Fotos: do autor Vamos fazer a feira! |
Oitizeiro
(João Pessoa – PB). A ida a uma feira livre é uma dessas
experiências proporcionadas pelo convívio social pelas quais toda e qualquer
pessoa deveria passar. As feiras livres nordestinas podem até ter perdido certas
características que incorporavam – uma delas foi a coexistência harmoniosa e
simbiótica que mantinham com os mercados públicos, que estão pouco a pouco desaparecendo
dos cenários por elas ocupados; outra, que para mim também é bastante
significativa diz respeito ao fato de que aquela espécie de quase encantamento
que era ver a montagem e desmontagem de uma feira, quando os bancos de madeira
nos quais as mercadorias dos feirantes ficavam dispostas e, ao fim do dia, eram
levados para depósitos e/ou ruas adjacentes, deixando o pátio temporariamente
liberado para outros usos, é uma realidade que, lamentavelmente, tende a
desaparecer, porque, contando com o descaso e mesmo com o incentivo de agentes
da Municipalidade que, talvez, vejam nessa mudança uma tentativa de “modernização”
e “higienização” desse tipo de comércio, de alguma forma estimulam os feirantes
a montarem ocupação fixa dos espaços, por vezes construindo até “bancos” de
alvenaria -, mas a sua essência permanece conservada em costumes que
iniciativas com o propósito de estandardização, creio eu, nunca irão modificar,
como a espontaneidade de arrumar no chão mesmo os produtos postos à venda, a
exposição de carnes penduradas em ganchos sem qualquer refrigeração e o
comércio de animais vivos que ainda é muito acentuado nas feiras livres mais
tradicionais.
Dando continuidade à minha
pesquisa sobre feiras livres – pesquisa, na verdade, que é uma extensão do meu
gostar desse acontecimento social -, na manhã do dia 25 de outubro do ano passado, um
domingo ensolarado, eu deixei a pousada onde estava abrigado na área central da
capital paraibana e tomei um ônibus com destino à popularíssima e agitadíssima
feira do bairro do Oitizeiro. Deixem-me logo aqui fazer um esclarecimento:
oitizeiro é uma árvore que por vezes alcança grandes dimensões; no Recife de
décadas atrás foi bastante usada para ornamentar e sombrear ruas; e o oiti, seu
fruto, possui um cheiro muito agradável.
Animais comercializados vivos é outro traço característico das feiras livres nordestinas |
Antiquário em plena calçada? Coisas da feira de Oitizeiro |
Ao descer do coletivo e ver tão
grande concentração de pessoas eu fiquei espantado. É que, mesmo para mim, que
conheço várias feiras livres, a que se realiza no bairro do Oitizeiro é ela
própria um espanto, porque, considerando que esteja localizada numa capital de
Estado onde a urbanização acentuada é uma realidade indiscutível e a presença
de hipermercados e supermercados pontuam o cotidiano da população de maneira
muito intensa, ela apresenta aspecto e movimentação de feira de certas cidades
dos interiores do Nordeste, as quais têm no acontecimento semanal da feira – “fazer
a feira”, aliás, é um dito muito característico dos indivíduos que são familiarizados com esse tipo de comércio – um dos maiores quando não o maior
evento social do lugar. Desse modo, conhecer e percorrer a feira livre do
Oitizeiro foi, para mim, ao mesmo tempo, um grande e satisfatório exercício de
pesquisa social e de prazer pessoal.
Norma sanitária nenhuma tira dos frequentadores das feiras livres o gosto de comprar todo tipo de carne que é oferecido pelos comerciantes, mesmo sem estar refrigerada |
A entrada dessa feira livre –
o acesso principal, digamos assim – se dá pela movimentada Av. Cruz das Armas; mas o fato é que, a exemplo
de outras tantas, essa que se realiza no bairro do Oitizeiro se espalha, se
derrama por vários logradouros, como a Rua Manoel Guerra, a Travessa Tiradentes, Rua Comendador Maribondo e a Av. Ana Nery. Confirmando, infelizmente, uma tendência que se verifica
noutras praças, o pátio maior – digo isso porque há outro espaço onde me parece
que ocorre a remoção dos bancos e tabuleiros – no qual se realiza a feira é
tomada por bancos fixos confeccionados em madeira e cobertos com telhas do tipo
brasilit. Além deles existem uns cercados e uns estrados também de madeira; e
uns bancos erguidos com tijolos nos quais em grande parte são comercializados
diversos tipos de carnes. Nas ruas que completam a feira aparecem ainda bancos feitos
de madeira com cobertura de lona plástica.
