Imagem: GregUnnamed Como temos bons hospitais e escolas, a economia está a pleno vapor e os empregos estão sobrando, podemos nos dar ao luxo de torrar nosso dinheiro em grandes eventos esportivos. Avante, Brasil!
Ainda hoje é possível
encontrar por aí livros didáticos de História que sustentam um discurso que diz
que os “povos primitivos” que os europeus encontraram nesta terra, no século
XVI, eram, apesar de um e outro demonstrar certa agressividade e resistência,
“bons selvagens” que por qualquer ferramentazinha, espelhinho e bugigangas em
geral se dispunham a ser sempre amigáveis e auxiliares da grande empresa
colonial portuguesa. Mito ou verdade, a
narrativa que expressa a construção de um discurso que é a um só tempo
legitimador e atenuante das barbáries perpetradas pelos ditos “homens
superiores” a fim de muito mais – destaque-se o muito mais – promover um
“processo civilizatório” do que propriamente explorar economicamente à exaustão
este lugar, de uma maneira ou de outra pode ser lida nos gestos e nos
comportamentos de um sem-número de brasileiros dos dias atuais, transcorridos
mais de quinhentos anos, desde que um ingênuo silvícola se viu pela primeira
vez num espelho e não se deu conta de que, no ato daquele escambo, ele sempre
saía perdendo.
Transposto para os dias de
hoje, numa realidade em que parques industriais avançadíssimos de
multinacionais e tecnologias de comunicação nos põem em face de situações que,
algum tempo atrás, só acreditávamos ser possíveis em ficções científicas
convivem com esgoto correndo a céu aberto e com pessoas que vivem se
equilibrando em palafitas ou se escondendo sob viadutos sem ter acesso sequer a
uma privada, aquele sistema de trocas mudou apenas em parte. Os brasileiros
continuamos a negociar a maior riqueza que cada ser humano tem e/ou deveria
ter, que é a dignidade, por qualquer mínima coisa que nos seja apresentada como
algo bom, que nos dará fama, que nos garantirá pelo menos uma das três
principais refeições diárias e que brilhe como ouro mesmo que seja de tolo.
Trocamos nossos votos por sacos de cimento, cestas básicas, medicamentos e
óculos de grau. E acreditamos, ainda que continue nos faltando o mais além do
arroz, do feijão e da farinha, que teremos um futuro promissor porque
carregamos no bolso um cartão que permite que todo mês saquemos uns tostões
“dados pelo Governo”.
A dimensão gigantesca de
nossa pequenez moral e de nossa espantosa alienação e mediocridade estão sendo
mostradas há mais de um mês de modo outra vez espetaculoso. Crentes de que
deixamos de ser e/ou de que muito em breve deixaremos de ser um povo amicíssimo
do atraso em quase todas as esferas da existência, nos pusemos a correr como
equinos por tudo quanto é lugar, exibindo sorrisos amarelos e empunhando um
foguinho que merece maior proteção e respeito do que a vida de cada um de nós.
Ah, como somos estúpidos! Enquanto em milhares de nossas escolas os alunos
deixam de praticar atividades esportivas porque lhes faltam tanto o espaço
quanto os equipamentos para isso, milhões de reais estão sendo queimados no
deslocamento de uma tocha para que, imaginem, o povo entre no “espírito
olímpico”. Enquanto milhares de localidades deste país não sabe o que é ter uma
delegacia de polícia funcionando e/ou só vê policiais nas ruas quando ocorrem
assassinatos e arrombamentos de bancos, um efetivo da Força Nacional está
inteiramente dedicado a garantir a integridade da tocha olímpica. Ah, como
somos idiotas!
Enquanto a tocha percorre
desembestadamente os quatro cantos do país sendo vendida, enganosamente, como
algo motivador e agregador, vão-se acumulando no seu rastro – não neguemos
isso: é divertido assistir às quedas de um e outro deslumbrado que a conduz –
um pouco do muito de amadorismo e da falta de precisão e eficiência que são,
inegavelmente, a marca registrada do Brasil: uma onça foi morta em Manaus,
depois de ter sido usada como enfeite no evento; e parte de uma ciclovia
despencou no Rio de Janeiro, deixando um saldo de dois mortos e exibindo a
qualidade das obras erguidas pelas poderosas construtoras brasileiras. É o
mesmo Rio de Janeiro onde um militar da Marinha desapareceu no mar depois que
dois aviões se chocaram num exercício de simulação das ações de segurança para
os jogos; que fracassou em despoluir a belíssima Baía de Guanabara; cujo comitê
organizador da Olimpíada não teve sequer o cuidado e a atenção de fazer uma
limpeza nos apartamentos da vila olímpica destinada a receber atletas e
comissões técnicas; e onde, ainda há pouco, uma empresa contratada para
integrar o esquema de segurança montado na cidade foi afastada do processo
porque alegou estar sem recursos financeiros para empregar o total de seguranças
que fora acertado.
Dentro desse quadro,
digamos, pré-olímpico, os cariocas certamente serão aqueles que melhor
desempenho terão demonstrado em todo o itinerário de mais de trezentas cidades
percorrido pela famigerada tocha, porque, mais do que quaisquer outros
brasileiros, eles estão bem preparados para provas de longa duração, visto que,
não é de hoje, eles vivem a correr de arrastões, de balas perdidas e de um
hospital para outro em busca de atendimento.
Que Estados Unidos que nada,
os grandes vencedores dessa Olimpiada, ops, Olimpíada serão com toda a certeza
os brasileiros. Nós, mais uma vez, daremos ao restante do mundo a demonstração
inequívoca de como somos insuperáveis nas provas que exijam o máximo de
incompetência, de insegurança, de despreparo e de desrespeito à vida humana. A
Olimpíada chegará ao fim, mas a chama do escárnio, da malversação do dinheiro
público, do superfaturamento de obras e do atraso, em geral, vai permanecer
acesa.
Parece até que eu já estou a
ouvir o pipocar dos tiros de fuzis a se confundir com os dos fogos de artifício
durante a cerimônia de abertura das competições
e a ver as câmeras de televisão mostrando um Cristo Redentor maroto, de
braços bem abertos, como a querer dizer: “Cuidem-se todos, porque eu não tenho
nada a ver com isso!”.
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