Por Clênio Sierra de
Alcântara
Num ritmo e dinamismo
espantosos a cidade do Recife vem dia após dia pondo abaixo e/ou deixando
desabar por conta própria o rico acervo do seu patrimônio histórico edificado.
Para qualquer direção que se olhe na sua área de ocupação urbana mais antiga –
os bairros do Recife Antigo, Santo Antônio, São José e Boa Vista -, não faltam
evidências dessa ação destruidora implacável.
Pautada por uma lógica muito
clara e precisa, a dinâmica dessa ofensiva contra o que de mais pitoresco ainda
resta do passado da capital pernambucana atende, a meu ver, a dois segmentos
econômicos poderosíssimos: o automobilístico e o imobiliário. A submissão da
cidade a tais setores é de tamanha grandeza que a ordem desfiguradora se
processa ou, dito de outro modo, vem se processando, sem que, no geral, o
grosso da população perceba que não é apenas um empreendimento do porte do que
se projetou para o terreno contíguo ao Cais José Estelita que desfigura e
subtrai as belezas arquitetônicas e paisagísticas do Recife. Os aspectos
daninhos da destruição e reocupação dos espaços com novas construções – em
alguns casos a destruição, pelo menos num primeiro momento, se dá justamente para
se que se obtenha um terreno vazio que, enquanto espera a oferta tentadora de
uma grande construtora que projetará nele apartamentos de alto padrão, funcione
como um rentável estacionamento para veículos automotivos – também são
verificados em ações pontuais aparentemente sem muita visibilidade, que vão
minando e fragilizando o todo, causando perdas irreparáveis no conjunto de
edificações que precisam ser preservadas para que tenhamos um acervo da memória
arquitetônica e urbanística da cidade.
É absolutamente espantosa e
lastimável a completa e total submissão das grandes cidades brasileiras, em
geral, e do Recife, em particular, ao que muitos denominam de “demanda por
espaço” exigido pelos automóveis. Em vez de ser um abrigo para o ser humano,
para as pessoas, como historicamente sempre foram, as cidades vêm sendo
preparadas para dar guarida e acomodar o maior número de carros e motos que for
possível. As políticas públicas têm direcionado discussões a respeito da
mobilidade urbana sem, no entanto, promover, de fato, a melhoria do transporte
público de passageiros. Por incrível que pareça, os prefeitos brasileiros
acreditam que obtêm mais apoio dos eleitores – e deve ser verdade isso – quando
eles põem em execução projetos de alargamento e abertura de ruas e avenidas, de
modo a fazer o trânsito fluir, não importando se por essas vias circulam os
ônibus nossos de cada dia ou se majoritariamente carros, os quais, muitas
vezes, conduzem apenas os motoristas.
Na manhã da última
terça-feira eu fui verificar in loco
os recentes estragos que a política do descaso para com a preservação do
patrimônio provocou em duas edificações no bairro da Boa Vista, área central do
Recife. No domingo dia 8 de maio, as fortes chuvas que caíram na capital
provocaram o desabamento quase que completo de um outrora admirável sobrado
localizado na Rua da Glória, causando a interdição de outros dois imóveis que
ficam ao lado dele. Perto dali, um enorme estacionamento é o destaque principal
nos começos da Rua Velha, onde outros prédios se encontram bastante
deteriorados, esperando outro mau tempo vir para pô-los abaixo.
Minha parada seguinte foi –
vejam que ironia – na Rua do Progresso, onde, também na semana passada, mas só
que na quarta-feira, o telhado de um sobrado desabou à noite. E sabem qual é o
empreendimento que existe junto dele? Um estacionamento. Mais adiante, na
esquina dessa mesma Rua do Progresso com a Rua da Soledade, na qual, alguns
anos atrás, existiu um casarão que figurava em cartões-postais – nele residiram
integrantes da família Nery da Fonseca -, instalou-se igualmente um muito amplo
estacionamento para carros. Já na Rua do Riachuelo, o saudoso Hotel Lido, do
qual fui hóspede, foi demolido para dar lugar adivinhem ao quê? A outro
estacionamento, ora.
Carros, carros e mais
carros. Novas edificações sendo erguidas e outras ganhando as pranchetas de
engenheiros e arquitetos das grandes construtoras que pouco a pouco estão
redesenhando e reocupando a cidade. Enquanto isso, enquanto se promove essa
verdadeira dilapidação do acervo arquitetônico e paisagístico do Recife, ruínas
vão se acumulando à vista de todos e sob a indiferença e/ou cumplicidade do
poder público. Qualquer dia desses o imponente sobrado localizado na Rua Barão
de São Borja, que está há meses sem o telhado, vai certamente desaparecer da
paisagem recifense e vai ficar por isso mesmo. Edificações antigas bastante
deterioradas podem ser encontradas também nas ruas da Aurora, Dr. José Mariano,
1º de Março, entre outras.
