Acervo da Fundação Gilberto Freyre Senhor de múltiplos talentos, Gilberto Freyre revela em seus desenhos e pinturas muito do universo dos interesses pessoais que fizeram a sua glória intelectual |
Em termos estritamente
literários, imagismo é o recurso ao qual se recorre quando se julga que as
palavras não são suficientes para descrever algo. Tendo sido deflagrado na
Europa pelo crítico literário e poeta inglês Thomas Ernest Hulme, o movimento
imagista chegou aos Estados Unidos influenciando Ezra Pound, Ford Madox Ford e
Amy Lowell. Gilberto Freyre, o renomado autor de Casa-grande & senzala (1933), conheceu Mrs. Lowell na
Universidade de Baylor e dela se tornou amigo; e veio ele próprio a se
converter num imagista de boa cepa. Vejamos um exemplo do imagismo freyriano
quando ele se pôs a descrever a porta da catedral da cidade de Guarda, em
Portugal: “No exterior, a sua porta manuelina parece uma joia de mulher,
perdida no corpo de um homem másculo” (In Aventura
e rotina. 3ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 2001, p. 178).
Mas não é exatamente o Gilberto
Freyre literariamente imagista que eu quero abordar neste artigo; e, sim, o
Freyre que via a imagem propriamente visual como um elemento colaborador do entendimento
de algo que foi descrito através das palavras. A introdução sobre o imagismo foi
aqui posta para enfatizar o peso da imagem no fazer intelectual desse
estudioso.
Sabe-se que ainda criança
Gilberto Freyre teve aulas com o pintor Telles Júnior; e que o desenho se
entranhou nele de tal maneira que durante certo tempo gente de sua família
chegou a pensar que ele tivesse algum retardamento mental, porque ainda não
aprendera a ler e escrever, embora houvesse desarnado nas aulas do Telles.
Os anos se passariam e o
interesse de Freyre pelas artes plásticas, em geral, e pelo desenho e pela
pintura, em particular, só aumentaria. Homem feito, pesquisador do passado
colonial da sociedade brasileira com projeção e consagração internacional, o
Mestre de Apipucos percorreu uma trajetória de estudos que, pode-se dizer, foi toda
ela marcada por uma constante apreciação do imagético. Num ensaio de sua
autoria intitulado “A pintura no Nordeste”, escrito especialmente para o Livro do Nordeste, por ele organizado em
comemoração aos cem anos do Diario de
Pernambuco e publicado em 1925, lamentou o fato de “não termos ainda
produzido um pintor verdadeiramente nosso” que captasse o que estava próximo
dos nossos olhos; por isso, “a paisagem e a vida do Nordeste brasileiro se
acham apenas arranhadas na crosta: nos seus valores íntimos continuam virgens”
(Livro do Nordeste. 2ª ed. Recife:
Arquivo Público Estadual, 1979, p.126). Essa preocupação com o aspecto, digamos,
telúrico dos cenários naturais seria uma constante em seus argumentos
apreciativos e se tornará evidente no cuidado que ele manterá quando recorrer
ao uso de imagens em seus trabalhos.
Vários dos livros de
Gilberto Freyre, como o Guia prático,
histórico e sentimental da cidade do Recife (1934), Mucambos do Nordeste (1937), Nordeste
(1937), Açúcar (1939), Assombrações do Recife velho (1955), Apipucos: que há num nome? (1983), entre
outros, foram ilustrados por alguns dos mais talentosos artistas que dele foram
tão próximos, a bem da verdade, grandes, admirados e queridos amigos seus, como
Lula Cardoso Ayres, Luís Jardim, Manoel Bandeira – não confundi-lo com Manuel
poeta -, Thomaz Santas Rosa, Elezier Xavier e Cícero Dias. Podemos considerar
que as ilustrações nessas e noutras obras não tinham um caráter meramente
decorativo; elas iam além, porque amiúde acabavam por adquirir um cunho documental,
como é o caso da planta da casa-grande do Engenho Noruega elaborada por Cícero
Dias a partir de sugestões do autor para Casa-grande
& senzala; e o desenho de um sobrado patriarcal recifense do século XIX
feito por Manoel Bandeira destinado ao livro Sobrados e mucambos (1936).
