20 de maio de 2016

O elevador e a buzina: a lógica da destruição do patrimônio edificado do Recife

Por Clênio Sierra de Alcântara

  

Fotos: do autor       Sobrado localizado na Rua da Glória que desabou parcialmente. A falta de manutenção e acompanhamento do estado em que se encontram muitas das edificações que compõem o acervo arquitetônico e histórico do Recife têm provocado situações como essa. Ou o Recife cuida efetivamente bem do seu patrimônio ou no espaço de pouco tempo perderá mais e mais tudo isso que faz dele um dos cenários urbanos mais pitorescos do país


Num ritmo e dinamismo espantosos a cidade do Recife vem dia após dia pondo abaixo e/ou deixando desabar por conta própria o rico acervo do seu patrimônio histórico edificado. Para qualquer direção que se olhe na sua área de ocupação urbana mais antiga – os bairros do Recife Antigo, Santo Antônio, São José e Boa Vista -, não faltam evidências dessa ação destruidora implacável.


Pautada por uma lógica muito clara e precisa, a dinâmica dessa ofensiva contra o que de mais pitoresco ainda resta do passado da capital pernambucana atende, a meu ver, a dois segmentos econômicos poderosíssimos: o automobilístico e o imobiliário. A submissão da cidade a tais setores é de tamanha grandeza que a ordem desfiguradora se processa ou, dito de outro modo, vem se processando, sem que, no geral, o grosso da população perceba que não é apenas um empreendimento do porte do que se projetou para o terreno contíguo ao Cais José Estelita que desfigura e subtrai as belezas arquitetônicas e paisagísticas do Recife. Os aspectos daninhos da destruição e reocupação dos espaços com novas construções – em alguns casos a destruição, pelo menos num primeiro momento, se dá justamente para se que se obtenha um terreno vazio que, enquanto espera a oferta tentadora de uma grande construtora que projetará nele apartamentos de alto padrão, funcione como um rentável estacionamento para veículos automotivos – também são verificados em ações pontuais aparentemente sem muita visibilidade, que vão minando e fragilizando o todo, causando perdas irreparáveis no conjunto de edificações que precisam ser preservadas para que tenhamos um acervo da memória arquitetônica e urbanística da cidade.







É absolutamente espantosa e lastimável a completa e total submissão das grandes cidades brasileiras, em geral, e do Recife, em particular, ao que muitos denominam de “demanda por espaço” exigido pelos automóveis. Em vez de ser um abrigo para o ser humano, para as pessoas, como historicamente sempre foram, as cidades vêm sendo preparadas para dar guarida e acomodar o maior número de carros e motos que for possível. As políticas públicas têm direcionado discussões a respeito da mobilidade urbana sem, no entanto, promover, de fato, a melhoria do transporte público de passageiros. Por incrível que pareça, os prefeitos brasileiros acreditam que obtêm mais apoio dos eleitores – e deve ser verdade isso – quando eles põem em execução projetos de alargamento e abertura de ruas e avenidas, de modo a fazer o trânsito fluir, não importando se por essas vias circulam os ônibus nossos de cada dia ou se majoritariamente carros, os quais, muitas vezes, conduzem apenas os motoristas.










Na manhã da última terça-feira eu fui verificar in loco os recentes estragos que a política do descaso para com a preservação do patrimônio provocou em duas edificações no bairro da Boa Vista, área central do Recife. No domingo dia 8 de maio, as fortes chuvas que caíram na capital provocaram o desabamento quase que completo de um outrora admirável sobrado localizado na Rua da Glória, causando a interdição de outros dois imóveis que ficam ao lado dele. Perto dali, um enorme estacionamento é o destaque principal nos começos da Rua Velha, onde outros prédios se encontram bastante deteriorados, esperando outro mau tempo vir para pô-los abaixo.









Minha parada seguinte foi – vejam que ironia – na Rua do Progresso, onde, também na semana passada, mas só que na quarta-feira, o telhado de um sobrado desabou à noite. E sabem qual é o empreendimento que existe junto dele? Um estacionamento. Mais adiante, na esquina dessa mesma Rua do Progresso com a Rua da Soledade, na qual, alguns anos atrás, existiu um casarão que figurava em cartões-postais – nele residiram integrantes da família Nery da Fonseca -, instalou-se igualmente um muito amplo estacionamento para carros. Já na Rua do Riachuelo, o saudoso Hotel Lido, do qual fui hóspede, foi demolido para dar lugar adivinhem ao quê? A outro estacionamento, ora.