Muito embora exista uma
clara divisão setorial para determinados produtos – roupas e calçados; frutas,
legumes e verduras; carnes e animais vivos; utensílios domésticos, ervas e
temperos; cd’s e dvd’s piratas; tubos e conexões; ferramentas e uma infinidade,
uma variedade imensa de coisas -, percebe-se aqui e ali uma mistura, uma,
digamos, “ocupação indevida” de espaço.
Na estrutura erguida em
alvenaria e que faz as vezes de um mercado público encontram-se vendedores de
peixes, mariscos e crustáceos. Noutra parte se instalaram vendedores de outras
mercadorias e também bares, restaurantes e lanchonetes.
Traço comum de muitas feiras
nordestinas, como eu sempre costumo destacar, a "feira do troca" ou do "troca-troca" também marca presença no Oitizeiro. Vi sendo negociados lá desde
aparelhos de vídeo-cassete e dvd-player até pneus de automóveis e botijões de
gás. Vendedores de cd’s e dvd’s ocupam vários bancos, algo que me impressionou
muito.
Numa ruela, como que se
escondendo da vigilância ambiental, homens negociam em dezenas de gaiolas
papa-capins, canários, galos-de-campina, calopsitas e outras aves. Cenas como as que eu assisti lá me cortam o coração, porque me incomoda ver pássaros presos.
Quando eu estava entrando na adolescência ganhei um curió; não passou nem um
mês, ele fugiu; e, desde de esse dia, eu disse a mim mesmo que nunca mais
haveria outra gaiola em minha casa. Eu soube que, dias antes da visita que fiz
à feira do Oitizeiro, a polícia apreendera muitos pássaros por ali.
Acheguei-me a uma lanchonete
a fim de tomar caldo de cana – o acompanhamento foi um bolo chamado baeta – e,
claro, puxar conversa com o atendente. Daniel Paulo, 41 anos, toca o negócio
junto com o pai Antônio – o patriarca chegou depois, quando eu já me despedia
do filho – há cerca de quatro anos. Contou-me que a feira abriga pelo menos um
banco de pernambucanos “que faz umas duas semanas que não vêm”, ele me disse,
apontando para o lugar onde os comerciantes habitualmente vinham negociando.
Perguntei-lhe como é que via a feira e ele de pronto respondeu: “Pra mim o
único problema dessa feira é o lixo”. Ele me disse ainda que, embora ao longo
da semana, uns e outros negociem suas mercadorias marcadamente lá na entrada
principal, o dia mesmo da feira, o dia em que a feira acontece para valer é no
domingo.
Banco de roupas usadas: de quase tudo se encontra na feira livre do Oitizeiro |
Despedi-me do atencioso
Daniel e continuei a explorar aquele território tumultuado e tão atrativo para
mim. Biscoitos e bolachas, perus e bodes, “bazar” de roupas usadas, um “antiquário”
arrumado numa calçada... Nossa, como me surpreendeu a feira livre do Oitizeiro.
E, dado o grande fluxo de pessoas que eu vi ali, suspeitei que não era apenas a
população de João Pessoa que para lá afluía. E minha suspeita se confirmou.
Flávio Pereira, 29 anos e pai de quatro filhos, me contou que todo domingo
deixa a cidade de Cabedelo, onde mora, e vai fazer compra no Oitizeiro, onde um
seu primo é feirante. E compensa Flávio? “E então! Eu venho e, mesmo pagando
passagem, compensa, porque as coisas aqui são mais baratas do que na feira de
Cabedelo”. Segundo ele, vai muita gente de outras cidades fazer a feira no
Oitizeiro.
Daniel Paulo e a dupla caldo de cana e bolo baeta |
Fretista com seu carrinho incrementado |
Curiosamente no mesmo
domingo em que eu fui conhecer essa feira, assisti, na pousada, ao programa Aconteceu na Câmara, transmitido pela TV
Câmara, no qual foi dito que três dias antes, na quinta-feira, a situação dos
mercados públicos da capital paraibana fora motivo de debates na Câmara
Municipal.
Fretistas à espera de algum freguês |
Flávio Pereira vai de Cabedelo para o bairro de Oitizeiro fazer a feira da semana |
Ainda percorrendo a feira
livre do bairro do Oitizeiro, uma feira que aguçou um pouco mais o meu faro de
pesquisador e o meu interesse e gosto por esse tipo de comércio, fiz pausa para
tomar água de coco enquanto aproveitava para lançar meu olhar curioso sobre
aquele cenário em plena agitação. Andei mais um bocadinho. Fiz sinal com a mão
direita e o carregador de frete que conduzia seu carrinho feito de madeira onde
foi escrito com tinta de cor preta a palavra “frete”,
prontamente parou para que a minha câmera o fotografasse naquele instante em
que o meu coração aprendia a gostar ainda mais da Paraíba.
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