30 de abril de 2016

Gilberto Freyre imagista e imagético

Clênio Sierra de Alcântara



Acervo da Fundação Gilberto Freyre      Senhor de múltiplos talentos, Gilberto Freyre revela em seus desenhos e pinturas muito do universo dos interesses pessoais que fizeram a sua glória intelectual




Em termos estritamente literários, imagismo é o recurso ao qual se recorre quando se julga que as palavras não são suficientes para descrever algo. Tendo sido deflagrado na Europa pelo crítico literário e poeta inglês Thomas Ernest Hulme, o movimento imagista chegou aos Estados Unidos influenciando Ezra Pound, Ford Madox Ford e Amy Lowell. Gilberto Freyre, o renomado autor de Casa-grande & senzala (1933), conheceu Mrs. Lowell na Universidade de Baylor e dela se tornou amigo; e veio ele próprio a se converter num imagista de boa cepa. Vejamos um exemplo do imagismo freyriano quando ele se pôs a descrever a porta da catedral da cidade de Guarda, em Portugal: “No exterior, a sua porta manuelina parece uma joia de mulher, perdida no corpo de um homem másculo” (In Aventura e rotina. 3ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 2001, p. 178).
Mas não é exatamente o Gilberto Freyre literariamente imagista que eu quero abordar neste artigo; e, sim, o Freyre que via a imagem propriamente visual como um elemento colaborador do entendimento de algo que foi descrito através das palavras. A introdução sobre o imagismo foi aqui posta para enfatizar o peso da imagem no fazer intelectual desse estudioso.

Sabe-se que ainda criança Gilberto Freyre teve aulas com o pintor Telles Júnior; e que o desenho se entranhou nele de tal maneira que durante certo tempo gente de sua família chegou a pensar que ele tivesse algum retardamento mental, porque ainda não aprendera a ler e escrever, embora houvesse desarnado nas aulas do Telles.

Os anos se passariam e o interesse de Freyre pelas artes plásticas, em geral, e pelo desenho e pela pintura, em particular, só aumentaria. Homem feito, pesquisador do passado colonial da sociedade brasileira com projeção e consagração internacional, o Mestre de Apipucos percorreu uma trajetória de estudos que, pode-se dizer, foi toda ela marcada por uma constante apreciação do imagético. Num ensaio de sua autoria intitulado “A pintura no Nordeste”, escrito especialmente para o Livro do Nordeste, por ele organizado em comemoração aos cem anos do Diario de Pernambuco e publicado em 1925, lamentou o fato de “não termos ainda produzido um pintor verdadeiramente nosso” que captasse o que estava próximo dos nossos olhos; por isso, “a paisagem e a vida do Nordeste brasileiro se acham apenas arranhadas na crosta: nos seus valores íntimos continuam virgens” (Livro do Nordeste. 2ª ed. Recife: Arquivo Público Estadual, 1979, p.126). Essa preocupação com o aspecto, digamos, telúrico dos cenários naturais seria uma constante em seus argumentos apreciativos e se tornará evidente no cuidado que ele manterá quando recorrer ao uso de imagens em seus trabalhos.

Vários dos livros de Gilberto Freyre, como o Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife (1934), Mucambos do Nordeste (1937), Nordeste (1937), Açúcar (1939), Assombrações do Recife velho (1955), Apipucos: que há num nome? (1983), entre outros, foram ilustrados por alguns dos mais talentosos artistas que dele foram tão próximos, a bem da verdade, grandes, admirados e queridos amigos seus, como Lula Cardoso Ayres, Luís Jardim, Manoel Bandeira – não confundi-lo com Manuel poeta -, Thomaz Santas Rosa, Elezier Xavier e Cícero Dias. Podemos considerar que as ilustrações nessas e noutras obras não tinham um caráter meramente decorativo; elas iam além, porque amiúde acabavam por adquirir um cunho documental, como é o caso da planta da casa-grande do Engenho Noruega elaborada por Cícero Dias a partir de sugestões do autor para Casa-grande & senzala; e o desenho de um sobrado patriarcal recifense do século XIX feito por Manoel Bandeira destinado ao livro Sobrados e mucambos (1936).

