Por Clênio Sierra de Alcântara
Mesmo
que me arranquem o sexo,
minha
honra, meu prazer,
te amar
eu ousaria.
Avesso.
Jorge Vercilo
A morte veio, mas o arco-íris não mudou de cor e nem vai mudar |
Não tivessem a resistência
perene e absoluta que têm, os gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros já
teriam desde há muito sido varridos da face da Terra, tamanha e onipresente
são as instâncias da intolerância que a todo tempo lançam sobre eles suas garras
impiedosas e dilaceradoras. Tal qual a Hidra de Lerna, o monstro da mitologia
grega, a intolerância tem várias cabeças; e cada uma delas permanece
diuturnamente buscando justificativas nos campos religioso, moral, ético,
filosófico, político e, claro, biológico para as ações de repúdio e completa e
total aversão a todo e qualquer indivíduo que seja homossexual.
Ao longo da História, a
homossexualidade foi quase sempre vista como uma doença, um comportamento de
contranatura, uma perversão, uma degeneração, uma falta de vergonha, uma
safadeza, um pecado mortal; em em razão de tudo isso, os homossexuais nunca
deixaram de ser alvo de ataques de pessoas que, se julgando acima do bem e do
mal e de tudo o que existe, lhes infligem os mais absurdos e cruéis “castigos”.
Por serem gays ainda hoje, em diferentes partes do mundo, homens e mulheres
são espancados nas ruas; são assassinados aos magotes, como acontece no Brasil;
são humilhados nas unidades prisionais; são rejeitados e/ou dispensados de
certos empregos, cargos e funções. Enfim, se ser gente num mundo
exacerbadamente falocêntrico, machista, seletivo, competitivo e violento é
extremamente difícil e não é para qualquer um, para os homossexuais então o
peso do fardo de viver vem em carga dobrada.
Na madrugada do último
sábado para o domingo, em Orlando, na Flórida, nos Estados Unidos, um
fundamentalista islâmico, americano de nascimento e filho de afegãos, adentrou
armado na boate gay Pulse e despejou ali toda a sua frustração e inadequação a
este mundo, matando a tiros quarenta e nove pessoas que, a seu modo, celebravam
e festejavam a liberdade e a alegria que tinham de viver. Todas as vítimas
foram mortas simplesmente porque eram gays e não por outra razão. Omar Mateen,
o justiceiro, o herói da boa causa, o fundamentalista cumpridor de sua missão,
o vingador dos grupos extremistas, o radical com alto poder de fogo que
conseguiu por duas vezes enganar os investigadores do FBI, o desgraçado, o
impiedoso, o covarde Omar Mateen ceifou quarenta e oito vidas como se aquelas
pessoas não tivessem sentimentos nem valores morais e éticos, não fizessem
parte de famílias, não traçassem caminhos para o futuro, não amassem, não
desejassem, não fossem cidadãos, não tivessem fé religiosa e fossem como
coisas, como objetos imprestáveis que, quando não se quer mais, joga-se na lata
de lixo.
Como sempre acontece quando
se deparam com massacres ocasionados por armas de fogo em seus quintais, agora
também as autoridades norte-americanas, incluindo o presidente Barack Obama, se
puseram a dizer que é preciso discutir seriamente a facilidade que se tem para
a compra e venda de armas nos Estados Unidos, discussão essa que nunca avança
devido ao forte lobby que as grandes
empresas de armamento mantêm no Congresso daquele país. De modo que não apenas
os gays, mas todos aqueles que não se “enquadram” na visão distorcida da
realidade de indivíduos como esse Omar Mateen, são alvos em potencial, visto
que na terra do Tio Sam, as pessoas compram armas com a mesma disposição de
quem vai a um supermercado.
Depois de ter sua história marcada pelo
emblemático acontecimento havido em 1969 no bar Stonewall Inn, em Nova York,
que acabou se tornando um dos desencadeadores das lutas por direitos civis para
os homossexuais, a comunidade gay dos Estados Unidos terá agora que carregar
mais essa tragédia como símbolo de suas caminhadas de resistência contra tudo e
contra todos que insistem em silenciá-la, vilipendiá-la, desmoralizá-la e afastá-la
completamente dos grandes debates sociais, como se nem a condição de cidadãos
os gays merecessem ter, algo que em maior ou menor grau se observa em todos os
países do mundo.
Assim como não se consegue
evitar o mal, ninguém é capaz de se manter o tempo todo vigilante a fim de
escapar a toda sorte de atos infames, mesquinhos, violentos, covardes e brutais
provindos dos que são movidos pela intolerância. Se eles acreditam que as
chacinas, os massacres, as carnificinas, as fogueiras e os cadafalsos são
legítimos e necessários, continuemos resistindo e persistindo no avesso.
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