Por Clênio Sierra de Alcântara
Pra mudar a sociedade
do jeito que a gente quer
participando sem medo de ser mulher [...]
Pra mudar a sociedade (uma das canções da marcha)
A manhã ainda estava em seu
começo e soprando uma brisa agradavelmente fria, quando as primeiras mulheres
começaram a se reunir num campo de futebol de uma área da zona rural de Areial,
cidade que fica a cerca de 115 km de João Pessoa. E não eram só mulheres que
iam chegando a pé, em ônibus e carros em caravanas – eram também homens
dispostos a apoiá-las, aplaudi-las e dizer que estavam com elas para o que
desse e viesse. E elas eram muitas: dezenas, centenas talvez milhares. E vindas de
muitos lugares: Solânea, Esperança, Remígio, Alagoa Nova, Sumé, Campina
Grande... Todas dispostas a reclamar por seus direitos, a proferir palavras de
ordem, a cantar com alegria, a dizer que não merecem ser maltratadas e nem
assassinadas por seus companheiros.
Assim que chegou ao local Lia de Itamaracá foi saudar as mulheres que lá se encontravam |
Palco do evento já com o cenário da peça |
No dia 8 de março, Dia
Internacional da Mulher, aquele pedaço da Paraíba reuniu mulheres de todas as
faixas etárias: mulheres ainda meninas, adolescentes, jovens mães com bebês nos
braços, senhoras de idade avançada. Todas irmanadas e aproveitando aquele dia
especial para juntar forças e dizer em alta voz: “Seguiremos em marcha até
que sejamos todas livres”.
No enorme palco armado no
local uma peça foi encenada. O texto dizia das dificuldades pelas quais muitas
e muitas mulheres passam em seus lares com companheiros que não as respeitam,
as agridem e desprezam. Com um enredo bastante simples – um homem tem um
terrível pesadelo: na casa onde mora, sua mulher e sua filha são quem ditam as
regras: querem comida e roupa lavada e casa limpa e arrumada; a esposa não está
nem aí para as necessidades materiais e emocionais do marido; e é ela que deixa
de comprar o que está faltando na despensa para gastar o dinheiro tomando umas
e outras numa barraca. A estória vai nessa toada até que o homem desperta e vê
que tudo não passava de um sonho, digo, de um pesadelo -, a encenação prendeu a
atenção da plateia, parte da qual certamente se reconheceu naquela até certo
ponto divertida inversão de papéis. E caiu na gargalhada por causa de uma fala
da personagem que representava a esposa: “Homem é igual à vassoura: tirou o pau
não serve para nada”.
As pessoas iam chegando de muitos lugares para engrossar as fileiras da marcha |
A
multidão que a esta altura tomava a área do campo agitando bandeiras e
empunhando faixas e cartazes, ouviu, também atentamente, o breve relato sobre a vida de Margarida Maria Alves que foi assassinada no ano de 1983, em Alagoa
Grande, por atuar em defesa dos direitos dos trabalhadores rurais. É atribuída
à Margarida esta frase bastante contundente: “Melhor morrer na luta do que
morrer de fome”. Também foi lembrada a figura de Ana Alice, uma jovem
agricultora que militava no Polo da Borborema e que foi brutalmente assassinada
em 2012. E, no meio da multidão, mulheres exibiam uma faixa na qual clamavam por justiça na apuração do caso de Sandra Ferreira da Silva, que foi morta em dezembro do ano passado por um seu ex-namorado.
Sol a pino. O campo cada vez
mais cheio de gente. E eu circulando por entre aquelas pessoas, entusiasmado
por demais com a organização e mobilização de todos e de cada um que ali se encontrava
a fim de tomar parte na VII Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia.
A mim me pareceu tudo tão coerente e legítimo. E também tão necessário e
motivador. Uma realização da AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia, do
Sindicato dos Trabalhadores e das
Trabalhadoras Rurais de Areial e do Polo da Borborema, a marcha é uma das
várias ações voltadas para o empoderamento das mulheres agricultoras do
território da Borborema; a iniciativa já conseguiu que fossem construídas nove
mil cisternas de placas e mil e trezentas cisternas-calçadão, organizar
novecentas mulheres em fundos rotativos solidários e inseri-las como
participantes de bancos de sementes comunitários. Ou seja, o discurso
extrapola, vai além das questões das desigualdades entre homens e mulheres e da
violência que as acometem diariamente.
