28 de maio de 2016

Estupro é barbárie

Por Clênio Sierra Alcântara






Foto: internet      Arraigado na sociedade brasileira o pensamento machista e misógino tem destinado às mulheres toda sorte de males praticados por homens que pararam em algum estágio do processo civilizatório. Atribuir às próprias mulheres responsabilidade pelos casos de estupro de que são vítimas é o mesmo que dizer que elas são culpadas por simplesmente existirem



Somente no ano passado o serviço nacional que recebe denúncias de casos de estupro, o Ligue 180, registrou 2.731 ocorrências. É claro que isso não é um número que corresponda à realidade, porque, movidas por medo dos seus agressores e principalmente vergonha, mulheres – e homens também – que sofrem esse tipo de violência não fazem qualquer registro policial – isso, evidentemente, quando existem delegacias onde as vítimas moram -; é a mesma estratégia de sobrevivência de mulheres que comem o pão que o diabo amassou nas mãos de seus maridos e companheiros e não os denunciam e muitas vezes acabam sendo assassinadas por eles.

Exatamente um ano depois daquele episódio medonho e covarde ocorrido no estado do Piauí, eis que outra vez tomamos conhecimento de um novo e chocante caso de estupro coletivo, desta feita havido no Rio de Janeiro, o lugar onde a criminalidade desde há muito tripudia e “tira onda”, como se diz na gíria, contra o império da lei. Pelo que foi apurado até o momento, uma adolescente de apenas dezesseis anos estava em um encontro íntimo com um rapaz, seu namorado, no último dia 21 de maio, e, depois, segundo a vítima falou em depoimento, ela só se recorda que acordou, dopada, noutro lugar em meio a um grupo de homens fortemente armados. Os mais de trinta delinquentes que a estupraram ainda tiveram a desfaçatez e o atrevimento de postar em vídeo na internet a ação de bestialidade coletiva por eles praticada, certamente confiantes na impunidade e/ou nas penas brandas que lhes seriam imputadas se eles fossem pegos pela polícia.

Tivéssemos instrumentos legais que realmente punissem com severidade crimes hediondos, em geral, e os casos de violência sexual, em particular, talvez, os números de vítimas dessas ações não fossem tão elevados. Castrar indivíduos que cometem tais abusos é agir com desumanidade para com eles? Não, meu caro leitor, porque, a meu ver, desumano é o sujeito que pratica esse tipo de violência sem se importar com o destroçamento que provoca na vida da vítima e nas dos seus entes queridos, porque junto com a vergonha e o medo, vem a permanência do trauma pela brutalidade sofrida, a insegurança, a incompreensão por tudo o que aconteceu e até mesmo o indevido sentimento de culpa.

Por mais que o poder público alardeie aqui e ali que existe todo um aparato montado pelo Estado com vistas a proteger as nossas mulheres, o fato incontestável é que elas vivem sob ameaças constantes e estão seriamente desprotegidas, como comprovam os dados que são reiteradamente divulgados pela imprensa. Às mulheres a nossa sociedade ainda destina um tratamento marcado substancialmente pelo entendimento de que elas são seres inferiores em todos os sentidos aos homens e, por isso, tudo o que eles fizerem contra elas está plenamente justificado até mesmo pela própria natureza – e não só por certos livros que se têm por sagrados. Na terra da “Mulata Globeleza” ser mulher é fundamentalmente lutar uma luta desigual contra as bases de um mundo masculino que constantemente as coisifica, maltrata, inferioriza e as classifica, quando muito, como cidadãos de segunda ou terceira classe.

Enquanto grupos se posicionam para propor que sejam discutidas nas escolas, por exemplo, questões de gênero e de respeito à diversidade de comportamento sexual, logo aparecem os defensores daquilo que eles próprios chamam de “família tradicional”, que nada mais é do que a consolidação e permanência em nossa sociedade da prevalência do espírito patriarcal e machista, no qual as mulheres desempenham unicamente o papel de completa e total submissão aos ditames dos homens da casa. O machismo não admite qualquer mudança nesse status quo para que permaneçam intactos os alicerces dessa falocracia e assim eles possam continuar na posição de mando.

Pensarmos que o processo civilizatório que nos fez chegar até o estágio científico, tecnológico e cultural ao qual chegamos não conseguiu domar por completo os nossos instintos mais primitivos é, de certa forma, admitirmos que não temos pleno domínio de nossa consciência e nem dos nossos atos e que somos mesmo apenas animais com algumas habilidades específicas que nos diferenciam dos demais. É como se no íntimo nosso mais profundo, a essência brutal da barbárie permanecesse o tempo todo ali, à espera para vir à tona e provocar toda a sorte de males.

Sexismo, feminicídio, misoginia são nomes diferentes para ações e/ou comportamentos que ao fim e ao cabo têm o mesmo propósito: manter as mulheres sob cabrestos curtos e sufocantes para que elas não ousem sequer gritar, quanto mais espernear.

Num tempo em que “empoderamento” é a palavra de ordem entre as mulheres, o caso de estupro coletivo ocorrido na semana passada no Rio de Janeiro faz ver que os homens estamos cruelmente empenhados em mantê-las sob a pressão infame de nossas vontades, porque pensamos que poder, mesmo, só nós é que temos.



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