Por Clênio Sierra de Alcântara
Caso não cuidemos devidamente das nossas crianças, assistiremos a mais ocorrências terríveis como essa que se deu em São Paulo. Infância não pode nunca rimar com desamparo |
Fui uma criança que foi
criada sem a presença do pai e que passava o dia quase todo tendo de cuidar de
si própria, porque minha Mãe tinha de batalhar para o nosso sustento; apesar
disso, a casa, ou melhor, as casas de aluguel nas quais morávamos – lembro de
uma, em particular, cujo banheiro era coletivo; eu tinha sete anos nessa época;
e aquele “corredor de quartos” era uma agitação só – nunca foi uma prisão para
mim. Mesmo sendo um infante, eu era dono do meu mundo, porque Mainha só chegava
à noite; e eu aproveitava minha total liberdade para ocupar o tempo com todo o
lúdico que fosse possível, sem deixar de ir à escola.
A minha infância foi toda
ela muito solar e tremendamente divertida. Mainha era o centro de tudo; mas ela
trabalhava em outra cidade, e, na sua ausência, não havia ninguém para me
vigiar e nem cuidar de mim. Eu brincava de pega-pega, barra-bandeira e
queimada; jogava futebol, tênis de mesa e bola de gude; corria atrás de pipas,
tomava banho de rio... Era tudo tão bom. Em casa não tinha televisão; e nem
precisava, porque eu assistia à programação nos lares dos vizinhos. Da fábrica
de embalagens onde trabalhava, em Olinda, Mainha trazia grossas encadernações
de folhas alvíssimas nas quais eu desenhava e pintava as coisas mais absurdas,
como nuvens azuis e sóis sorridentes. Quando a turminha era numerosa,
costumávamos nos dividir na brincadeira de polícia e ladrão; e sempre eu
escolhia ser bandido, porque era mais legal sair em disparada, armar artimanhas
e se esconder para não ser pego. Ah, que saudade de tudo isso! Seguramente eu
tive uma infância das mais lúdicas e divertidas que uma criança pode, merece e
deve ter. Felizmente os de minha geração podem contar que conheceram um tempo
onde ainda existia alguma inocência.
Hoje em dia, o que eu mais
ouço dizer quando ocorrem episódios trágicos envolvendo crianças, é que a
inocência desde há muito abandonou esta terra. O aumento populacional foi
paulatinamente destruindo espaços de convivência, mesmo nos subúrbios. A
violência urbana cresceu vertiginosamente. As famílias passaram a ser compostas
por casais que optaram por ter menos filhos do que os que os seus pais tiveram.
O ritmo frenético de uma vida calcada nas novidades tecnológicas portáteis veio
para enterrar de vez a mínima inocência que pudesse revivificar. Sob o impacto
imático da internet, as crianças deste nosso tempo têm acesso a tudo, de
pornografia ao lançamento musical mais comentado, de oferta e venda de drogas a
salas de museus. Não existe nada proibido para nossas crianças. Não se impõem
limites para elas. Vivemos numa era de total e irrestrita permissividade na
qual, apesar disso, ser criança parece ser a coisa mais incômoda e
desconfortável do mundo, porque é nítido o fato de meninos e meninas só quererem
se comportar como adultos em miniatura. E adultos não apenas em aspecto físico,
mas também em termos comportamentais, o que inclui iniciar-se cada vez mais
cedo em relacionamentos sexuais. Daí por que é elevadíssimo o número de meninas
grávidas e de meninos que se comportam como se fossem garanhões. A inocência
foi definitivamente morta e enterrada.
Quando temos conhecimento de
que fatos como esse, havido em São Paulo, não são casos isolados, porque é
sabido que somente o tráfico de drogas alicia dezenas, centenas e, talvez,
milhares de crianças para o universo da marginalidade, a tragédia social
brasileira ganha contornos ainda mais perversos e estarrecedores. Pode-se até
dizer que o Brasil é um país de imensos contrastes sociais e que a qualidade do
ensino-aprendizagem que se encontra na imensa maioria de suas escolas públicas
ainda está longe de algo satisfatório; por outro lado, não se pode negar que há
mais de uma década o Estado brasileiro se pôs a constituir uma rede de amparo
social na qual o Bolsa Família é somente o mais vistoso e conhecido elemento
que a compõe. De modo que, culpar o Estado pela ocorrência de fatos como o que
vitimou o menino na capital paulista, é assumir a posição tão cômoda de
atribuir responsabilidades que nos cabem a outrem; é deixar de agir esperando
que o Estado paternalista cuide integralmente de nós e de nossos filhos,
crentes de que é assim que deve ser e pronto.
Sim, é claro que uma ação
governamental, como o Bolsa Família não vai nos salvar inteiramente dos males
que infestam nossa sociedade; mas é um fato corroborado por pesquisas que, se
não fossem por instrumentos como esse, milhões de brasileirinhos estariam
condenados a ter um futuro sem nenhuma perspectiva de melhora, porque seus pais
não teriam a mínima condição financeira para lhes prover sequer daquilo que é o
mais básico para a manutenção da vida, que é o consumo de alimentos. Também é
igualmente verdadeiro que se não aperfeiçoar essa sua rede de amparo social, o
Estado brasileiro irá tão somente manter cativo, numa espécie de pobreza
controlada, todas essas pessoas que passaram a ter acesso a uma renda mínima e
não conseguiram se libertar dela por não terem obtido um grau de instrução e
nem alcançado um emprego. É a possibilidade de conseguir caminhar com as
próprias pernas e traçar o seu futuro que realmente conferem dignidade ao
cidadão e não um auxílio financeiro que muitos veem como esmola.
O menininhozinho que foi
morto em um suposto confronto com policiais, em São Paulo, certamente era uma
dessas vidas necessitadas de ter por perto um pulso firme que lhe agarrasse a
mão e o guiasse pelo complexo emaranhado de dificuldades de toda ordem que
marca, com maior intensidade, a existência daqueles que vagam pelo mundo
lutando para, de alguma maneira, se inserir na sociedade.
Um livro, um caderno, um
lápis e um prato de merenda são muitíssimo mais baratos do que um revólver. E a
miséria, o descaso, a ignorância, o desamparo e a falta de rumo é o que
alimenta a violência, a estupidez e a brutalidade que diariamente nos abate e
apavora.
Nenhum comentário:
Postar um comentário