Por Clênio Sierra de Alcântara
Foto: divulgação Como podemos lutar pela preservação de prédios de reconhecido valor histórico para as nossas cidades? Será que é legítimo cooperar com a destruição? |
Numa demonstração inequívoca
de insatisfação contra o império da destruição da memória edificada do Recife,
que há anos lançou seus tentáculos de aço sobre diversos bairros da capital
pernambucana, membros da sociedade civil protestaram veementemente contra o
início da demolição do Edifício Caiçara, localizado na beira-mar da Zona Sul,
seguramente o metro quadrado mais caro da cidade. Estávamos então no segundo
semestre de 2013. E a luta de todos que se empenhavam para preservar a
edificação remanescente da década de 1930 numa área densamente ocupada por
prédios de alto padrão, era, também, uma tentativa de discutir que tipo de
desenho urbano estava sendo proposto para o município.
A lógica da especulação imobiliária,
como se sabe, não se atém às questões da memória urbana e aos valores
preservacionistas; ela atende única e exclusivamente às demandas de certos
segmentos da sociedade que igualmente não aprenderam e nem querem aprender a
conjugação do verbo preservar, muito satisfeitos que estão com as flexões do
consumir. De modo que, qualquer ação visando à preservação de alguma edificação
e/ou de uma paisagem de caráter histórico é tomada por tais segmentos como algo
não somente passadista bem como contrário ao progresso do lugar em que elas se
encontram. É como se os que buscam conservar a identidade da cidade fôssemos
uns inimigos de seu crescimento e/ou enriquecimento material e, de maneira
caprichosa, nos empenhássemos em imobilizar a sua melhoria e aperfeiçoamento.
Historicamente algumas das
mais antigas cidades do Brasil amargaram intervenções que destruíram uma
parcela bastante significativa de seu patrimônio histórico edificado. Foi assim
no Rio de Janeiro, onde não se poupou sequer o Morro do Castelo, onde se diz
que a cidade efetivamente começou. Foi assim em Salvador, onde vários
administradores buscaram transformá-la num burgo triste pondo abaixo e/ou
alterando a fisionomia de várias edificações. Foi assim no Recife, onde bairros
como Santo Antônio, São José e Recife Antigo perderam centenas de prédios dos
períodos Colonial e Imperial sobretudo para adequar essas áreas às necessidades
de circulação dos veículos automotivos.
Infelizmente, no Brasil, em
que pesem os exemplos de destruição ocorridos no passado e a ampla rede de
proteção ao patrimônio formada pela própria ação do Estado tanto em âmbito
federal como estadual e municipal, a memória nacional não deixou de estar
inteiramente a salvo das constantes ameaças que se lançam sobre ela sob as mais
diversas formas: o furto puro e simples: o vandalismo; a falta de manutenção e
restauro; o descaso do poder público; a pressão do poder econômico para fazer
retroceder os instrumentos legais de proteção.
No último dia 7 de abril uma
grande construtora reiniciou os trabalhos de demolição do Edifício Caiçara, pondo
no chão o que estivera sob intervenção judicial. Outra vez um pedaço da memória
urbana do Recife sucumbiu ao peso dos interesses imobiliários; e a cidade
perdeu novamente um naco do seu passado construtivo. Revendo as fotografias da
ocasião em que eu visitei o prédio, me peguei a pensar no tanto que o Recife
ainda vai perder do seu patrimônio edificado enquanto seus governantes se alinharem
e se submeterem aos interesses privados e não pensarem no bem comum,
permitindo, autorizando e assinando pareceres que vêm paulatinamente
favorecendo uma vaga destruidora tenaz e eficazmente empenhada em tirar dele as
suas feições mais pitorescas e características, fazendo dessa cidade um mero
arremedo de uma outra qualquer.
Lendo hoje o noticiário
tomei conhecimento de que o filme “Aquarius”, do diretor Kleber Mendonça Filho,
vai concorrer à Palma de Ouro do Festival de Cannes; e mais, que ele tomou como
inspiração para o roteiro o caso envolvendo o Edifício Caiçara, o que me
entusiasmou sobremaneira. Quem sabe esse longa-metragem não desperte uma
consciência coletiva de preservação da nossa memória, de maneira que se consiga
ver nascer no Recife uma corrente de maior resistência contra o aparato, ao que
parece, institucionalizado que não cessa de autorizar a sua destruição?
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