Sobrado que ainda resiste de pé na Rua do Progresso e que perdeu o seu telhado na semana passada. Ao seu lado um estacionamento parece estar na torcida de que ele desabe para que o espaço destinado aos veículos seja ampliado














Carros, carros e mais carros. Novas edificações sendo erguidas e outras ganhando as pranchetas de engenheiros e arquitetos das grandes construtoras que pouco a pouco estão redesenhando e reocupando a cidade. Enquanto isso, enquanto se promove essa verdadeira dilapidação do acervo arquitetônico e paisagístico do Recife, ruínas vão se acumulando à vista de todos e sob a indiferença e/ou cumplicidade do poder público. Qualquer dia desses o imponente sobrado localizado na Rua Barão de São Borja, que está há meses sem o telhado, vai certamente desaparecer da paisagem recifense e vai ficar por isso mesmo. Edificações antigas bastante deterioradas podem ser encontradas também nas ruas da Aurora, Dr. José Mariano, 1º de Março, entre outras.


Nos últimos vinte anos, em que pese o fato de que a cidade estar seriamente degradada – calçadas esburacadas e sem acessibilidade; ocupação desordenada do espaço; um rio majestoso como o Capibaribe sem receber nenhum cuidado; a população dos morros ainda sofrendo sob o impacto das chuvas; lixo por toda a parte -,   as grandes obras de infraestrutura que marcaram as administrações municipais do Recife foram destacadamente as vinculadas aos problemas do tráfego, ou seja, ao fluxo de veículos, como  a  abertura da Av. Maurício de Nassau (paralela da Av. Caxangá), a construção dos túneis Chico Science e da Abolição, a requalificação da Av. Conde da Boa Vista, o alargamento de parte da Av. Norte e a execução da Via Mangue, inaugurada recentemente. Alguém pode dizer que isso buscou a promoção da mobilidade urbana. Sim, mas para quem? Para que público? Fundamentalmente foi para atender aos proprietários de carros, porque não houve melhoria significativa para quem faz uso de ônibus. E sabem por quê? Porque parte das autoridades responsáveis por gerir o sistema de transporte público de passageiros, ao que parece, continua acreditando que melhorar e qualificar esse setor é simplesmente fazer com que os coletivos corram mais velozmente pelas vias, esquecendo que esse é apenas um dos itens de um rol que inclui, por exemplo, conforto e não superlotação dos ônibus, diminuição do intervalo entre as viagens e ampliação do número de linhas para atender a mais localidades.

Na noite da quarta-feira passada, atendendo a um convite do meu amigo Delano Moraes, fui até a sede da GTI Consultoria em Gestão, no bairro do Espinheiro, tomar parte na segunda edição da série de debates “O Recife que precisamos”, promovido pelo Movimento Observatório do Recife em parceria com a revista Algomais. O tema do encontro foi “Os desafios da humanização do trânsito no Recife” – que veio bem a calhar tendo em vista que esse é, sem dúvida alguma, um dos pontos nevrálgicos da complexa estrutura da capital de Pernambuco, além do fato de estarmos em pleno Maio Amarelo, um mês dedicado a pensarmos a respeito do gravíssimo problema da violência no trânsito – e teve como palestrante Tarciana Ferreira, presidente da Companhia de Trânsito e Transporte Urbano (CTTU), que, de maneira clara e precisa, expôs não apenas dados, como mostrou ações que a atual administração municipal do Recife vem empreendendo com o fito de promover a melhoria da circulação de veículos em todos os espaços da cidade, como a ampliação da Faixa Azul – delimitação nas vias para que nelas só circulem ônibus e táxis -, a implantação de ciclovias e ciclofaixas e a instalação de sinalização. Alguém lembrou, no debate que se seguiu à explanação de Tarciana Ferreira, que a Municipalidade deve buscar promover sempre o desestímulo ao uso do veículo particular e punir com mais rigor os abusos cometidos por motoristas que se sentem donos do pedaço e, entre outras irregularidades, se põem a estacionar os seus possantes em locais proibidos; e que a cidade deve ser o tempo todo pensada para o bem coletivo e de forma racional e sustentável. Muito oportunamente Francisco Cunha trouxe à baila uma reflexão de Enrique Peñalosa, ex-prefeito de Bogotá, que em certa ocasião fez o seguinte comentário: “Uma boa cidade não é aquela em que até os pobres andam de carro, mas aquela em que até os ricos utilizam transporte coletivo”.




Tarciana Ferreira quando pronunciava sua palestra: todos e cada um de nós devemos tomar conta do Recife e livrá-lo das forças que querem redesenhá-lo e reocupá-lo a todo custo




Foto: Observatório do Recife


Sob o acúmulo de ruínas o Recife do futuro segue sendo projetado por arquitetos, engenheiros e urbanistas que continuam enxergando o patrimônio edificado da cidade como um entrave para a construção de prédios suntuosos e a abertura de novas vias largas e bem iluminadas, às margens das quais, em painéis luminosos e de alta definição, imagens de um Recife do passado serão projetadas apenas – e talvez – como um tempo superado. Nós outros, que acreditamos num outro sonho e projeto para  o Recife, certamente vamos permanecer empenhados para que aquele ideal de futuro não se concretize e possamos, de fato, promover e alcançar o bem-estar não somente das pessoas que nele habitam, mas também o bem-estar da própria cidade.



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