Nos últimos vinte anos, em
que pese o fato de que a cidade estar seriamente degradada – calçadas
esburacadas e sem acessibilidade; ocupação desordenada do espaço; um rio
majestoso como o Capibaribe sem receber nenhum cuidado; a população dos morros
ainda sofrendo sob o impacto das chuvas; lixo por toda a parte -, as
grandes obras de infraestrutura que marcaram as administrações municipais do
Recife foram destacadamente as vinculadas aos problemas do tráfego, ou seja, ao
fluxo de veículos, como a abertura da Av. Maurício de Nassau (paralela
da Av. Caxangá), a construção dos túneis Chico Science e da Abolição, a
requalificação da Av. Conde da Boa Vista, o alargamento de parte da Av. Norte e
a execução da Via Mangue, inaugurada recentemente. Alguém pode dizer que isso
buscou a promoção da mobilidade urbana. Sim, mas para quem? Para que público?
Fundamentalmente foi para atender aos proprietários de carros, porque não houve
melhoria significativa para quem faz uso de ônibus. E sabem por quê? Porque
parte das autoridades responsáveis por gerir o sistema de transporte público de
passageiros, ao que parece, continua acreditando que melhorar e qualificar esse
setor é simplesmente fazer com que os coletivos corram mais velozmente pelas
vias, esquecendo que esse é apenas um dos itens de um rol que inclui, por
exemplo, conforto e não superlotação dos ônibus, diminuição do intervalo entre
as viagens e ampliação do número de linhas para atender a mais localidades.
Na noite da quarta-feira
passada, atendendo a um convite do meu amigo Delano Moraes, fui até a sede da
GTI Consultoria em Gestão, no bairro do Espinheiro, tomar parte na segunda
edição da série de debates “O Recife que precisamos”, promovido pelo Movimento Observatório do Recife em
parceria com a revista Algomais. O
tema do encontro foi “Os desafios da humanização do trânsito no Recife” – que
veio bem a calhar tendo em vista que esse é, sem dúvida alguma, um dos pontos
nevrálgicos da complexa estrutura da capital de Pernambuco, além do fato de
estarmos em pleno Maio Amarelo, um
mês dedicado a pensarmos a respeito do gravíssimo problema da violência no
trânsito – e teve como palestrante Tarciana Ferreira, presidente da Companhia
de Trânsito e Transporte Urbano (CTTU), que, de maneira clara e precisa, expôs
não apenas dados, como mostrou ações que a atual administração municipal do
Recife vem empreendendo com o fito de promover a melhoria da circulação de
veículos em todos os espaços da cidade, como a ampliação da Faixa Azul –
delimitação nas vias para que nelas só circulem ônibus e táxis -, a implantação
de ciclovias e ciclofaixas e a instalação de sinalização. Alguém lembrou, no
debate que se seguiu à explanação de Tarciana Ferreira, que a Municipalidade
deve buscar promover sempre o desestímulo ao uso do veículo particular e punir com
mais rigor os abusos cometidos por motoristas que se sentem donos do pedaço e,
entre outras irregularidades, se põem a estacionar os seus possantes em locais
proibidos; e que a cidade deve ser o tempo todo pensada para o bem coletivo e
de forma racional e sustentável. Muito oportunamente Francisco Cunha trouxe à
baila uma reflexão de Enrique Peñalosa, ex-prefeito de Bogotá, que em certa
ocasião fez o seguinte comentário: “Uma boa cidade não é aquela em que até os
pobres andam de carro, mas aquela em que até os ricos utilizam transporte
coletivo”.
Tarciana Ferreira quando pronunciava sua palestra: todos e cada um de nós devemos tomar conta do Recife e livrá-lo das forças que querem redesenhá-lo e reocupá-lo a todo custo |
Foto: Observatório do Recife |
Sob o acúmulo de ruínas o Recife do futuro segue sendo projetado por arquitetos, engenheiros e urbanistas que continuam enxergando o patrimônio edificado da cidade como um entrave para a construção de prédios suntuosos e a abertura de novas vias largas e bem iluminadas, às margens das quais, em painéis luminosos e de alta definição, imagens de um Recife do passado serão projetadas apenas – e talvez – como um tempo superado. Nós outros, que acreditamos num outro sonho e projeto para o Recife, certamente vamos permanecer empenhados para que aquele ideal de futuro não se concretize e possamos, de fato, promover e alcançar o bem-estar não somente das pessoas que nele habitam, mas também o bem-estar da própria cidade.
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