Não foi apenas em suas obras
que Gilberto Freyre expôs o apreço que ele sentia pelo mundo das artes
plásticas. Era ele também um homem de talento para o desenho e a pintura, um
perspicaz crítico de arte e colecionador de obras de arte. Na colaboração que
fez para a obra coletiva Gilberto Freyre:
sua ciência, sua filosofia, sua arte, Mário Barata sentenciou: “Penso que
as novas e as futuras gerações de artistas e de historiadores ou críticos de
arte lerão, com o maior proveito, os livros de Gilberto Freyre. Sua lição fixou
um dos polos mais fecundos e permanentes da dialética da cultura figurativa ou
plástica do Brasil” (“Gilberto Freyre e as artes plásticas”. In Gilberto Amado et
al. Gilberto Freyre: sua ciência, sua
filosofia, sua arte. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1962,
p. 92). Em 1973 telas de sua autoria foram expostas com grande burburinho na
Galeria Nêga Fulô, no Recife, sendo vendidas rapidamente. Naquele mesmo ano
outros trabalhos seus foram exibidos no Rio de Janeiro, na residência do casal
José Maria do Carmo Nabuco, com apresentação de Alfredo Arinos de Melo Franco. No
ano seguinte suas pinturas ganharam uma mostra em São Paulo, tendo sido
quarenta telas vendidas. No dia 29 de abril de 1981 o Conselho Municipal de
Cultura da Cidade do Recife lançou um álbum com desenhos dele. Dois anos
depois, também no mês de abril, desenhos e pinturas de Freyre foram expostos na
Galeria Metropolitana de Arte Aloísio Magalhães (atual Museu de Arte Moderna
Aloísio Magalhães – MAMAM), na capital pernambucana; o mesmo local abrigou, em
1985, sua exposição “Desenhos a cor: figuras humanas e paisagens”. E em
novembro de 1991, quatro anos após o seu falecimento, a Fundação Joaquim Nabuco
promoveu na Galeria Vicente do Rego Monteiro a exposição “Gilberto Freyre: o
colecionador e sua pinacoteca”, revelando ao grande público um rico acervo
contendo pinturas como “Família de luto”, de Cícero Dias, “Autorretrato” e “Paisagem
com casas”, de Pancetti, e “Paisagem de Cagnes”, de Joaquim do Rego Monteiro, que
até hoje se encontra exposto na Casa-museu Gilberto Freyre e Magdalena Freyre,
a Vivenda de Santo Antônio de Apipucos, onde o ilustre brasileiro passou a residir
no começo da década de 1940, quando se casou com sua Madá.
Agora a Caixa Cultural do
Bairro do Recife está também ela a expor parte do universo imagético do autor
de Região e tradição (1941) – a exposição
intitulada “Gilberto Freyre: vida, forma e cor” teve início no dia 23 de março
e ficará em cartaz até 8 de maio -, contemplando não somente trabalhos de
alguns dos artistas que acompanharam Freyre
durante toda a sua longa e movimentadíssima vida intelectual, bem como
enfocando o próprio como pintor e ilustrador: cadernos de desenhos ilustrados
para os netos, cartões de Natal com seu reconhecido horror aos papais-noéis e
pinheiros, e algumas telas.
Tudo o que diz respeito à
vida e à obra de Gilberto Freyre me interessa em profundidade e superfície; por
isso, me dirigi ao centro cultural com aquela ânsia própria de quem busca a
fonte de água para saciar a sua sede. E o que encontrei lá, sinceramente, foi
mais do que um Gilberto Freyre “apaixonado da cor”, como certa feita o
descreveu José Lins do Rego. Encontrei um Freyre que fez uso de um traço por
vezes ingênuo e quase infantil e com acentuado colorido, revelando uma aguda
percepção da realidade para registrar a matéria mesma do tanto que encontramos
descrito nas páginas de seus livros: fachadas de edifícios, brincadeiras de
criança, passeios de bicicleta, paisagens, figuras humanas. É um Gilberto
Freyre senhor e dono não apenas de um reconhecido talento para o desenho e para
a pintura, mas também um Gilberto Freyre dominado pelo que de lúdico – e não
simplesmente documental – e instigador da alegria pode conter uma folha de
papel ou uma tela. As imagens que vemos ali não são apenas resultado de vagares
pictóricos de um intelectual de verdadeira e aclamada erudição; elas nos
comunicam que, para além das palavras, havia em Freyre uma necessidade premente
de também apreender o vasto mundo que sua visão alcançava por meio de lápis de
cor e pincéis. A produção imagética do autor de Novo mundo nos trópicos (1971) nos deixa ver claramente que, tudo,
completamente tudo da vida lhe interessava: o urbano e o rural, a casa-grande e
o mucambo, o erudito e o popular, o açúcar e o sal; a vida pulsante, apolínea e
dionisíaca, com lascívia, ludicidade, recato, forma e cor.
Como a exposição de Gilberto
Freyre é também uma comunhão de talentos, eu quero registrar aqui o trecho de
uma carta de Lula Cardoso Ayres, escrita em dezembro de 1950, que integra o
acervo exposto, e que fez com que eu deixasse a Caixa Cultural carregando
comigo algo da essência daquilo que chamam de uma grande satisfação: “Meu caro
Gilberto. Depois de tantas desilusões políticas, venho lhe dar o meu abraço de
eterna solidariedade. Estarei sempre onde vc. estiver”.
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