6 de maio de 2016

Chega de autopatrulhamento!

Por Clênio Sierra de Alcântara







Libertos das amarras das convenções e imposições sociais podemos dar à nossa vida a direção que nos for verdadeiramente satisfatória e favorável


Continuo mantendo o apoio firme àquela disposição de se dizer o que se pensa ou o que se quer em determinado momento ou circunstância. Dizer é um ato de coragem. Falar é um ato de coragem. E eu admiro quem se põe a enfrentar velhas concepções de moralidade, falsos pudores, preconceitos de todo o tipo, imposições de crenças e gostos e tudo o mais que for incompatível com o eu de cada um.

Viver é indiscutivelmente um embate diário contra muitas coisas. Contra pessoas que praticam maldades que podem nos ceifar a vida. Contra os atropelos do trânsito caótico. Contra as doenças. Contra a desumanidade de muitos. Contra a força bruta das instituições que querem nos padronizar. E contra até mesmo os pensamentos de autodestruição que nos acometem. A postura afirmativa não pode ser tomada – como frequentemente é – como uma ação impensada. É claro que falar e escrever requer um filtro de nós mesmos, porque o que é dito e escrito pode trazer inúmeras consequências positivas ou negativas. Está claro que nesse exercício de afirmação cada um de nós deve ter plena consciência de seus atos. Agora, a meu ver, essa prática reflexiva não deve ser tolhida por uma, digamos, visão distorcida da realidade e nem por um temor generalizado como se estivéssemos a todo momento vigiados por uma outra consciência que não a nossa.

A mim me causa certo pavor simplesmente imaginar que algum pensamento meu ou uma ideia seja reprimida por certa perturbação da minha própria consciência, motivada por um temor injustificado, como se alguém ou algo estivesse a vigiar os meus passos diuturnamente. Quando nos deixamos ser perseguidos pela autocensura e pela autorreprovação, tolhendo nossas ações de maneira que limitemos consideravelmente o raio de alcance daquilo que pretendemos dizer – seja pela escrita, seja pela fala – tendemos não só a diminuir de maneira drástica o encadeamento de nossos pensamentos, como também passamos a considerar que estamos metidos numa prisão que nos amesquinha, desencoraja e embrutece, porque nos aniquila ao ponto de nos enxergarmos como meros autômatos cumpridores de tarefas, que não precisam pensar para existirem. Mas acontece que eu paulofreireanamente me eduquei para a prática da liberdade e da autonomia do pensar e, em virtude disso, não permito que ponham cabrestos em mim.

Procuro não me furtar de assumir e externar minhas convicções e anseios; repeti isso aqui algumas vezes, em outras ocasiões. Mas eu, por outro lado, não faço pregação da obrigatoriedade da fala, da revelação, do esclarecimento e da opinião seja sobre o que for. Não compartilho a ideia de que, mesmo vivendo num tempo em que a superexposição pessoal parece ser uma imposição, uma necessidade social total e não somente de quem acessa a internet e as chamadas redes sociais, tenhamos que nos mostrar de corpo inteiro nos universos real e principalmente virtual, escrevendo ou postando fotos, áudios e vídeos. Por isso, o que tomo como autopatrulhamento é justamente a quase paranoia de quem se julga na obrigação de dizer de si para os outros. Ora, se eu tiver que me sujeitar a uma realidade dessas para única e exclusivamente me sentir pertencente a um grupo, a uma turma ou ao que seja, estejam certos, eu não entrarei. Eu quero fazer se eu tiver vontade, se eu sentir necessidade, se eu me interessar, e não porque fulaninho e fulaninha estão ali fazendo e acontecendo.

Vou continuar seguindo o meu caminho e construindo a minha história de vida, empenhado em preservar a integridade da minha liberdade de ir e vir e fundamentalmente de pensar. Não me vejo na obrigação de dizer de mim, de me explicar, de me filiar, de relacionar os homens e as mulheres que me amaram, de deixar marcados meus itinerários, de mencionar a cor da qual eu mais gosto, de apontar o espaço vazio no meu registro de nascimento, de fazer um rol de minhas fraquezas, de contar meus fracassos, de iluminar minhas alegrias, de revelar a dimensão dos meus desejos e de sublinhar os nomes de todos aqueles que tudo fizeram para que eu deles me desprendesse. Não vou sair da minha posição de contra-ataque porque em meio às maravilhas que estão à nossa volta, se encontra também a obstinada perseverança da maldade, essa senhora que fará com que nos deparemos, até o fim dos nossos dias, com gente ferreamente determinada em não conviver com deficientes físicos, com negros e nem com homossexuais porque para elas só assim o mundo ficará perfeito e todas as pessoas serão felizes.

Não vou sair da minha posição de conta-ataque. Eu também sei ser duro, sei dizer não, sei me calar e sei fazer ouvidos surdos.


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