22 de julho de 2016

Crueldade

Por Clênio Sierra de Alcântara




A crueldade não precisa de justificativa para mostrar a sua face. Paris, Nice, Bruxelas, Orlando, Munique... Continuaremos  assistindo à matança em massa de pessoas, como se fosse em imolação, porque não temos como impedir que o mal se estabeleça entre nós

Eu não acredito em deuses. Em nenhum. De onde eu vim? Para onde vou? Por que eu existo? Nenhuma dessas indagações norteia a minha vida. A minha existência é toda ela pautada pela compreensão e pelo entendimento do que eu sou e como eu ajo entre os meus semelhantes. O meu caminhar é guiado pelas regras e pelos instrumentos legais laicos; pelas normas que estabelecem que se eu infringir tal determinação eu pagarei uma multa, ficarei com o nome sujo e/ou serei impedido de obter um financiamento; minha conduta segue o preceito que diz que se eu praticar tal ato isso será tipificado como crime e eu arcarei com as consequências disso.

Eu não acredito em deuses. Em nenhum. E busco viver alinhando os direcionamentos das minhas necessidades intelectuais e materiais e orgânicas de uma maneira que todas elas caibam na dimensão das minhas posses, do meu alcance e das minhas limitações. O meu estilo de vida até aqui se apoiou nos regulamentos e não nas convenções sociais. Não vou ter um filho porque um coro exalta que todo homem tem que ser pai e constituir uma família. Não, eu só vou ter um filho se eu quiser tê-lo. E de nada adianta que as vozes se ponham a alardear que eu sou um fracassado porque eu não comprei isso e nem conquistei aquilo, porque eu não viajei para tal lugar e nem uso tal marca de roupa, porque isso não funciona comigo.

Eu não acredito em deuses. Em nenhum. E mantenho uma rotina que envolve o trabalho que me sustenta financeiramente, a execução de exercícios físicos para manter firme o meu corpo, estudos e outras práticas intelectuais que me mantém entusiasmado com a vida ao mesmo tempo que fazem com que eu amplie o meu entendimento do mundo – tanto em sentido macro como em micro - e uma rede de relações sociais para rir, chorar, cantar, viajar, gozar...

Eu não acredito em deuses. Em nenhum. E me incomodo e me aflijo sobremaneira com as ações nefastas de todos aqueles que dizem agir em nome e em defesa de uma divindade ou de um seu intercessor, pregando o ódio, a intolerância, a submissão, o obscurantismo, a perseguição, o castigo físico e a morte banalizada, ritualizada e executada da maneira mais espetacular e cruel e desumana que for possível. É ignominiosa e completamente vil e covarde essa prática de provocar a dor e o sofrimento no seio de pessoas que compartilham crenças, opiniões e comportamentos de outrem, que não se encaixam em certas visões de mundo e militam no campo da diversidade, da pluralidade, do respeito mútuo e, sobretudo, da liberdade de consciência. É desprezível, abominável e inteiramente execrável essa constante operacionalidade que estabelece a morte e o extermínio em massa como semeadura de um mundo onde só assim existirão homens e mulheres vivendo em conformidade com um suposto rito de alcance da salvação. É chocante, opressora e amedrontadora uma filosofia de vida que incita e que pratica uma maldade sanguinária e insana como fundamento de uma verdade dita absoluta que algum dia há de prevalecer para que, enfim, a humanidade se estabeleça em bases firmes de respeito e subserviência aos mandamentos do que quer que seja que os arautos proclamem que veio do céu.

Eu não acredito em deuses. Em nenhum. E tenho absoluta certeza de que, mesmo que minha natureza fosse diferente, e eu acendesse velas e jejuasse; e orasse e rezasse; e destinasse oferendas; e louvasse; e desfiasse as contas de um rosário; e vestisse branco e azul; e carregasse livros ditos sagrados debaixo do braço; e deixasse a minha barba crescer sem não mais retirá-la; e me cobrisse dos pés à cabeça; e não comesse isso e aquilo; e frequentasse o templo e a igreja; e saísse em peregrinação; e fizesse votos de castidade; e aprendesse a perdoar; e pagasse o dízimo; e me batizasse; e dissesse um milhão de vezes “livrai-me de todo o mal”, o mal nunca deixaria de vir.

A crueldade não precisa de justificativa para mostrar a sua face. Paris, Nice, Bruxelas, Orlando, Munique... Continuaremos  assistindo à matança em massa de pessoas, como se fosse em imolação, porque não temos como impedir que o mal se estabeleça entre nós.

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