José Gabriel e Mikaela Cardoso: participando da marcha como promessa de um futuro melhor |
Foto: Mikaela Cardoso Eu e Lia de Itamaracá |
Entre as tantas e
dispostas senhorinhas que marcavam presença naquele pedaço de chão estava
Maria Vieira. Natural da cidade de Areia, ela tem 70 anos de idade; e embora
seja aposentada, essa devota do Padre Cícero leva uma vida de agricultora no
Sítio Lagoa Verde, em Esperança: “Comecei a trabalhar na agricultura com cinco
anos de idade e já tô com setenta. Planto feijão, planto batata, planto
macaxeira, planto feijão macassa, planto jerimum. Quando o ano dá a gente vende
na feira, quando não dá fica em casa mesmo”. Outra que me concedeu um breve
depoimento foi Alice dos Santos, uma senhora de 75 anos de idade, viúva, que
nasceu em Esperança e mora em Alagoa Nova; ela não trabalha e vive do benefício
deixado por seu esposo: “Nasci e me criei na agricultura. Plantava feijão,
batata inglesa. Meu velho nasceu e se criou na agricultura. Ele cortava cana,
cambitava, secava bagaço e fazia rapadura. Só trabalha nos engenho”. Devota de
Santa Luzia, Alice me contou ainda que participa, há mais de dez anos, de um
grupo de terceira idade. E recordou da criação severa que seu pai lhe oferecia:
“Meu pai não deixava estudar na escola. Até para cortar uma vassoura no mato os
irmão tinha que ir com a gente”. Maria Vieira já é uma veterana de participação
nas marchas; enquanto que Alice participava pela primeira vez.
Muito auspicioso ver que vários homens participando do evento |
O campo de futebol foi ficando cheio |
Ainda na concentração, Lia
de Itamaracá subiu no palco para uma animada no público. Em seguida, outra
cirandeira, Severina Baracho, soltou a voz apresentando a ciranda que compôs
especialmente para o evento:
Cidade de Areial, estado da
Paraíba
com a força das mulheres e a
nossa união
lutaremos pela terra com
amor à sua vida.
São mulheres de coragem e
muita disposição
somos contra violência
defendendo a nossa nação. Da esquerda para a direita as irmãs Severina e Dulce Baracho e Lia de Itamaracá |
Fogos de artifício deram o sinal.Olhei no relógio do telefone celular: eram
precisamente 10:38 h, quando, sob um sol de rachar a cabeça, a numerosa,
colorida e animada multidão começou efetivamente a se deslocar em marcha rumo
ao centro urbano de Areial. Tão bonito aquilo tudo. Parecia mais uma procissão
religiosa. E nós seguimos pelo asfalto. As pessoas nas portas, janelas e
varandas saudando o cortejo. E as músicas sendo entoadas. E as bandeiras dando
volta no ar. E tudo dizendo de nós – das mulheres especialmente, que eram as
donas do dia tal qual a luz vigorosa daquele sol abrasador – a alegria e
satisfação de estarmos todos ali, homens e mulheres, irmanados no propósito de
nos respeitarmos e nos compreendermos a fim de que a convivência harmoniosa fundamentalmente
inteirasse aquilo que fomos, aquilo que nos tornamos e aquilo que podemos vir a
ser.
Severina Baracho no momento em que entoava a ciranda feita especialmente para o evento |
Maria Vieira: mulher, agricultora e veterana nas marchas |
Margarida Alves, Ana Alice e Sandra Maria: a violência contra as mulheres é um mal que temos de enfrentar diariamente cobrando a punição dos responsáveis |
Alice dos Santos estava pela primeira vez participando da marcha |
Momento em que a marcha começou a deixar a zona rural rumo ao centro urbano de Areial |
No palco da praça de eventos a ciranda botou o povo para celebrar o dia especial |
A apoteose na praça de eventos, ao lado da Igreja Matriz de São
José, abrilhantou ainda mais aquela celebração. Lia de Itamaracá convocou a
todos para que dessem as mãos uns aos outros e formassem uma grande e fraternal
ciranda. Ah, que bom seria se a partir daquele dia um tipo de alegria como a que naquele pedaço da Paraíba se sentia, começasse a se espalhar pelo mundo.
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