Por Clênio Sierra de Alcântara
Estrela de brilho eterno: Clarice Lispector é um dos grandes acontecimentos literários de todo o mundo e não apenas do Brasil |
Causou certo alvoroço em alguns círculos intelectuais
brasileiros o aparecimento da biografia de Clarice Lispector lançada no
exterior, em 2009, sob o título Why this
world (Oxford University Press), que fora escrita pelo norte-americano
Benjamin Moser. Com tradução para o nosso idioma feita por José Geraldo Couto,
a obra recebeu o título Clarice,
(lê-se Clarice vírgula) e foi lançada ainda naquele mesmo ano pela então
prestigiadíssima e hoje desaparecida editora Cosac Naif. Falando um português
impecável, Moser, que é uma dessas pessoas magnetizantes que vez ou outra temos o privilégio de conhecer, veio ao Brasil fazer o lançamento de sua obra – eu mesmo fui
ao evento ocorrido na Livraria Cultura do Paço Alfândega, no Recife, para que
ele autografasse o meu exemplar -; discorrendo sobre Clarice como quem
encontrou um tesouro literário, o que de fato e inegavelmente ela é, o autor
fez uma abordagem mais detida sobre a tradição da história judaica que não se
via em outras obras escritas sobre a autora, cuja família deixou a Ucrânia
justamente num período em que a perseguição aos judeus se acentuara, na segunda
década do século passado.
Os iniciados na obra
clariceana sabíamos que fazia anos vários dos livros da autora de Perto do coração selvagem haviam sido
traduzidos para outros idiomas, espalhando pelo mundo a escrita por vezes
perturbadora dessa ucraniana de nascimento e brasileira por vivência. Recordo
que todo o burburinho que se formou em torno do Benjamin Moser me incomodou um
pouco pelo fato de parecer que não tínhamos entre nós alguém que estudasse e/ou
entendesse da vida e da obra de Clarice Lispector com igual e/ou superior
profundidade. Logo compreendi que parte da crítica que tanto louvava o trabalho
do norte-americano não mencionava os estudos concebidos por Benedito Nunes,
Olga de Sá, Yudith Rosenbaum e principalmente por Nádia Battela Gotlib, cuja
biografia Clarice: uma vida que se conta
– ela veio a lume pela Editora Ática, em 1995; encontrava-se esgotada na época
em que se deu o lançamento da Cosac Naif e reapareceu ainda em 2009 -, não só
em virtude de certo comportamento mesquinho que desde há muito se estabeleceu
entre nossa intelectualidade, que consiste em não reconhecer alguns autores e
obras para destacar determinados nomes e pesquisas, e que é marcado pelo julgamento algo provinciano de pensar que tudo e/ou somente o que é estrangeiro deve ser visto como admirável, grandioso e bom, mas também por pura e
simples ignorância mesmo, porque grande parte dessa gente que assina os
cadernos de cultura de jornais e revistas, ao que parece, apenas transcreve
press releases. Vou-lhes dar um exemplo recente que demonstra a debilidade
dessas “análises bem fundamentadas”: no dia 27 de março de 2016 o caderno Viver (p.
C4 e C5), do Diario de Pernambuco,
trouxe uma extensa – e repleta de imagens – matéria intitulada “O tempo passou,
mas a causa ficou”, assinada por Larissa Lins, dando conta do relançamento de Reivindicação dos direitos da mulher, de
Mary Wollstonecraft, originalmente lançado em 1792. Li a reportagem com vivo
interesse e ao final me perguntei: “Como alguém pode escrever sobre Mary
Wollstonecraft, no Brasil, sem sequer fazer alusão ao pioneirismo da brilhante
e ilustrada potiguar Nísia Floresta, que fez uma tradução livre da obra Woman not inferior to man, de Mary
Wortley Montagu, pondo o título Direitos das mulheres e injustiça dos homens,
publicando-a em 1832, tradução essa que, durante muito tempo, se acreditou que tivesse sido justamente do livro de Mrs. Wollstonecraft?". E não podemos nos esquecer de outra grande referência que é feita à Mary Wollstonecraft em nossa literatura naquele que é considerado o primeiro best seller brasileiro, A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, cuja edição príncipe é de 1844; o Macedo que no dizer da professora Tania Serra foi um "incansável defensor da educação para as mulheres e um dos primeiros 'feministas' de nossa história literária" (Tania Serra. "Joaquim Manuel de Macedo: Espelho mágico do Segundo Reinado" (Introdução). In Joaquim Manuel de Macedo. A Moreninha. Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012, p. 17). Nessa obra a protagonista Carolina aparece como leitora da feminista inglesa, mesmo tendo apenas quinze anos de idade.
Como eu disse, em 2009 foi
que, em edição revista e aumentada – esta é a sexta; as demais edições
apareceram todas em 1995 -, voltou a circular Clarice: uma vida que se conta, agora sob a chancela da Editora da
Universidade de São Paulo, Edusp. Não sei se o estudo de Nádia Battela Gotlib
desperta no público não leitor da obra da escritora de A hora da estrela o mesmo fascínio que provoca em quem já
enveredou, ainda que não de corpo inteiro, pelas páginas repletas de espanto
deixadas por Clarice. A narrativa de Nádia, além de ser carregada de minúcias
sobre a vida dessa autora que passou parte da sua infância no recifense bairro
da Boa Vista, vai pondo o leitor em contato também com o universo escrito que
ela nos legou; uma a uma as obras são apresentadas e descritas revelando não
apenas elas em si, bem como a fortuna crítica que por elas se formou. Nádia,
que igualmente assina, entre outros, uma fotobiografia requintada e belíssima
de Clarice Lispector (Clarice
fotobiografia. São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,
2008), ao mesmo tempo que nos brinda com o pleno domínio que tem sobre a matéria dos seus
estudos, nos deixa ver que ela está insistentemente nos convidando a conhecer
Clarice, a nos embrenharmos pelas páginas da narradora de Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres, onde a pausa que fazemos na
leitura serve para recuperar o fôlego, aguçar um pouco mais os sentidos e
seguir em frente numa jornada que, para muitos, é, quase sempre, de inquietação.
Lendo o livro Clarice: uma vida que se
conta, parecia que eu estava de novo frente a frente com a intelectual
refinada e com a mulher fascinante e encantadora, que é a professora Nádia
Battela Gotlib, que eu tive a satisfação de ver e ouvir palestrando no salão
nobre do Teatro de Santa Isabel, no Recife, no hoje longínquo ano de 2007. E em
termos de comparação entre o seu estudo e o de Moser, a meu ver, o dela se
sobrepõe ao dele, tamanha é a sua carga de esclarecimento e entrelaçamento que
faz da vida e da obra de Clarice Lispector, compondo um quadro elucidativo
impressionante.
Ler Clarice nunca é fácil
para mim; sempre me sobram indagações e questionamentos de diversas ordens.
É-me fundamentalmente um exercício de como lidar com tudo o que me escapa: seja quando eu não consigo explicar certas circunstâncias que foram por mim vivenciadas; seja quando me vem a incapacidade de
compreender inteiramente algo que me foi revelado. E tudo dela exerce sobre mim uma
irresistível atração. Talvez seja porque onde o inexplicável se impõe é
justamente onde reside a essência do absoluto da vida.
(Artigo publicado também in Informa Garanhuns [Garanhuns], agosto de 2016, nº 1, Opinião, p. 2)
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