Não foi apenas em suas obras que Gilberto Freyre expôs o apreço que ele sentia pelo mundo das artes plásticas. Era ele também um homem de talento para o desenho e a pintura, um perspicaz crítico de arte e colecionador de obras de arte. Na colaboração que fez para a obra coletiva Gilberto Freyre: sua ciência, sua filosofia, sua arte, Mário Barata sentenciou: “Penso que as novas e as futuras gerações de artistas e de historiadores ou críticos de arte lerão, com o maior proveito, os livros de Gilberto Freyre. Sua lição fixou um dos polos mais fecundos e permanentes da dialética da cultura figurativa ou plástica do Brasil” (“Gilberto Freyre e as artes plásticas”. In Gilberto Amado et al. Gilberto Freyre: sua ciência, sua filosofia, sua arte. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1962, p. 92). Em 1973 telas de sua autoria foram expostas com grande burburinho na Galeria Nêga Fulô, no Recife, sendo vendidas rapidamente. Naquele mesmo ano outros trabalhos seus foram exibidos no Rio de Janeiro, na residência do casal José Maria do Carmo Nabuco, com apresentação de Alfredo Arinos de Melo Franco. No ano seguinte suas pinturas ganharam uma mostra em São Paulo, tendo sido quarenta telas vendidas. No dia 29 de abril de 1981 o Conselho Municipal de Cultura da Cidade do Recife lançou um álbum com desenhos dele. Dois anos depois, também no mês de abril, desenhos e pinturas de Freyre foram expostos na Galeria Metropolitana de Arte Aloísio Magalhães (atual Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães – MAMAM), na capital pernambucana; o mesmo local abrigou, em 1985, sua exposição “Desenhos a cor: figuras humanas e paisagens”. E em novembro de 1991, quatro anos após o seu falecimento, a Fundação Joaquim Nabuco promoveu na Galeria Vicente do Rego Monteiro a exposição “Gilberto Freyre: o colecionador e sua pinacoteca”, revelando ao grande público um rico acervo contendo pinturas como “Família de luto”, de Cícero Dias, “Autorretrato” e “Paisagem com casas”, de Pancetti, e “Paisagem de Cagnes”, de Joaquim do Rego Monteiro, que até hoje se encontra exposto na Casa-museu Gilberto Freyre e Magdalena Freyre, a Vivenda de Santo Antônio de Apipucos, onde o ilustre brasileiro passou a residir no começo da década de 1940, quando se casou com sua Madá.

Agora a Caixa Cultural do Bairro do Recife está também ela a expor parte do universo imagético do autor de Região e tradição (1941) – a exposição intitulada “Gilberto Freyre: vida, forma e cor” teve início no dia 23 de março e ficará em cartaz até 8 de maio -, contemplando não somente trabalhos de alguns dos artistas que acompanharam Freyre  durante toda a sua longa e movimentadíssima vida intelectual, bem como enfocando o próprio como pintor e ilustrador: cadernos de desenhos ilustrados para os netos, cartões de Natal com seu reconhecido horror aos papais-noéis e pinheiros, e algumas telas.

Tudo o que diz respeito à vida e à obra de Gilberto Freyre me interessa em profundidade e superfície; por isso, me dirigi ao centro cultural com aquela ânsia própria de quem busca a fonte de água para saciar a sua sede. E o que encontrei lá, sinceramente, foi mais do que um Gilberto Freyre “apaixonado da cor”, como certa feita o descreveu José Lins do Rego. Encontrei um Freyre que fez uso de um traço por vezes ingênuo e quase infantil e com acentuado colorido, revelando uma aguda percepção da realidade para registrar a matéria mesma do tanto que encontramos descrito nas páginas de seus livros: fachadas de edifícios, brincadeiras de criança, passeios de bicicleta, paisagens, figuras humanas. É um Gilberto Freyre senhor e dono não apenas de um reconhecido talento para o desenho e para a pintura, mas também um Gilberto Freyre dominado pelo que de lúdico – e não simplesmente documental – e instigador da alegria pode conter uma folha de papel ou uma tela. As imagens que vemos ali não são apenas resultado de vagares pictóricos de um intelectual de verdadeira e aclamada erudição; elas nos comunicam que, para além das palavras, havia em Freyre uma necessidade premente de também apreender o vasto mundo que sua visão alcançava por meio de lápis de cor e pincéis. A produção imagética do autor de Novo mundo nos trópicos (1971) nos deixa ver claramente que, tudo, completamente tudo da vida lhe interessava: o urbano e o rural, a casa-grande e o mucambo, o erudito e o popular, o açúcar e o sal; a vida pulsante, apolínea e dionisíaca, com lascívia, ludicidade, recato, forma e cor.

Como a exposição de Gilberto Freyre é também uma comunhão de talentos, eu quero registrar aqui o trecho de uma carta de Lula Cardoso Ayres, escrita em dezembro de 1950, que integra o acervo exposto, e que fez com que eu deixasse a Caixa Cultural carregando comigo algo da essência daquilo que chamam de uma grande satisfação: “Meu caro Gilberto. Depois de tantas desilusões políticas, venho lhe dar o meu abraço de eterna solidariedade. Estarei sempre onde vc. estiver”.

                                                  

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