30 de julho de 2016

A chama do escárnio e do atraso vai permanecer acesa

Por Clênio Sierra de Alcântara



Imagem: GregUnnamed     Como temos bons hospitais e escolas, a economia está a pleno vapor e os empregos estão sobrando, podemos nos dar ao luxo de torrar nosso dinheiro em grandes eventos esportivos. Avante, Brasil!



Ainda hoje é possível encontrar por aí livros didáticos de História que sustentam um discurso que diz que os “povos primitivos” que os europeus encontraram nesta terra, no século XVI, eram, apesar de um e outro demonstrar certa agressividade e resistência, “bons selvagens” que por qualquer ferramentazinha, espelhinho e bugigangas em geral se dispunham a ser sempre amigáveis e auxiliares da grande empresa colonial portuguesa.  Mito ou verdade, a narrativa que expressa a construção de um discurso que é a um só tempo legitimador e atenuante das barbáries perpetradas pelos ditos “homens superiores” a fim de muito mais – destaque-se o muito mais – promover um “processo civilizatório” do que propriamente explorar economicamente à exaustão este lugar, de uma maneira ou de outra pode ser lida nos gestos e nos comportamentos de um sem-número de brasileiros dos dias atuais, transcorridos mais de quinhentos anos, desde que um ingênuo silvícola se viu pela primeira vez num espelho e não se deu conta de que, no ato daquele escambo, ele sempre saía perdendo.

Transposto para os dias de hoje, numa realidade em que parques industriais avançadíssimos de multinacionais e tecnologias de comunicação nos põem em face de situações que, algum tempo atrás, só acreditávamos ser possíveis em ficções científicas convivem com esgoto correndo a céu aberto e com pessoas que vivem se equilibrando em palafitas ou se escondendo sob viadutos sem ter acesso sequer a uma privada, aquele sistema de trocas mudou apenas em parte. Os brasileiros continuamos a negociar a maior riqueza que cada ser humano tem e/ou deveria ter, que é a dignidade, por qualquer mínima coisa que nos seja apresentada como algo bom, que nos dará fama, que nos garantirá pelo menos uma das três principais refeições diárias e que brilhe como ouro mesmo que seja de tolo. Trocamos nossos votos por sacos de cimento, cestas básicas, medicamentos e óculos de grau. E acreditamos, ainda que continue nos faltando o mais além do arroz, do feijão e da farinha, que teremos um futuro promissor porque carregamos no bolso um cartão que permite que todo mês saquemos uns tostões “dados pelo Governo”.

A dimensão gigantesca de nossa pequenez moral e de nossa espantosa alienação e mediocridade estão sendo mostradas há mais de um mês de modo outra vez espetaculoso. Crentes de que deixamos de ser e/ou de que muito em breve deixaremos de ser um povo amicíssimo do atraso em quase todas as esferas da existência, nos pusemos a correr como equinos por tudo quanto é lugar, exibindo sorrisos amarelos e empunhando um foguinho que merece maior proteção e respeito do que a vida de cada um de nós. Ah, como somos estúpidos! Enquanto em milhares de nossas escolas os alunos deixam de praticar atividades esportivas porque lhes faltam tanto o espaço quanto os equipamentos para isso, milhões de reais estão sendo queimados no deslocamento de uma tocha para que, imaginem, o povo entre no “espírito olímpico”. Enquanto milhares de localidades deste país não sabe o que é ter uma delegacia de polícia funcionando e/ou só vê policiais nas ruas quando ocorrem assassinatos e arrombamentos de bancos, um efetivo da Força Nacional está inteiramente dedicado a garantir a integridade da tocha olímpica. Ah, como somos idiotas!

Enquanto a tocha percorre desembestadamente os quatro cantos do país sendo vendida, enganosamente, como algo motivador e agregador, vão-se acumulando no seu rastro – não neguemos isso: é divertido assistir às quedas de um e outro deslumbrado que a conduz – um pouco do muito de amadorismo e da falta de precisão e eficiência que são, inegavelmente, a marca registrada do Brasil: uma onça foi morta em Manaus, depois de ter sido usada como enfeite no evento; e parte de uma ciclovia despencou no Rio de Janeiro, deixando um saldo de dois mortos e exibindo a qualidade das obras erguidas pelas poderosas construtoras brasileiras. É o mesmo Rio de Janeiro onde um militar da Marinha desapareceu no mar depois que dois aviões se chocaram num exercício de simulação das ações de segurança para os jogos; que fracassou em despoluir a belíssima Baía de Guanabara; cujo comitê organizador da Olimpíada não teve sequer o cuidado e a atenção de fazer uma limpeza nos apartamentos da vila olímpica destinada a receber atletas e comissões técnicas; e onde, ainda há pouco, uma empresa contratada para integrar o esquema de segurança montado na cidade foi afastada do processo porque alegou estar sem recursos financeiros para empregar o total de seguranças que fora acertado.

Dentro desse quadro, digamos, pré-olímpico, os cariocas certamente serão aqueles que melhor desempenho terão demonstrado em todo o itinerário de mais de trezentas cidades percorrido pela famigerada tocha, porque, mais do que quaisquer outros brasileiros, eles estão bem preparados para provas de longa duração, visto que, não é de hoje, eles vivem a correr de arrastões, de balas perdidas e de um hospital para outro em busca de atendimento.

Que Estados Unidos que nada, os grandes vencedores dessa Olimpiada, ops, Olimpíada serão com toda a certeza os brasileiros. Nós, mais uma vez, daremos ao restante do mundo a demonstração inequívoca de como somos insuperáveis nas provas que exijam o máximo de incompetência, de insegurança, de despreparo e de desrespeito à vida humana. A Olimpíada chegará ao fim, mas a chama do escárnio, da malversação do dinheiro público, do superfaturamento de obras e do atraso, em geral, vai permanecer acesa.

Parece até que eu já estou a ouvir o pipocar dos tiros de fuzis a se confundir com os dos fogos de artifício durante a cerimônia de abertura das competições  e a ver as câmeras de televisão mostrando um Cristo Redentor maroto, de braços bem abertos, como a querer dizer: “Cuidem-se todos, porque eu não tenho nada a ver com isso!”.

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