11 de fevereiro de 2016

A propósito do tapa-sexo e das estrelinhas coladas em mamilos

Por Clênio Sierra de Alcântara




Foto: Gisele Alquas   Todos nós sabemos do que a misoginia é capaz, mas não nos mobilizamos a contento a fim de banir esse grande mal que permeia o convívio social



Parece mesmo que nunca haverá de existir um remédio que consiga combater eficazmente e varrer da face da Terra a peste da misoginia. Leis não surtem o efeito esperado, campanhas de esclarecimento se mostram contraproducentes e discursos inflamados das feministas tão somente evidenciam o óbvio ululante: em que pese algum avanço, às mulheres, os homens sempre cuidam de destinar toda a vileza e brutalidade de que são capazes. Daí por que os estupros, os assassinatos ditos passionais, a proibição da prática do aborto, os espancamentos, o impedimento da obtenção de instrução escolar e a submissão quase animalesca. Por que será que não nos conformamos com o fato de que nunca seremos realmente melhores do que elas? Por que não aceitamos a verdade incontornável de que são a elas que devemos a nossa existência?

De dentro da minha casa desde muito cedo eu comecei a ver o desenho irregular das relações mantidas entre os homens e as mulheres e aquilo me assustava. No choro escondido ou exposto eu travava com o meu íntimo a tortura da indignação que não podia se rebelar. Eu via tudo dentro da minha casa e na da minha avó... [estou chorando agora, me desculpem]... Eu via tudo e na consciência da criança que eu era, aquelas cenas me perturbavam sobremaneira, de modo que chorar era a única forma de protesto que eu podia ou tinha coragem de revelar. Talvez seja em virtude disso que eu remorse tanto  quando me ponho a dizer palavras duras a minha mãe quando batemos boca... Nem se tivessem toda a força do mundo as mulheres seriam capazes de escapar das garras da nossa ferocidade, estupidez e tirania.

A coisificação da mulher é a misoginia elevada à enésima potência; é a certificação de que milênios de convívio entre homens e mulheres não conseguiram aplacar a nossa não aceitação de que são elas os seres que mais se parecem conosco; e que foram elas que garantiram a perpetuação de nossa espécie. Afirmamos e reafirmamos que temos mais músculos, que somos mais fortes e inteligentes, que determinamos o que deve ser cumprido, que estabelecemos as regras do jogo e que, até na hora do sexo, dominamos a situação porque ficamos por cima. Sentimos uma necessidade enorme de autoafirmação; e por isso coisificamos as mulheres para que se confirme a nossa superioridade e domínio sobre tudo o que existe; e por isso diuturnamente nos empenhamos com uma tenacidade espantosa para que elas não ousem ameaçar a nossa supremacia absoluta.

No sábado de Zé Pereira – dia 6 de fevereiro - a monstruosidade masculina deu mais um exemplo do quão cruel e insensível ela é. A modelo Ju Isen foi impedida pela diretoria da agremiação Unidos do Peruche, de São Paulo, de protestar a favor do impeachment de Dilma Rousseff usando um tapa-sexo com a imagem estilizada da presidente da República; e, contrariando isso, ela então resolveu, segundo se disse, manifestar-se contra a proibição rasgando a fantasia e mostrando os seios durante o desfile. O resultado disso foi que, sob a alegação de que o regulamento da Liga das Escolas de Samba de São Paulo proíbe qualquer tipo de manifestação política nos desfiles e que a infração, portanto, acarretaria penalidades para a Peruche, a modelo foi empurrada para fora do sambódromo: a imagem em que ela aparece jogada no chão é forte; e é o rebaixamento à condição de animal ao qual se destina maus tratos como se isso fosse algo normal e necessário. Segundo uma reportagem que apurou o caso, foi dito que ao exibir os seios – e ela faz isso costumeiramente em passeatas -, Ju Isen estava ofendendo as crianças e as outras pessoas que assistiam aos desfiles. Vejam a que ponto chegou essa gente com sua hipocrisia e desfaçatez. Quer dizer que seios “cobertos” apenas com estrelinhas nos mamilos pode? Quer dizer que seios nus e pintados também pode? Quer dizer que a Mulata Globeleza inteiramente nua pode e não ofende a integridade, os valores e os bons costumes da bendita família tradicional brasileira?



Foto: Jales Valquer    A modelo Ju Isen jogada para fora do sambódromo é uma das imagens mais marcantes do  Carnaval deste ano. Enquanto umas empunhavam "metralhadoras" que não as defendiam de nada, outras sofriam agressões de todo tipo como o beijo forçado


Por mais feminista que eu possa ser não consigo compactuar com essa estratégia – será que é uma estratégia? - à qual tantas mulheres recorrem ao ser cúmplices de seus algozes. Por que, podendo – digo podendo porque, bem sabemos, sob regimes teocráticos muçulmanos as mulheres não têm gosto, vontade ou qualquer outra coisa: elas existem apenas como algo que pode garantir uma satisfação sexual e a geração de um outro ser e só – se negar a não se despirem em desfiles carnavalescos, em programas de TV, em revistas, em filmes e etc., elas se põem justamente a querer tomar parte nisso? Por que as mulheres consomem produtos culturais que apelam para a vulgaridade mais abjeta e que tudo fazem para denegrir a imagem delas?
A banalidade das violências que a todo tempo se praticam contra as mulheres é muito, muitíssimo mais do que uma distinção entre o que é ser masculino e o que é ser feminino; é muito mais do que a confirmação do poder superior dos homens; é muito mais do que a aplicação de todo e qualquer preceito religioso; é muito mais, enfim, do que uma suposta ordem natural das coisas: é o domínio da infame covardia do mundo masculino a destroçar qualquer sentido de humanidade e racionalidade que nos é atribuído.

(Artigo pulicado também in O Monitor [Garanhuns], nº 183, fevereiro de 2016, Opinião, p. 2).

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