16 de setembro de 2016

Nas cercanias do Edifício Aquarius

Por Clênio Sierra de Alcântara




Foto: divulgação   Clara (Sonia Braga) é um baluarte de resistência em defesa de suas memórias. Quem protegerá o Recife de toda a sanha destruidora que vive a espreitá-lo?




Dentro da recente e merecidamente aclamada filmografia pernambucana, nenhuma outra produção se mostra tão escancaradamente como uma enorme, necessária e pertinente declaração de amor ao Recife do que Aquarius, o mais novo filme de Kleber Mendonça Filho. Se em sua produção anterior - o igualmente incisivo O som ao redor – esse diretor conduziu uma narrativa que mexia com certos conceitos de ordem sociológica tão caros ao ethos brasileiro, em geral, e ao pernambucano, em particular, de uma maneira um tanto quanto hermética para o, digamos, quase padrão do atual cinema brasileiro, no qual a simplificação do enredo parece ser o mandamento número um para o alcance de uma boa bilheteria, com Aquarius Kleber, além de demonstrar que é um cineasta maduro e que continua mantendo-se empenhado em fazer um cinema com identidade própria, deixou a estória com uma clareza por assim dizer completamente explícita - creio até que o nome da protagonista carrega esse viés: Clara, clareza, esclarecimento.

Valendo-se de uma discussão atualmente em voga naquela que será a primeira capital brasileira a comemorar os quinhentos anos de sua fundação, o diretor compôs um quadro no qual temas como contrastes sociais, memória urbana, preservação do patrimônio edificado e especulação imobiliária – e eu diria até Educação patrimonial – são os fios condutores de um enredo no qual a personagem Clara (Sonia Braga deslumbrante e sedutora como há muito não a víamos) se apresenta como um verdadeiro baluarte contra um projeto que quer pôr abaixo o prédio onde ela mora, o Edifício Aquarius, no metro quadrado mais caro da cidade, a orla de Boa Viagem, e erguer no terreno, sob os auspícios da Engenharia Bonfim, um prédio de altíssimo padrão, o Atlantic Plaza Residence.

Em que pese o fato de Clara ser uma mulher esclarecida, uma intelectual destemida muito apegada às coisas do seu passado que reluta em vender o seu apartamento para que a construtora inicie logo as obras, o tempo todo a sua inabalável resistência é reforçada aqui e ali por imagens e acontecimentos que sugerem destruições ocorridas ou que estão para acontecer. A saber: o câncer de mama que acabou por extirpar um seio dela é uma metáfora e tanto do poder que destrói tudo às escondidas sem que nos demos conta disso, assim como os inúmeros cupins que aparecem nas sequências finais do filme carregam a mesma conotação; além disso, vemos em cena o livro Os três porquinhos, cuja estória, sabemos bem, diz respeito à necessidade deles de resistir às investidas do Lobo Mau que quer derrubar suas moradas a fim de devorá-los; já a placa fixada na praia que alerta sobre o risco de ataque de tubarão, talvez, esteja ali também para nos dizer que, na verdade, os tubarões podem estar em toda parte. Afora isso, para reafirmar o perigo da vaga demolidora/desfiguradora que está rondando o Recife, ao espectador são mostradas outras áreas da cidade igualmente, mas em realidade, cobiçadíssimas pelas poderosas construtoras: o Cais José Estelita, no bairro de São José; e o bairro de Brasília Teimosa, ambos, assim como o Edifício Oceania – na ficção convertido em Aquarius – com vistas para o mar.

