8 de julho de 2016

Clarice Lispector absoluta e total

Por Clênio Sierra de Alcântara



Estrela de brilho eterno: Clarice Lispector é um dos grandes acontecimentos literários de todo o mundo e não apenas do Brasil



Causou certo alvoroço em alguns círculos intelectuais brasileiros o aparecimento da biografia de Clarice Lispector lançada no exterior, em 2009, sob o título Why this world (Oxford University Press), que fora escrita pelo norte-americano Benjamin Moser. Com tradução para o nosso idioma feita por José Geraldo Couto, a obra recebeu o título Clarice, (lê-se Clarice vírgula) e foi lançada ainda naquele mesmo ano pela então prestigiadíssima e hoje desaparecida editora Cosac Naif. Falando um português impecável, Moser, que é uma dessas pessoas magnetizantes que vez ou outra temos o privilégio de conhecer, veio ao Brasil fazer o lançamento de sua obra – eu mesmo fui ao evento ocorrido na Livraria Cultura do Paço Alfândega, no Recife, para que ele autografasse o meu exemplar -; discorrendo sobre Clarice como quem encontrou um tesouro literário, o que de fato e inegavelmente ela é, o autor fez uma abordagem mais detida sobre a tradição da história judaica que não se via em outras obras escritas sobre a autora, cuja família deixou a Ucrânia justamente num período em que a perseguição aos judeus se acentuara, na segunda década do século passado.

Os iniciados na obra clariceana sabíamos que fazia anos vários dos livros da autora de Perto do coração selvagem haviam sido traduzidos para outros idiomas, espalhando pelo mundo a escrita por vezes perturbadora dessa ucraniana de nascimento e brasileira por vivência. Recordo que todo o burburinho que se formou em torno do Benjamin Moser me incomodou um pouco pelo fato de parecer que não tínhamos entre nós alguém que estudasse e/ou entendesse da vida e da obra de Clarice Lispector com igual e/ou superior profundidade. Logo compreendi que parte da crítica que tanto louvava o trabalho do norte-americano não mencionava os estudos concebidos por Benedito Nunes, Olga de Sá, Yudith Rosenbaum e principalmente por Nádia Battela Gotlib, cuja biografia Clarice: uma vida que se conta – ela veio a lume pela Editora Ática, em 1995; encontrava-se esgotada na época em que se deu o lançamento da Cosac Naif e reapareceu ainda em 2009 -, não só em virtude de certo comportamento mesquinho que desde há muito se estabeleceu entre nossa intelectualidade, que consiste em não reconhecer alguns autores e obras para destacar determinados nomes e pesquisas, e que é marcado pelo julgamento algo provinciano de pensar que tudo e/ou somente o que é estrangeiro deve ser visto como admirável, grandioso e bom, mas também por pura e simples ignorância mesmo, porque grande parte dessa gente que assina os cadernos de cultura de jornais e revistas, ao que parece, apenas transcreve press releases. Vou-lhes dar um exemplo recente que demonstra a debilidade dessas “análises bem fundamentadas”: no dia 27 de março de 2016 o caderno Viver (p. C4 e C5), do Diario de Pernambuco, trouxe uma extensa – e repleta de imagens – matéria intitulada “O tempo passou, mas a causa ficou”, assinada por Larissa Lins, dando conta do relançamento de Reivindicação dos direitos da mulher, de Mary Wollstonecraft, originalmente lançado em 1792. Li a reportagem com vivo interesse e ao final me perguntei: “Como alguém pode escrever sobre Mary Wollstonecraft, no Brasil, sem sequer fazer alusão ao pioneirismo da brilhante e ilustrada potiguar Nísia Floresta, que fez uma tradução livre da obra Woman not inferior to man, de Mary Wortley Montagu, pondo o título Direitos das mulheres e injustiça dos homens, publicando-a em 1832, tradução essa que, durante muito tempo, se acreditou que tivesse sido justamente do livro de Mrs. Wollstonecraft?". E não podemos nos esquecer de outra grande referência que é feita à Mary Wollstonecraft em nossa literatura naquele que é considerado o primeiro best seller brasileiro, A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, cuja edição príncipe é de 1844; o Macedo que no dizer da professora Tania Serra foi um "incansável defensor da educação para as mulheres e um dos primeiros 'feministas' de nossa história literária" (Tania Serra. "Joaquim Manuel de Macedo: Espelho mágico do Segundo Reinado" (Introdução). In Joaquim Manuel de Macedo. A Moreninha. Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012, p. 17). Nessa obra a protagonista Carolina aparece como leitora da feminista inglesa, mesmo tendo apenas quinze anos de idade.

Como eu disse, em 2009 foi que, em edição revista e aumentada – esta é a sexta; as demais edições apareceram todas em 1995 -, voltou a circular Clarice: uma vida que se conta, agora sob a chancela da Editora da Universidade de São Paulo, Edusp. Não sei se o estudo de Nádia Battela Gotlib desperta no público não leitor da obra da escritora de A hora da estrela o mesmo fascínio que provoca em quem já enveredou, ainda que não de corpo inteiro, pelas páginas repletas de espanto deixadas por Clarice. A narrativa de Nádia, além de ser carregada de minúcias sobre a vida dessa autora que passou parte da sua infância no recifense bairro da Boa Vista, vai pondo o leitor em contato também com o universo escrito que ela nos legou; uma a uma as obras são apresentadas e descritas revelando não apenas elas em si, bem como a fortuna crítica que por elas se formou. Nádia, que igualmente assina, entre outros, uma fotobiografia requintada e belíssima de Clarice Lispector (Clarice fotobiografia. São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008), ao mesmo tempo que nos brinda com o pleno domínio que tem sobre a matéria dos seus estudos, nos deixa ver que ela está insistentemente nos convidando a conhecer Clarice, a nos embrenharmos pelas páginas da narradora de Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres, onde a pausa que fazemos na leitura serve para recuperar o fôlego, aguçar um pouco mais os sentidos e seguir em frente numa jornada que, para muitos, é, quase sempre, de inquietação. Lendo o livro Clarice: uma vida que se conta, parecia que eu estava de novo frente a frente com a intelectual refinada e com a mulher fascinante e encantadora, que é a professora Nádia Battela Gotlib, que eu tive a satisfação de ver e ouvir palestrando no salão nobre do Teatro de Santa Isabel, no Recife, no hoje longínquo ano de 2007. E em termos de comparação entre o seu estudo e o de Moser, a meu ver, o dela se sobrepõe ao dele, tamanha é a sua carga de esclarecimento e entrelaçamento que faz da vida e da obra de Clarice Lispector, compondo um quadro elucidativo impressionante.

Ler Clarice nunca é fácil para mim; sempre me sobram indagações e questionamentos de diversas ordens. É-me fundamentalmente um exercício de como lidar com tudo o que me escapa: seja quando eu não consigo explicar certas circunstâncias que foram por mim vivenciadas; seja quando me vem a incapacidade de compreender inteiramente algo que me foi revelado. E tudo dela exerce sobre mim uma irresistível atração. Talvez seja porque onde o inexplicável se impõe é justamente onde reside a essência do absoluto da vida.



(Artigo publicado também in Informa Garanhuns [Garanhuns], agosto de 2016, nº 1, Opinião, p. 2)

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