Somente no ano passado o
serviço nacional que recebe denúncias de casos de estupro, o Ligue 180,
registrou 2.731 ocorrências. É claro que isso não é um número que corresponda à
realidade, porque, movidas por medo dos seus agressores e principalmente
vergonha, mulheres – e homens também – que sofrem esse tipo de violência não
fazem qualquer registro policial – isso, evidentemente, quando existem
delegacias onde as vítimas moram -; é a mesma estratégia de sobrevivência de
mulheres que comem o pão que o diabo amassou nas mãos de seus maridos e
companheiros e não os denunciam e muitas vezes acabam sendo assassinadas por
eles.
Exatamente um ano depois
daquele episódio medonho e covarde ocorrido no estado do
Piauí, eis que outra vez tomamos conhecimento de um novo e chocante caso de
estupro coletivo, desta feita havido no Rio de Janeiro, o lugar onde a
criminalidade desde há muito tripudia e “tira onda”, como se diz na gíria,
contra o império da lei. Pelo que foi apurado até o momento, uma adolescente de
apenas dezesseis anos estava em um encontro íntimo com um rapaz, seu namorado,
no último dia 21 de maio, e, depois, segundo a vítima falou em depoimento, ela
só se recorda que acordou, dopada, noutro lugar em meio a um grupo de homens
fortemente armados. Os mais de trinta delinquentes que a estupraram ainda
tiveram a desfaçatez e o atrevimento de postar em vídeo na internet a ação de bestialidade
coletiva por eles praticada, certamente confiantes na impunidade e/ou nas penas
brandas que lhes seriam imputadas se eles fossem pegos pela polícia.
Tivéssemos instrumentos
legais que realmente punissem com severidade crimes hediondos, em geral, e os
casos de violência sexual, em particular, talvez, os números de vítimas dessas
ações não fossem tão elevados. Castrar indivíduos que cometem tais abusos é
agir com desumanidade para com eles? Não, meu caro leitor, porque, a meu ver,
desumano é o sujeito que pratica esse tipo de violência sem se importar com o
destroçamento que provoca na vida da vítima e nas dos seus entes queridos,
porque junto com a vergonha e o medo, vem a permanência do trauma pela
brutalidade sofrida, a insegurança, a incompreensão por tudo o que aconteceu e
até mesmo o indevido sentimento de culpa.
Por mais que o poder público
alardeie aqui e ali que existe todo um aparato montado pelo Estado com vistas a
proteger as nossas mulheres, o fato incontestável é que elas vivem sob ameaças
constantes e estão seriamente desprotegidas, como comprovam os dados que são
reiteradamente divulgados pela imprensa. Às mulheres a nossa sociedade ainda
destina um tratamento marcado substancialmente pelo entendimento de que elas
são seres inferiores em todos os sentidos aos homens e, por isso, tudo o que
eles fizerem contra elas está plenamente justificado até mesmo pela própria
natureza – e não só por certos livros que se têm por sagrados. Na terra da “Mulata
Globeleza” ser mulher é fundamentalmente lutar uma luta desigual contra as
bases de um mundo masculino que constantemente as coisifica, maltrata,
inferioriza e as classifica, quando muito, como cidadãos de segunda ou terceira
classe.
Enquanto grupos se
posicionam para propor que sejam discutidas nas escolas, por exemplo, questões
de gênero e de respeito à diversidade de comportamento sexual, logo aparecem os
defensores daquilo que eles próprios chamam de “família tradicional”, que nada
mais é do que a consolidação e permanência em nossa sociedade da prevalência do
espírito patriarcal e machista, no qual as mulheres desempenham unicamente o
papel de completa e total submissão aos ditames dos homens da casa. O machismo
não admite qualquer mudança nesse status
quo para que permaneçam intactos os alicerces dessa falocracia e assim eles
possam continuar na posição de mando.
Pensarmos que o processo
civilizatório que nos fez chegar até o estágio científico, tecnológico e
cultural ao qual chegamos não conseguiu domar por completo os nossos instintos
mais primitivos é, de certa forma, admitirmos que não temos pleno domínio de
nossa consciência e nem dos nossos atos e que somos mesmo apenas animais com
algumas habilidades específicas que nos diferenciam dos demais. É como se no
íntimo nosso mais profundo, a essência brutal da barbárie permanecesse o tempo
todo ali, à espera para vir à tona e provocar toda a sorte de males.
Sexismo, feminicídio,
misoginia são nomes diferentes para ações e/ou comportamentos que ao fim e ao
cabo têm o mesmo propósito: manter as mulheres sob cabrestos curtos e
sufocantes para que elas não ousem sequer gritar, quanto mais espernear.
Num tempo em que “empoderamento”
é a palavra de ordem entre as mulheres, o caso de estupro coletivo ocorrido na
semana passada no Rio de Janeiro faz ver que os homens estamos cruelmente
empenhados em mantê-las sob a pressão infame de nossas vontades, porque pensamos
que poder, mesmo, só nós é que temos.
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