças de uma infância passada num “Recife bom Recife brasileiro” como a casa do seu avô, que ainda hoje continua de pé na Rua da União (Gilberto Freyre [org.]. Livro do Nordeste. 2ª ed. Recife: Arquivo Público Estadual, 1979. O poema bandeiriano ocupa as páginas 121, 122 e 123). Ao lado do futuro autor de Ordem e progresso se encontrava o estudante de Direito Demócrito de Sousa Filho. Certamente pretendendo acabar com a vida de Gilberto, que era tido como inimigo do interventor, tiros direcionados para a sacada acabaram vitimando fatalmente Demócrito, enquanto na praça tombou, também sem vida, o carvoeiro Manoel Elias. O Recife ficou de luto. A Praça da Independência que o povo, não sei a partir de que momento, passou a chamar, como nos nossos dias, de Pracinha do Diario, evidenciando como o jornal se associou ao cotidiano da cidade, tornou-se um cenário-símbolo da luta pelo fim da ditadura de Getulio Vargas à qual Agamenon Magalhães servia tão renhidamente. Agamenon bem que tentou, como disse o Mestre de Apipucos, “assassinar o dia seguinte”, mas as histórias daqueles dias de convulsão política e social nunca deixaram de ser contadas.
Crônica de um abandono
Durante cento e um anos o Diario de Pernambuco manteve-se ocupando o belo edifício da Praça da Independência, até que, em julho de 2004, passou a funcionar na Av. Cruz Cabugá, no bairro de Santo Amaro. Divulgaram que a principal razão da inesperada transferência foi a necessidade de estar aquele sítio de Santo Antônio bastante congestionado, dificultando o trânsito de veículos e, por conseguinte, as operações logísticas da administração do periódico.
Ainda no segundo semestre de 2004 tomou-se conhecimento de que o Governo do Estado de Pernambuco tomara a iniciativa admirável e oportuna de adquirir o prédio, que inicialmente foi cotado para abrigar o Arquivo Público Estadual. No entanto, os anos foram se passando e nada de a edificação adquirir uma nova destinação. Mais recentemente, em 20 de novembro de 2014, foi divulgado que o governo estadual resolvera ceder o imóvel ao Porto Digital pelo prazo de dez anos para que abrigasse empresas de tecnologia da informação e comunicação, como há anos vinha sendo feito em prédios antigos do Bairro do Recife. Além das empresas, o edifício abrigaria um museu destinado a contar a história do Diario de Pernambuco, conforme anunciaram na mesma ocasião.
A realidade é que, em que pese o valor que o prédio do Diario de Pernambuco tem para a história da imprensa nacional e não apenas da pernambucana, ele se encontra abandonado, sendo consumido pelas intempéries e pelo completo e total descaso do poder público.
No último dia 3 de janeiro, um domingo que principiou cinzento e foi se abrindo num amplo e convidativo “domingo azul”, como diria o alagoano pernambucanizado Aldemar Paiva, eu me levei até o Recife para, na minha matutina solidão, atravessar a Praça da Independência e, absorto, testemunhar com os olhos bem abertos, o retrato da decadência do prédio que abrigou por cento e um anos o mais conhecido jornal pernambucano. E me deparei com um feio tapume e com armações de tijolos desdenhando e fazendo pouco da nobreza daquela formosa construção. E constatei que rachaduras estão a querer se apossar da bela fachada cujos ornamentos estão lentamente se desmanchando. E pus as mãos nos cadeados que firme e determinadamente mantêm aquelas portas fechadas. E me virei para mirar dali a praça e percebê-la tão vazia de um sentimento de revolta e indignação perante a opressão daquela realidade. Os pombos alçavam voos discretos e despreocupados, enquanto eu permanecia ali, me esforçando para que a minha desolação diante do desfigurado quadro não alterasse a cor da manhã daquele domingo.
Existências precárias
Leonardo Dantas Silva, ardoroso amante das recifensidades, nos diz em uma de suas obras de divulgação do passado do Recife que, em cada esquina desse burgo “há uma igreja ou um acontecimento da História do Brasil que, não raras vezes, se confunde com a própria História da Liberdade” (Recife: uma história de quatro séculos. Recife: Prefeitura Municipal do Recife, 1975, p. 12). Ameaçado pelo império da cobiça e dos lucros vultosos, o acervo arquitetônico histórico que existe no núcleo primitivo do Recife vem sofrendo ataques massivos tanto da especulação imobiliária quanto da indiferença e da incompetência dos órgãos públicos responsáveis por sua preservação. A legislação existente não protege eficazmente tais construções porque ela não consegue fazer com que seus proprietários se responsabilizem pelos danos e degradação que elas sofrem; e tanto isso é verdadeiro que basta percorrer ruas como a 1º de Março, da Aurora e Velha, por exemplo, para nelas encontrar edificações abandonadas e correndo risco de ruírem a qualquer momento.
Percebe-se no dias presentes que forças do capital de grandes construtoras, passando por cima da memória urbana do Recife, se mobilizam tenazmente para pouco a pouco varrer do mapa os traços e os elementos da cidade antiga, substituindo-os por uma fisionomia renovada que dará a ela tão somente o aspecto de tantos outros centros urbanos do mundo, fazendo com que, na verdade, ela perca suas singularidades e as feições que são tão suas.
Continua nos faltando a capacidade de pôr o patrimônio histórico no centro de uma reflexão sobre o destino da sociedade em que vivemos, tal qual pretendeu fazê-lo Françoise Choay ao escrever seu estudo Alegoria do patrimônio, lançado em 1992 (a edição brasileira, com tradução de Luciano Vieira Machado, apareceu em 2001 numa parceria entre a Editora Estação Liberdade e a Editora UNESP, ambas de São Paulo). Daí por que o nosso rico acervo patrimonial mantém-se em existência quase sempre precária, à mercê da falta de recursos que promovam a sua conservação, do desinteresse dos proprietários para protegê-lo e da pressão da especulação imobiliária que quer destruí-lo.
Será que iremos ler nas páginas do próprio Diario de Pernambuco a notícia do desaparecimento do edifício que durante um século abrigou a sua sede?
Não resisti e decidi incluir neste artigo-denúncia alguns versos de um dos “Dez sonetos escuros” de Carlos Pena Filho, escritos entre 1953 e 1956, que eu li na bela edição do seu Livro geral, ilustrada por Helio Feijó e lançada pela Gráfica Vitória, de Olinda, em 1973. Ei-los aqui:
Humildemente envolvo-me na sombra
que veste, à noite, os cegos monumentos
isolados nas praças esquecidas
e vazios de luz e movimento.
De alguma forma lutemos para que o patrimônio histórico edificado do Recife não seja vitimado pela muito bem urdida ação de homens que querem ver a cidade mergulhada numa longuíssima noite de ignorância e indiferença para que, na escuridão plena, eles possam dilapidá-la feroz e vorazmente.
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