2 de março de 2016

Feiras livres (12 )

Por Clênio Sierra de Alcântara


Fotos: do autor     Vamos fazer a feira!



Oitizeiro (João Pessoa – PB). A ida a uma feira livre é uma dessas experiências proporcionadas pelo convívio social pelas quais toda e qualquer pessoa deveria passar. As feiras livres nordestinas podem até ter perdido certas características que incorporavam – uma delas foi a coexistência harmoniosa e simbiótica que mantinham com os mercados públicos, que estão pouco a pouco desaparecendo dos cenários por elas ocupados; outra, que para mim também é bastante significativa diz respeito ao fato de que aquela espécie de quase encantamento que era ver a montagem e desmontagem de uma feira, quando os bancos de madeira nos quais as mercadorias dos feirantes ficavam dispostas e, ao fim do dia, eram levados para depósitos e/ou ruas adjacentes, deixando o pátio temporariamente liberado para outros usos, é uma realidade que, lamentavelmente, tende a desaparecer, porque, contando com o descaso e mesmo com o incentivo de agentes da Municipalidade que, talvez, vejam nessa mudança uma tentativa de “modernização” e “higienização” desse tipo de comércio, de alguma forma estimulam os feirantes a montarem ocupação fixa dos espaços, por vezes construindo até “bancos” de alvenaria -, mas a sua essência permanece conservada em costumes que iniciativas com o propósito de estandardização, creio eu, nunca irão modificar, como a espontaneidade de arrumar no chão mesmo os produtos postos à venda, a exposição de carnes penduradas em ganchos sem qualquer refrigeração e o comércio de animais vivos que ainda é muito acentuado nas feiras livres mais tradicionais.







As mercadorias arrumadas no chão são uma das marcas das feiras livres que muito me encanta, porque vejo nisso um traço  primitivo delas; isso remonta ao tempo em que não existiam bancos, tabuleiros ou quaisquer outros suportes para acomodar os produtos





Dando continuidade à minha pesquisa sobre feiras livres – pesquisa, na verdade, que é uma extensão do meu gostar desse acontecimento social -, na manhã do dia 25 de outubro do ano passado, um domingo ensolarado, eu deixei a pousada onde estava abrigado na área central da capital paraibana e tomei um ônibus com destino à popularíssima e agitadíssima feira do bairro do Oitizeiro. Deixem-me logo aqui fazer um esclarecimento: oitizeiro é uma árvore que por vezes alcança grandes dimensões; no Recife de décadas atrás foi bastante usada para ornamentar e sombrear ruas; e o oiti, seu fruto, possui um cheiro muito agradável.



Animais comercializados vivos é outro traço característico das feiras livres nordestinas







Antiquário em plena calçada? Coisas da feira de Oitizeiro


Ao descer do coletivo e ver tão grande concentração de pessoas eu fiquei espantado. É que, mesmo para mim, que conheço várias feiras livres, a que se realiza no bairro do Oitizeiro é ela própria um espanto, porque, considerando que esteja localizada numa capital de Estado onde a urbanização acentuada é uma realidade indiscutível e a presença de hipermercados e supermercados pontuam o cotidiano da população de maneira muito intensa, ela apresenta aspecto e movimentação de feira de certas cidades dos interiores do Nordeste, as quais têm no acontecimento semanal da feira – “fazer a feira”, aliás, é um dito muito característico dos indivíduos que são familiarizados com esse tipo de comércio – um dos maiores quando não o maior evento social do lugar. Desse modo, conhecer e percorrer a feira livre do Oitizeiro foi, para mim, ao mesmo tempo, um grande e satisfatório exercício de pesquisa social e de prazer pessoal.







Norma sanitária nenhuma tira dos frequentadores das feiras livres o gosto de comprar todo tipo de carne que é oferecido pelos comerciantes, mesmo sem estar refrigerada






A entrada dessa feira livre – o acesso principal, digamos assim – se dá pela movimentada Av. Cruz das Armas; mas o fato é que, a exemplo de outras tantas, essa que se realiza no bairro do Oitizeiro se espalha, se derrama por vários logradouros, como a Rua Manoel Guerra, a Travessa Tiradentes, Rua Comendador Maribondo e a Av. Ana Nery. Confirmando, infelizmente, uma tendência que se verifica noutras praças, o pátio maior – digo isso porque há outro espaço onde me parece que ocorre a remoção dos bancos e tabuleiros – no qual se realiza a feira é tomada por bancos fixos confeccionados em madeira e cobertos com telhas do tipo brasilit. Além deles existem uns cercados e uns estrados também de madeira; e uns bancos erguidos com tijolos nos quais em grande parte são comercializados diversos tipos de carnes. Nas ruas que completam a feira aparecem ainda bancos feitos de madeira com cobertura de lona plástica.