O espectador mais atento notará uma certa incoerência no discurso, digamos, engajado da aguerrida Clara, que tem uma admirável coleção de discos de vinil, que guarda zelosamente vários álbuns de fotografias, que frequenta um baile das antigas – do mais que centenário Clube das Pás, no bairro de Campo Grande – com as amigas e que olha tanto para o passado. Ora, endinheirada ou pelo menos remediada – em dado momento, numa conversa que redunda em bate-boca com os filhos, ela diz que pode ajudá-los financeiramente porque tem um patrimônio formado que inclui “cinco apartamentos” -, Clara parece não saber que, no Brasil, historicamente, nada foi – e continua sendo – mais devastador para a preservação da fisionomia das nossas cidades mais antigas do que o culto aos veículos automotivos; e certamente é por ignorar essa realidade e ainda que podendo fazer uso de táxis, que ela mantém um carrão na garagem, e logo um daqueles que dizem ser grandes beberrões de combustível. Nem tudo na vida de Clara, reconheçamos, é velho ou vintage.

Deixando esse pecadilho de lado, Aquarius é tudo de bom que já se disse dele e mais um pouco. É um filme muito atraente, bonito e mesmo político, porque se põe contra um projeto de gentrificação que busca a todo custo subjugar o Recife, fazendo dessa cidade uma cópia de uma outra qualquer que existe no mundo. Constitui-se uma narrativa em defesa da memória não apenas urbana do Recife, mas também de outras referências que o define e o completa, exaltando o que ainda resiste na cidade e recordando - certamente como um alerta - o que dela já se perdeu, como o Cinema Moderno, que cedeu lugar a uma loja de eletrodomésticos lá na Praça Joaquim Nabuco, no bairro de Santo Antônio, e o próprio Edifício Caiçara que sumiu neste ano da mesma Av. Boa Viagem morada de Clara e cujo drama, em parte, o filme buscou retratar. Num instante de quase êxtase coletivo Reginaldo Rossi canta animando o baile ao qual a juventude não comparece: “Vem, Recife tem encantos mil./É, é um pedacinho do Brasil”. E com indisfarçável ânsia voyerística a câmera nos faz acompanhar o erotismo em ação para também ele nos dizer que as pessoas, assim como a cidade, estão vivas e pulsantes.

Aquarius é um filme a um só tempo solar e sombrio. Mas sombrio naquilo que o seu presente projeta como futuro; um futuro de aniquilação e de derrota da singularidade urbana do Recife frente ao capital das grandes e influentes construtoras.

Muito provavelmente - e eu estou dizendo isso sem ter visto o que foi indicado - como retaliação ao protesto que a equipe do filme fez contra o processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff, durante o Festival de Cannes, em maio, o Ministério da Cultura deixou Aquarius de fora da tentativa de entrar no rol da disputa pelo Oscar de melhor produção estrangeira. Uma pena, porque Aquarius vem ganhando prêmios e aplausos por onde passa, o que confirma que ele tem muito o que dizer principalmente às nações ditas emergentes, que têm vendido suas belezas arquitetônicas e paisagísticas ao capital imobiliário que tudo uniformiza e desencanta.

Tanto quanto uma potente e embriagadora declaração de amor ao Recife, Aquarius é um manifesto contra o processo de demolição/reconstrução de um centro urbano cujos administradores escolheram um ideal de progresso que é solapador de sua história; o filme é, também e fundamentalmente, um testemunho e um registro contundentes da cidade que, talvez, não iremos reconhecer em suas imagens futuramente.

(Artigo publicado também in Informa Garanhuns [Garanhuns], outubro de 2016, Opinião, p. 2).


Um comentário:

  1. Espetacular Sierra, quem vai gostar muito é o pessoal da linha de pesquisa de Patrimônio Histórico e Cultural do Programa de Abtropologia ....! O descaso de várias cidades brasileira com a derrocada dos edifícios e construções históricas é um absurdo...enquanto nos engatinhamos e ainda cedemos espaço ao Sonho de Grandeza , destruindo monumentos históricos para construir prédios (arranha céus) , muitos países europeus, mesmo com a 1 e 2 guerra conseguiram sustentar seus sítios históricos, pois a política de patrimonializaçao começou no início do século XX...!

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