22 de junho de 2016

O menininhozinho e o revólver

Por Clênio Sierra de Alcântara
  



Caso não cuidemos devidamente das nossas crianças, assistiremos a mais ocorrências terríveis como essa que se deu em São Paulo. Infância não pode nunca rimar com desamparo



Fui uma criança que foi criada sem a presença do pai e que passava o dia quase todo tendo de cuidar de si própria, porque minha Mãe tinha de batalhar para o nosso sustento; apesar disso, a casa, ou melhor, as casas de aluguel nas quais morávamos – lembro de uma, em particular, cujo banheiro era coletivo; eu tinha sete anos nessa época; e aquele “corredor de quartos” era uma agitação só – nunca foi uma prisão para mim. Mesmo sendo um infante, eu era dono do meu mundo, porque Mainha só chegava à noite; e eu aproveitava minha total liberdade para ocupar o tempo com todo o lúdico que fosse possível, sem deixar de ir à escola.

A minha infância foi toda ela muito solar e tremendamente divertida. Mainha era o centro de tudo; mas ela trabalhava em outra cidade, e, na sua ausência, não havia ninguém para me vigiar e nem cuidar de mim. Eu brincava de pega-pega, barra-bandeira e queimada; jogava futebol, tênis de mesa e bola de gude; corria atrás de pipas, tomava banho de rio... Era tudo tão bom. Em casa não tinha televisão; e nem precisava, porque eu assistia à programação nos lares dos vizinhos. Da fábrica de embalagens onde trabalhava, em Olinda, Mainha trazia grossas encadernações de folhas alvíssimas nas quais eu desenhava e pintava as coisas mais absurdas, como nuvens azuis e sóis sorridentes. Quando a turminha era numerosa, costumávamos nos dividir na brincadeira de polícia e ladrão; e sempre eu escolhia ser bandido, porque era mais legal sair em disparada, armar artimanhas e se esconder para não ser pego. Ah, que saudade de tudo isso! Seguramente eu tive uma infância das mais lúdicas e divertidas que uma criança pode, merece e deve ter. Felizmente os de minha geração podem contar que conheceram um tempo onde ainda existia alguma inocência.

Hoje em dia, o que eu mais ouço dizer quando ocorrem episódios trágicos envolvendo crianças, é que a inocência desde há muito abandonou esta terra. O aumento populacional foi paulatinamente destruindo espaços de convivência, mesmo nos subúrbios. A violência urbana cresceu vertiginosamente. As famílias passaram a ser compostas por casais que optaram por ter menos filhos do que os que os seus pais tiveram. O ritmo frenético de uma vida calcada nas novidades tecnológicas portáteis veio para enterrar de vez a mínima inocência que pudesse revivificar. Sob o impacto imático da internet, as crianças deste nosso tempo têm acesso a tudo, de pornografia ao lançamento musical mais comentado, de oferta e venda de drogas a salas de museus. Não existe nada proibido para nossas crianças. Não se impõem limites para elas. Vivemos numa era de total e irrestrita permissividade na qual, apesar disso, ser criança parece ser a coisa mais incômoda e desconfortável do mundo, porque é nítido o fato de meninos e meninas só quererem se comportar como adultos em miniatura. E adultos não apenas em aspecto físico, mas também em termos comportamentais, o que inclui iniciar-se cada vez mais cedo em relacionamentos sexuais. Daí por que é elevadíssimo o número de meninas grávidas e de meninos que se comportam como se fossem garanhões. A inocência foi definitivamente morta e enterrada.

No último dia 2 de junho, na Zona Sul de São Paulo, um acontecimento espantoso sob todos os ângulos que possa ser pensado e analisado, pôs nas páginas da crônica policial brasileira dois menininhozinhos como protagonistas de um crime. Eis o fato sinistro digno de uma Disneylândia cabocla: duas crianças, com dez e onze anos de idade, invadiram a garagem de um prédio e furtaram um veículo; perseguidos por policiais, o mais novo, o caçula da dupla, efetuou disparos contra a viatura policial. Na fuga, a criança que atirava e ao mesmo conduzia o carro, perdeu o controle da direção e acabou estancando o automóvel. Nesse momento, os policiais se aproximaram e atiraram, matando o condutor e mentor do delito. Eis como o caso até agora foi divulgado pelos investigadores. E, para completar, ou melhor, para compor o pano de fundo dessa tragédia, ao levantarem dados sobre a “vida pregressa” – minha nossa, o garoto só tinha dez anos de idade! -, os responsáveis pelo inquérito apuraram que os dois praticantes do delito já haviam sido apanhados noutras ações; e que o pai do que foi morto está preso e sua mãe teve também passagem pela polícia.

Quando temos conhecimento de que fatos como esse, havido em São Paulo, não são casos isolados, porque é sabido que somente o tráfico de drogas alicia dezenas, centenas e, talvez, milhares de crianças para o universo da marginalidade, a tragédia social brasileira ganha contornos ainda mais perversos e estarrecedores. Pode-se até dizer que o Brasil é um país de imensos contrastes sociais e que a qualidade do ensino-aprendizagem que se encontra na imensa maioria de suas escolas públicas ainda está longe de algo satisfatório; por outro lado, não se pode negar que há mais de uma década o Estado brasileiro se pôs a constituir uma rede de amparo social na qual o Bolsa Família é somente o mais vistoso e conhecido elemento que a compõe. De modo que, culpar o Estado pela ocorrência de fatos como o que vitimou o menino na capital paulista, é assumir a posição tão cômoda de atribuir responsabilidades que nos cabem a outrem; é deixar de agir esperando que o Estado paternalista cuide integralmente de nós e de nossos filhos, crentes de que é assim que deve ser e pronto.

Sim, é claro que uma ação governamental, como o Bolsa Família não vai nos salvar inteiramente dos males que infestam nossa sociedade; mas é um fato corroborado por pesquisas que, se não fossem por instrumentos como esse, milhões de brasileirinhos estariam condenados a ter um futuro sem nenhuma perspectiva de melhora, porque seus pais não teriam a mínima condição financeira para lhes prover sequer daquilo que é o mais básico para a manutenção da vida, que é o consumo de alimentos. Também é igualmente verdadeiro que se não aperfeiçoar essa sua rede de amparo social, o Estado brasileiro irá tão somente manter cativo, numa espécie de pobreza controlada, todas essas pessoas que passaram a ter acesso a uma renda mínima e não conseguiram se libertar dela por não terem obtido um grau de instrução e nem alcançado um emprego. É a possibilidade de conseguir caminhar com as próprias pernas e traçar o seu futuro que realmente conferem dignidade ao cidadão e não um auxílio financeiro que muitos veem como esmola.

O menininhozinho que foi morto em um suposto confronto com policiais, em São Paulo, certamente era uma dessas vidas necessitadas de ter por perto um pulso firme que lhe agarrasse a mão e o guiasse pelo complexo emaranhado de dificuldades de toda ordem que marca, com maior intensidade, a existência daqueles que vagam pelo mundo lutando para, de alguma maneira, se inserir na sociedade.


Um livro, um caderno, um lápis e um prato de merenda são muitíssimo mais baratos do que um revólver. E a miséria, o descaso, a ignorância, o desamparo e a falta de rumo é o que alimenta a violência, a estupidez e a brutalidade que diariamente nos abate e apavora.

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