Muito embora exista uma clara divisão setorial para determinados produtos – roupas e calçados; frutas, legumes e verduras; carnes e animais vivos; utensílios domésticos, ervas e temperos; cd’s e dvd’s piratas; tubos e conexões; ferramentas e uma infinidade, uma variedade imensa de coisas -, percebe-se aqui e ali uma mistura, uma, digamos, “ocupação indevida” de espaço.





Na estrutura erguida em alvenaria e que faz as vezes de um mercado público encontram-se vendedores de peixes, mariscos e crustáceos. Noutra parte se instalaram vendedores de outras mercadorias e também bares, restaurantes e lanchonetes.








Traço comum de muitas feiras nordestinas, como eu sempre costumo destacar, a "feira do troca" ou do "troca-troca" também marca presença no Oitizeiro. Vi sendo negociados lá desde aparelhos de vídeo-cassete e dvd-player até pneus de automóveis e botijões de gás. Vendedores de cd’s e dvd’s ocupam vários bancos, algo que me impressionou muito.









Numa ruela, como que se escondendo da vigilância ambiental, homens negociam em dezenas de gaiolas papa-capins, canários, galos-de-campina, calopsitas e outras aves. Cenas como as que eu assisti lá me cortam o coração, porque me incomoda ver pássaros presos. Quando eu estava entrando na adolescência ganhei um curió; não passou nem um mês, ele fugiu; e, desde de esse dia, eu disse a mim mesmo que nunca mais haveria outra gaiola em minha casa. Eu soube que, dias antes da visita que fiz à feira do Oitizeiro, a polícia apreendera muitos pássaros por ali.








Acheguei-me a uma lanchonete a fim de tomar caldo de cana – o acompanhamento foi um bolo chamado baeta – e, claro, puxar conversa com o atendente. Daniel Paulo, 41 anos, toca o negócio junto com o pai Antônio – o patriarca chegou depois, quando eu já me despedia do filho – há cerca de quatro anos. Contou-me que a feira abriga pelo menos um banco de pernambucanos “que faz umas duas semanas que não vêm”, ele me disse, apontando para o lugar onde os comerciantes habitualmente vinham negociando. Perguntei-lhe como é que via a feira e ele de pronto respondeu: “Pra mim o único problema dessa feira é o lixo”. Ele me disse ainda que, embora ao longo da semana, uns e outros negociem suas mercadorias marcadamente lá na entrada principal, o dia mesmo da feira, o dia em que a feira acontece para valer é no domingo.








Banco de roupas usadas: de quase tudo se encontra na feira livre do Oitizeiro


Despedi-me do atencioso Daniel e continuei a explorar aquele território tumultuado e tão atrativo para mim. Biscoitos e bolachas, perus e bodes, “bazar” de roupas usadas, um “antiquário” arrumado numa calçada... Nossa, como me surpreendeu a feira livre do Oitizeiro. E, dado o grande fluxo de pessoas que eu vi ali, suspeitei que não era apenas a população de João Pessoa que para lá afluía. E minha suspeita se confirmou. Flávio Pereira, 29 anos e pai de quatro filhos, me contou que todo domingo deixa a cidade de Cabedelo, onde mora, e vai fazer compra no Oitizeiro, onde um seu primo é feirante. E compensa Flávio? “E então! Eu venho e, mesmo pagando passagem, compensa, porque as coisas aqui são mais baratas do que na feira de Cabedelo”. Segundo ele, vai muita gente de outras cidades fazer a feira no Oitizeiro.





Daniel Paulo e a dupla caldo de cana e bolo baeta












Fretista com seu carrinho incrementado





Curiosamente no mesmo domingo em que eu fui conhecer essa feira, assisti, na pousada, ao programa Aconteceu na Câmara, transmitido pela TV Câmara, no qual foi dito que três dias antes, na quinta-feira, a situação dos mercados públicos da capital paraibana fora motivo de debates na Câmara Municipal.
























Fretistas à espera de algum freguês



























 


Flávio Pereira vai de Cabedelo para o bairro de Oitizeiro fazer a feira da semana



Ainda percorrendo a feira livre do bairro do Oitizeiro, uma feira que aguçou um pouco mais o meu faro de pesquisador e o meu interesse e gosto por esse tipo de comércio, fiz pausa para tomar água de coco enquanto aproveitava para lançar meu olhar curioso sobre aquele cenário em plena agitação. Andei mais um bocadinho. Fiz sinal com a mão direita e o carregador de frete que conduzia seu carrinho feito de madeira onde foi escrito com tinta de cor  preta a palavra “frete”, prontamente parou para que a minha câmera o fotografasse naquele instante em que o meu coração aprendia a gostar ainda mais da Paraíba.

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