Por Clênio Sierra de Alcântara
A escrita da História requer
alguns exercícios preliminares. Um deles é justamente a procura das fontes e
dos subsídios que embasarão a narrativa. As fontes documentais – sejam elas,
escritas, orais, imagéticas, etc. - não necessariamente falam por si mesmas. Cabe
ao narrador - e não nos esqueçamos da lição do filósofo Walter Benjamin a
respeito dessa figura importantíssima e indispensável para tal tarefa –
examiná-las com cuidado; confrontá-las com outras fontes; interpretá-las;
fazer-lhes perguntas; duvidar delas; verificar o que nelas falta, porque elas
podem ser apenas parte de um todo ou simplesmente não passarem de pistas
falsas. Em sua atividade epistolar mestre Gilberto Freyre que, para a prática
da narração, se valia da maior e mais diversa gama de fontes possível, certa
feita, escrevendo para um seu amigo muito querido, enfatizou que nem tudo o que
ouvimos como material de informação para pesquisa deve ser levado em conta; é
preciso, destacou ele, que peneiremos o que nos é dito.
Fotos: Roberto Pereira Jr. |
Para além do caráter
epistemológico do fazer historiográfico, a narrativa histórica se reveste de
uma busca incessante por elementos que de alguma maneira ampliem o conhecimento
e/ou o entendimento de um dado assunto. Se tudo é mesmo História, como pensa
Paul Veyne, o autor de Como se escreve a História, por outro lado, a sua escrita
se cerca de alguns recursos metodológicos que definem e/ou guiam tal construção
textual. O “tudo”, na verdade, acaba sendo limitado pelo foco da narrativa que
ambicionamos elaborar.
Na noite da última
terça-feira eu me dirigi até o Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano
(Apeje), localizado na Rua do Imperador, no bairro de Santo Antônio, no Recife,
com o fito de prestigiar a divulgação do projeto cultural O obscuro fichário dos artistas mundanos (1934-1958), que foi
idealizado e coordenado por Clarice Hoffmann tomando como base as quatrocentas
e três fichas e vinte e oito prontuários produzidos pela Delegacia de Ordem
Política e Social de Pernambuco (DOPS-PE), entre os anos de 1934 e 1958, que
registraram a passagem por terras pernambucanas de indivíduos vistos e nomeados
como artistas pelos membros dessa instituição governamental.
Criada em dezembro de 1935
no contexto da perturbadora “ameaça comunista” – na palestra que foi o ponto
alto do evento, o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, que é autor
do instigante e esclarecedor A invenção
do Nordeste e outras artes,
lembrou da montagem do aparato opressor sob o governo de Getulio Vargas a
partir do Plano Cohen, que resultaria na ditadura do Estado Novo instaurada em
1937 e que se estenderia até 1945 -, a DOPS, pode-se dizer, se enquadra naquela
maquinaria de vigilância e controle social estabelecida pelo império da lei do
Estado que quer e/ou pretende determinar tudo, até gostos, padrões de
comportamento e de consumo e, quando não o consegue, trata de cercear as
escolhas individuais e penalizar de alguma forma os “desviantes”, os “desobedientes”,
os “transgressores” e os “inadequados”, tal qual o exame feito por Michel
Foucault em seu clássico Vigiar e punir.
Lançando luz sobre fatos,
pessoas e diversos cenários de um Recife que comumente não aparece no que se
convencionou chamar de “historiografia oficial”, o conjunto de dados e
informações reunidos pelo projeto O
obscuro fichário dos artistas mundanos – o catálogo que foi distribuído no
evento, que é um pequeno primor, é só uma ínfima parte da grande quantidade de
informações (e eu não posso de deixar de dizer aqui que o artigo de autoria da
historiadora Marcília Gama, que nos apresenta de modo bastante didático e
preciso a formação e atuação da DOPS, é de uma clareza tamanha) – fotografias dos
personagens fichados, peças de propaganda de espetáculos e de estabelecimentos
comerciais, textos, etc. – apresentadas e disponibilizadas no site www.obscurofichario.com.br que
merece visitas pacientes para que seja bem aproveitado. A plateia que ocupou o
salão do Apeje certamente saiu de lá curiosa, como eu, para acessar todas
aquelas informações das quais foi dado somente um aperitivo.
Professor Durval Muniz de Albuquerque Júnior no momento em que palestrava |
Como eu estava dizendo, a escrita da História requer alguns exercícios, como o da busca e avaliação das fontes e uma tomada de direção teórico-medológica. Mas não só isso; requer também – e fundamentalmente, creio eu – uma enorme vontade de saber, uma crença absoluta no ofício do narrador e um fascínio desmedido pelos muitos destinos aos quais as narrativas nos conduzem.
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