16 de julho de 2016

O rio e a cidade: o Capibaribe clama que o Recife lhe restitua a sua dignidade

Por Clênio Sierra de Alcântara



O rio está sempre manso e submisso.
As suas águas se espreguiçam silenciosas
e não cantam nos pés das pontes da cidade.

Dia virá, porém, que elas passarão a gritar,
deixarão de ser um simples sussurro,
mas um forte e doloroso rugido.
Os bondes da “Tramways” já não existirão.
Só homens aflitos e inermes
assistirão à revolta do manso rio...
                                              O rio da minha cidade. Souza Barros



Fotos: do autor      Cidade de contrastes sociais muito acentuados, o Recife precisa promover não apenas a revitalização  do Rio Capibaribe, mas também o resgate da cidadania de muitas pessoas que sobrevivem  às margens desse rio, como as famílias que moram nessas palafitas localizadas no bairro dos Coelhos





Da língua tupi – capibara, porco selvagem; e uby ou ipe, lugar – nome Capibaribe significa lugar de capivaras ou capibaras, conforme vai dito no Dicionário corográfico, histórico e estatístico de Pernambuco, de Sebastião de Vasconcellos Galvão. Capibaribe é como se chama o principal e maior rio que atravessa grande parte da cidade do Recife. Com sua nascente localizada na Lagoa da Estaca entre as serras do Acaí e do Jacarará, em terras que compreendem o município de Pesqueira, antes de começar a percorrer o território recifense a fim de desaguar no Oceano Atlântico, o Rio Capibaribe desce sinuoso engrossando com as águas que recebe de vários dos seus afluentes, e passando por dezenas de cidades, como Toritama, Santa Cruz do Capibaribe, Limoeiro, Paudalho, São Lourenço da Mata e Camaragibe.



Veneza Americana, Cidade-sereia... Para além da poesia e das imagens dos cartões-postais a capital pernambucana é um cenário turbulento de conflitos entre os atores sociais que buscam promover um como que renascimento da cidade lutando contra o império dos interesses imobiliários






Durante muito tempo o Rio Capiberibe – Capibaribe!, como enfatizou o poeta Manuel Bandeira em 1925 no magistral “Evocação do Recife” – desempenhou um papel de enorme relevância dentro da lógica de vivência e exploração econômica que se verificava no Recife de antanho. Esse protagonismo se revelava, por exemplo, com o fato de que grandes e imponentes moradias das ricas famílias do lugar ser construídas com suas fachadas voltadas para ele e, também, por esse rio ser utilizado para o escoamento de produtos agrícolas e outras mercadorias através de barcaças, canoas e outros tipos de embarcação, numa época em que, como é sabido, nos chamados arredores da capital pernambucana – Arredores do Recife é, aliás, o título de uma das obras do prolífico Francisco Augusto Pereira da Costa na qual ele nos apresenta essas terras afastadas do centro da cidade -, como Várzea, Dois Irmãos e Casa Forte. Mario Sette, o fiel amante das coisas recifenses, em seu simpático e singelo livrinho Terra pernambucana escreveu sob o título “As barcaças de capim”, um capítulo em que registrou a ação do casal José Mariano e Dona Olegarinha que dava guarida a escravos fugidos onde os dois moravam, no Poço da Panela, e, como militantes da causa abolicionista, chegavam a despachar os negros escondidos em barcaças cobertos de capim para a Província do Ceará, onde a abolição havia se estabelecido em 1884.










Esse, digamos, passado de glória que unia em quase simbiose o Rio Capibaribe à população que habitava o Recife foi paulatinamente sendo convertido não somente em narrativas de caráter literário e histórico, mas também num total e completo desprezo do recifense para com esse curso d’água, transformando-o em depósito de lixo e destinatário de toneladas de esgoto in natura que diariamente são despejadas nele; realidade essa que, para além do “ciclo do caranguejo” evidenciado por Josué de Castro em 1937 no seu Documentário do Nordeste, e das inúmeras pontes e monumentos da Manguetown, as fotografias dos famigerados cartões-postais não registram.










Na última quarta-feira, dia 13, a sede da TGI Consultoria foi novamente o cenário que abrigou mais uma edição da série de debates “O Recife que precisamos” promovida pelo Observatório do Recife e pela Revista Algomais. Com o tema “O Rio Capibaribe e o Recife como cidade-parque”, a palestrante da noite, a professora Circe Gama Monteiro, discorreu sobre o projeto Parque Capibaribe – Recife 500 anos. Circe enfatizou que essa iniciativa propõe-se fundamentalmente a promover um resgate do corredor ambiental ecológico do rio, agregando a isso um sistema de mobilidade ativo e uma transformação urbanística. Ela acredita que as pessoas, de um modo geral, anseiam por uma cidade que oferte mais áreas verdes para o lazer: “Você não vai atrair ninguém para uma cidade que não ofereça qualidade de vida”, destacou. Realista a palestrante disse ainda que leis que contrariam os interesses das imobiliárias não vão adiante, algo extremamente pertinente e preocupante numa metrópole como o Recife, que escolheu um modelo de desenvolvimento que prioriza uma verticalização que ignora inteiramente a paisagem natural da cidade e os fundamentos de sua história.



Esta foto e a seguinte: Observatório do Recife          A professora Circe Gama Monteiro no momento em que fazia sua explanação: o Recife precisa de todos nós para que consiga renascer



Quando o microfone foi aberto para os questionamentos da plateia vários deles dimensionaram o quanto é complexo o organismo citadino e como são diversas e desafiadoras as demandas dos atores sociais. Eis algumas das questões: será que o processo de gentrificação que certamente acompanhará uma possível revitalização do Rio Capibaribe não excluirá as populações ribeirinhas? E as palafitas? Será que o Parque Capibaribe irá mesmo ser implantado, já que outros projetos, como o Capibaribe Melhor, ficaram pelo caminho? E os mangues? E os afluentes poluídos, como o Riacho do Cavouco? Por que não se incentivam a formação de conselhos de bairro? E eu lhe pergunto leitor: quem, senão nós, há de promover o resgate físico, histórico e simbólico do Rio Capibaribe?







Décadas de degradação e descaso transformaram o Rio Capibaribe num curso d’água agonizante e em permanente espera por ações que promovam efetivamente a sua revitalização. O progresso do Recife não pode deixar de lado o cuidado para com a preservação dos seus recursos naturais, notadamente para com um rio que constitui parte significativa da identidade da cidade. O “cão sem plumas” dos versos de João Cabral de Melo Neto resiste bravamente às adversidades, como todo pernambucano. Mas, até quando?                                                                                                

Um comentário:

  1. Primeiramente gostaria de agradecer pelo belíssimo texto Clênio Sierra. Concordo com muitas reflexões que foram feitas no texto mesmo ele ter sido escrito em 2016. Sou do campo da história e como recifense abordo aspectos das relações entre as comunidades pobres do Recife e o Rio Capibaribe. Fico triste por perceber assim como você que um rio que têm uma significativa ligação com a identidade do povo pernambucano está morrendo lentamente.

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